De acordo com o documento, lançado no fim de 2020, das 29.473 ocorrências de violência doméstica registradas pelas Forças de Segurança no ano anterior, em cerca de 5% (1.474), as vítimas eram brasileiras. É a única nacionalidade estrangeira citada nominalmente no relatório. As portuguesas respondem por 86% das denúncias. Mulheres de Países Africanos de Língua Portuguesa (PALOP), agrupadas, também somam 5%. Os 4% restantes dizem respeito à soma de outras nacionalidades não identificadas.
Dados solicitados pela Sputnik Brasil ao Itamaraty permitem inferir que Portugal é também um dos países em que as brasileiras sofrem mais violência doméstica no mundo. Dos 213 episódios com vítimas brasileiras no exterior entre janeiro e novembro de 2019, 18% (39) foram atendidos nos consulados-gerais do Brasil em Faro, Lisboa e Porto. O próprio Ministério das Relações Exteriores reconhece que "esses números são apenas uma referência e não esgotam as ocorrências, já que é possível haver subnotificação de casos dessa natureza".
Só o grupo Elas por Elas tem cerca de 60 brasileiras vítimas de violência doméstica em Portugal, que se reúnem quinzenalmente. A rede de apoio foi criada pela empresária capixaba Cristiana Oliveira, que já virou um símbolo da resistência feminina contra a violência em terras lusitanas. Mais do que isso, ela é uma sobrevivente. Em mais de quatro anos de relacionamento abusivo com um português, ela foi vítima de agressões contínuas, sexo sem consentimento, ameaças de morte a ela com armas e a parentes, tortura psicológica, apropriação indevida de documentos e bens, chantagem e humilhações.
Condenado à prisão, agressor português cumpre pena em liberdade
Não é exagero nem são "apenas" relatos dela. Sputnik Brasil teve acesso às 59 páginas da sentença de condenação do ex-marido de Cristiana. Na decisão do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no norte de Portugal, há quase 50 fatos provados, de acordo com o juiz local criminal de Vila Nova de Famalicão. O agressor português foi condenado a três anos e meio de prisão por violência doméstica e a pagar uma indenização de €10 mil (R$ 66.500) à brasileira.
A pena máxima para o crime é de cinco anos em Portugal, mas a dosimetria levou em conta o fato de o condenado não ter antecedentes criminais e "estar inserido profissionalmente". Para completar, a pena de prisão foi suspensa por ser inferior a cinco anos. De acordo com a sentença, a Lei nº 59/2007 "veio introduzir alterações profundas ao regime da suspensão da pena, alargando o âmbito do pressuposto formal desta pena de substituição [prisão aplicada em medida não superior a cinco anos, quando anteriormente esse limite era de três anos]".
Traduzindo do juridiquês, na prática, isso significa que o condenado vai cumprir a pena fora da cadeia, segundo o eufemismo jurídico da sentença, "devendo, por isso, ser-lhe dada uma derradeira oportunidade para o mesmo, em liberdade, interiorizar a gravidade das suas apuradas condutas e conformar a sua personalidade ao direito". Enquanto isso, Cristiana não se sente livre. Na última semana, ela recebeu da polícia um aparelho com GPS para monitorar a distância mínima de 500 metros que o português tem que manter em relação a ela. O agressor usa uma tornozeleira eletrônica. O caso foi revelado pela SIC.
Durante mais de duas horas de entrevista à Sputnik Brasil, a empresária capixaba de 46 anos detalhou os abusos sofridos entre 2014 e 2018, que deixou sequelas psicológicas até hoje.
"Ainda tenho depressão e tomo medicamentos. É um dia após o outro. Só saio de casa com aparelhos da polícia. É uma vida de prisioneira. Eu me considero em risco. Ele está livre. Ele mentiu esses anos todos que não tinha arma de fogo, mas a polícia foi lá [em casa] e encontrou várias armas", inicia a narrativa, ainda insegura.
De acordo com os fatos provados na sentença, no dia 21 de junho de 2018, no apartamento em que moravam em Vila Joane, no norte de Portugal, "o arguido exaltou-se, pegou primeiramente em uma arma de choque de sua propriedade, e apontou a mesma à cabeça da ofendida e mais tarde pegou em uma das suas armas de fogo e manuseou a mesma na presença da ofendida".
"Ele, bêbado, dentro do quarto, me chutando e fazendo barulho com o taser na minha cara. Ele estava com uma arma [de fogo] embaixo do travesseiro, me dava soco no queixo, joelho na barriga. Depois que eu estava bem machucada, ele estava no limite da agressão, pegou a arma, outro cartucho com munição e meteu dentro da arma. Pensei que ia morrer", conta Cristiana à Sputnik Brasil.
Na época, ela já andava com um aparelho com um botão de pânico, que, acionado, entrava em contato com a polícia. Os dois filhos brasileiros, frutos do primeiro casamento da capixaba, moravam com o casal. Um deles acionou o aparelho, e policiais da Guarda Nacional Republicana (GNR) foram até o local. Os militares apreenderam cautelarmente quatro armas: uma pistola calibre 22 LR, duas espingardas caçadeiras e uma pistola de choque. Hoje, como pena acessória, o condenado está proibido de usar armas. Mas apenas por três anos e meio.
"Ele começou a vestir a roupa, guardou a arma na caixa, escondeu o taser e a faca nas almofadas do sofá. Quando ele ia fugir, abriu a porta para sair, a polícia entrou e o algemou. Eu estava caída no chão, em prantos, quase nua", recorda.
Naquela noite, o casal e os filhos de Cristiana foram conduzidos a uma delegacia e, apesar das provas, o agressor foi liberado antes para voltar para casa. Segundo a sentença, quando regressou ao apartamento, ele atirou ao lixo toda a comida da mulher, quebrou pratos, garrafas e um quadro. Quando a brasileira voltou, o português continuou a ameaçá-la repetidamente, "dizendo-lhe que um dia ela apareceria morta e ninguém saberia dela, porque ele faria bem as coisas", conforme os fatos provados na decisão judicial.
"Cheguei em casa quase de manhã, ele estava no sofá, pegou toda comida e jogou fora, furou todas as caixas de leite e suco, jogando na pia. Fiquei quase sem comida umas duas semanas. Meus filhos traziam para mim, mas, quando ele percebia que a gente estava comendo na marmita, jogava no lixo. Ele gritava que eu ia morrer de fome, 'porque toda brasileira é puta e tem que sofrer o que puta sofre'. Alguns vizinhos também levavam comida quando ele saía. Fiquei igual uma mendiga dentro de uma casa luxuosa sem comer", compara.
'Ele me forçou a fazer sexo poucas horas após uma cirurgia no coração'
Os termos de baixo calão também estão registrados na sentença. Além dos xingamentos, Cristiana, muitas vezes, era obrigada a fazer sexo forçado. Uma das situações que mais chamam atenção em sua narrativa foi quando ela teve que fazer uma cirurgia no coração. Ao receber alta do hospital, o médico recomendou repouso absoluto, proibindo-a de fazer esforço e de ter relações sexuais por 15 dias. Segundo ela, o ex-marido ouviu as instruções médicas, mas as ignorou e desrespeitou na mesma noite.
"Ele tinha ouvido o médico, mas mesmo assim me forçou a fazer sexo poucas horas depois. Chegou uma época, em que começou a me enforcar, abusar sexualmente de mim, me violentar, me dar soco na cabeça: me estuprava mesmo", relata.
De acordo com os fatos provados na sentença, o condenado exigia que ela tivesse relações sexuais com ele, empregando o uso da violência. Em uma ocasião, dentro de uma autocaravana, ele empurrou Cristiana, puxou seu braço esquerdo e distendeu o músculo do mesmo. "Nesse estado de subjugação psicológica a ofendida acabava por ter relações com o arguido, mesmo que não fosse de sua vontade. Quando por algum motivo a ofendida não conseguia manter a relação sexual, por vezes, pontapeava-a, deixando-a com hematomas nas pernas e nas nádegas", destaca a sentença.
Mas como uma empresária bem-sucedida, que tinha cinco clínicas de medicina chinesa no Espírito Santo, aguentou tanto sofrimento por mais de quatro anos? Por que não fugiu? As perguntas, óbvias, têm respostas não tão simples. Cristiana até tentou fugir algumas vezes da quinta em que morava inicialmente com seu ex-marido em Sintra, a meia hora de Lisboa. Em uma delas, em 2017, conseguiu escapar da grande propriedade rural e se escondeu por quatro meses na casa da filha do primeiro casamento do agressor, que testemunhou a favor da brasileira no tribunal.
Durante aquele período, teve distúrbios alimentares, como bulimia. Mesmo longe do algoz, não se sentia em paz. Havia motivos. O português criou contas falsas em redes sociais com fotos e dados da mulher, inclusive o número do celular, dizendo que ela oferecia serviços de prostituição. Além disso, as ameaças de morte passaram a ser não apenas a Cristiana, mas a seus filhos e até as suas mãe e avó, que moram no interior do Espírito Santo, no Brasil. Ele chegou a invadir a residência estudantil em que um dos filhos dela morava, em Coimbra.
"Um dia, ele me mandou uma mensagem falando que tinha contratado um matador de aluguel para matar minha mãe e, se eu não voltasse, ia matá-la. Minha mãe e minha avó de 90 anos ficaram em pânico porque não sabiam o que estava acontecendo. Em outro dia, ele disse que estava indo a Coimbra atrás do meu filho para matá-lo. Uns amigos o tiraram de lá antes. Ele arrombou a porta, revirou o quarto inteiro, tirou fotos e me enviou. Com tudo isso, tive que voltar para ele para minha família ficar em paz. Pensei: 'se tiver que apanhar, apanho eu'", explica.
No dia 12 de novembro de 2020, Cristiana começou uma nova vida, com a condenação do ex-marido. Para ela, ainda é pouco. Há outro processo judicial no qual requer € 78 mil (R$ 518.700,00), segundo ela, retirados ilegalmente de sua conta bancária pelo português com a ajuda de um gerente de banco. Em um terceiro, ela reivindica a posse de veículos que teriam sido comprados com seu dinheiro, entre elas uma moto BMW. Questionada por Sputnik Brasil se voltando ao seu país de origem não viveria com maior segurança e em paz, ela arremata.
"Já sofri demais e não posso abandonar. Provei que tudo era meu. Agora, que ele foi condenado de alguma forma, não posso virar as costas e ir embora. No grupo que criamos, já recebemos histórias de 60 brasileiras de algum tipo de violência, mas não levaram à frente Espero que o meu caso sirva para outras brasileiras e imigrantes irem até o fim: que não tenham medo de dar queixa", conclui.
O Itamaraty informa que a rede consular brasileira no exterior procura atender a esses casos sempre em parceria com órgãos oficiais locais, organizações não governamentais e a própria comunidade brasileira. Segundo a nota enviada à Sputnik Brasil, 15 repartições consulares brasileiras no mundo mantêm contratos com psicólogos ou assistentes sociais dedicados, entre outros, ao tema da violência doméstica.
"Em parceria com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, o Itamaraty tem levado ao exterior o 'Ligue 180', Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. Mediante essa parceria, mulheres brasileiras no exterior podem ser atendidas gratuitamente por uma 'hot line' no Brasil", lê-se na nota.