Em meio à pandemia do novo coronavírus, o governo de Jair Bolsonaro continua com uma política de liberar o registro de novos agrotóxicos no país. Nesta segunda-feira (11), Dia do Controle da Poluição por Agrotóxicos, a Sputnik Brasil conversou com dois especialistas - Leandro Ritter, engenheiro florestal e mestre em conservação de florestas; e Leonardo Vicente, que faz parte da coordenação da secretaria de agricultura do estado do Rio de Janeiro - para analisar o impacto do uso desses defensivos agrícolas na vida dos brasileiros.
Ao fim de 2020, o Brasil contabilizou a liberação de 945 agrotóxicos, muitos deles de alta periculosidade para a saúde humana e o meio ambiente. Dada a importância desta pauta, o assunto mobilizou inclusive o Supremo Tribunal Federal (STF), que em novembro derrubou a isenção de impostos para agrotóxicos, medida aprovada pelo presidente da República, e amplamente questionada no Congresso.
A delicadeza da discussão sobre o uso de agrotóxicos no Brasil envolve diversos atores, entre importantes setores da economia, e até médicos e ambientalistas, preocupados com as consequências do uso dessas substâncias. Para Leonardo Vicente, "é interessante entender que o agrotóxico é utilizado para controle de pragas. Existem organismos que competem pelo mesmo substrato de alimentos que nós, humanos. Para poder garantir nosso meio de vida, de sobrevivência, é preciso eliminar esses organismos".
Leonardo relembrou que, ao longo da história humana, "há exemplos do homem tentando controlar a lavoura. Recentemente, apareceu esse nome: agrotóxico. São produtos utilizados para controle de pragas. É interessante entendermos, dentro de um contexto nacional, e da própria expansão das fronteiras agrícolas para diversos ambientes ecológicos, assim como o aumento de produtividade, que a resposta para os problemas é o uso de produtos químicos, que podem causar severos impactos na saúde das pessoas e no meio ambiente".
Por outro lado, em uma resposta que revela a linha tênue das divergências sobre o assunto, Leandro Ritter, engenheiro florestal, entende que "na medida que interfere na saúde da população em geral, com maior intensidade nos trabalhadores que aplicam o agrotóxico (mesmo que seja aplicado a partir de maquinários, os grandes produtores não se preocupam com os trabalhadores e com o uso de equipamentos para proteção), haverá prejuízos a longo prazo para a população que consome esses produtos".
Leandro Ritter aponta, concomitantemente, que "há diversas alternativas para não utilizar os agrotóxicos, como infinitos inseticidas naturais e o próprio controle biológico para atração de 'inimigos naturais' das pragas da agricultura, e também ter uma vegetação nativa ao entorno". Segundo ele, "a questão é que o agronegócio visa um lucro crescente, e o quanto menos eles tiverem gastos e dor de cabeça, melhor para eles somarem lucros no próprio bolso".
O engenheiro entende que, "em outras palavras, o Brasil entra com as terras e com o dinheiro, e fica com o ônus da relação: concentração fundiária, danos à saúde dos trabalhadores e ao meio ambiente".
Vale lembrar que, neste sentido, o Brasil é um dos primeiros colocados no ranking mundial do consumo de agrotóxicos. De acordo com dados do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para a Defesa Agrícola, mais de um milhão de toneladas de veneno foram jogados nas lavouras brasileiras apenas em 2010.
Queremos restituir o equilíbrio, diz professor sobre uso de insetos como alternativa ao agrotóxico https://t.co/e7hf7KLc4e
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O aumento indiscriminado do uso dos agroquímicos tem provocado, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), várias doenças como câncer, doenças respiratórias, neurológicas e más formações congênitas. A área de Saúde Ambiental, que pesquisa os impactos do meio ambiente na saúde humana, classifica o agrotóxico como fator de grande importância no processo de ocasionamento dessas doenças.
Os pesticidas agrícolas podem controlar pragas e doenças, mas ao entrar em contato com a terra, contaminam o solo, reduzem sua fertilidade devido à perda de nutrientes, infiltram e atingem lençóis freáticos, contaminam os seres vivos e, em um efeito cíclico e invisível, os próprios seres humanos, que vão consumir os alimentos desta terra ou água contaminada.
A saúde dos trabalhadores que aplicam o agrotóxico é a questão mais preocupante, pois os riscos variam de acordo com o tempo e dose da exposição a diferentes produtos. Os trabalhadores podem apresentar desde intoxicações, dores de cabeça, alergias, náuseas e vômitos a quadros clínicos mais sérios como a infertilidade masculina, má formação congênita, recém-nascidos com baixo peso e doenças neurológicas.
Analisando este cenário, Leonardo Vicente fez uma importante observação. "Temos muitas empresas de outros países, notoriamente China, mas, principalmente do sudeste asiático, que estão ingressando neste mercado [produção de agrotóxicos]. Isso nos causa bastante preocupação. Por conta disso, é preciso haver uma forte legislação". No Rio de Janeiro, temos uma legislação que é exemplo. Comparado ao cenário nacional, são quase 200 menos produtos permitidos no estado".
Vale lembrar que, desde o início do governo de Jair Bolsonaro, em 1º de janeiro de 2019, foram liberados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) 945 novos produtos agrotóxicos – um recorde, na comparação com os governos anteriores. Destes, 580 produtos técnicos são fabricados na China, 116 no Brasil, 79 na Índia e 55 nos Estados Unidos. Em 2020, o gasto estimado com estes agentes químicos superou R$ 39,5 bilhões.
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Questionado se uma boa legislação é suficiente para proteger os brasileiros dos perigos dos agentes químicos nas lavouras, Leonardo Vicente foi cético. "O assunto é tão complexo que não permite uma solução pontual. Existe um conjunto de ações, e a legislação é um dos pilares disso".
Porém, alerta o especialista, "é preciso haver controle, fiscalização. É preciso haver um sistema informatizado de controle de agrotóxicos. Hoje, eu consigo fazer uma espécie de Big Brother Brasil dos agrotóxicos no Rio de Janeiro. Isso ajuda muito na prevenção e detecção do que está sendo levado à mesa do consumidor".
Ao comentar sobre o uso de agentes químicos nas lavouras do Brasil, Leonardo Vicente disse que, como o "Brasil é muito heterogêneo, são diversas situações diferentes. No Paraná, o programa de alimento seguro deu muito certo, e deve ser seguido pelos outros estados. Porém, existem outros estados em que a coisa está bem devagar. A liberação está sendo feita sem cuidados. Não basta uma autorização federal para que possamos usar. É preciso pensar nas consequências".
Leonardo defende que, antes de serem comercializados, os defensivos agrícolas devem passar por testes em laboratório, e os que apresentarem riscos à saúde, como possibilidade de causar câncer, má-formação de fetos, alterações no DNA ou hormonais, devem ser proibidos pela legislação. Segundo dados do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) da Anvisa, de 2013 a 2015, 98,89% das amostras não foram identificadas situações de potencial risco agudo, e 80,3% das amostras foram satisfatórias, sem resíduos irregulares.
Por fim, Leonardo Vicente entende como positiva a participação do STF neste assunto. Segundo ele, trata-se de um fato importante, pois é fundamental que vários órgãos "vejam e entendam a importâncias dessas substâncias".
"São substâncias que, pela própria estrutura, são feitas para matar. Porque há organismos que estão competindo com a gente, então tem que matar o organismo que está matando. Só que [os agrotóxicos] podem causar danos à saúde de quem está aplicando e de quem está consumindo o produto. Agora, se medidas mitigatórias forem tomadas, dá para reduzir ou eliminar [o risco] a níveis aceitáveis. Então, tanto o STF, como a Anvisa, Ibama e o próprio Ministério da Agricultura, todo mundo faz uma parte deste trabalho. A própria pesquisa, que está sendo desenvolvida, boa parte da retirada de produtos – eu faço isso com base em dados científicos, e a própria ciência – olhares do passado de que alguns produtos não tinham problema, hoje em dia conseguimos olhar com outra ótica. Sim, existe consequência na utilização [de agrotóxicos]. A própria ciência está avançando e a gente está conseguindo dar subsídios a vários órgãos reguladores a tomar decisões mais assertivas."