No Brasil, apesar da laicidade do Estado e dos direitos constitucionais, a intolerância religiosa continua sendo um problema grave e tem como principal alvo as religiões de matriz africana, um fenômeno que se entrelaça com a história da escravidão no país e a presença do racismo. Ao longo dos séculos, essa perseguição mudou de forma e hoje se expressa tanto na política institucional e na atividade de fundamentalistas religiosos, até a ação de grupos armados de traficantes e milícias em favelas.
É o que explica o babalaô Ivanir dos Santos, professor doutor que leciona no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O pesquisador ressalta que o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa expressa um quadro grave, sendo comemorado no dia 21 de janeiro, justamente em homenagem a uma vítima fatal da intolerância religiosa. A data foi determinada pela Lei 11.635, em 2007.
"É o dia que morre uma sacerdotisa de candomblé na Bahia, logo após ela ver sua foto estampada na Folha Universal - o jornal da Igreja Universal - a chamando de charlatã. Ela teve um AVC e faleceu neste dia. Isso mostra completamente o quanto a intolerância religiosa cria vítimas de morte", aponta o babalaô Ivanir dos Santos em entrevista à Sputnik Brasil, lembrando a morte da baiana Gildásia dos Santos, a Mãe Gilda, em 1999.
"Os dados estão subestimados porque não falam justamente dessas áreas ocupadas. O tráfico em aliança agora com a milícia [...] intimida, inclusive, a prática [religiosa] em si, o que faz com que ninguém vá denunciar. Se levar em conta quantos lugares religiosos ali estão silenciados, são vários", avalia o pesquisador e babalaô Ivanir dos Santos.
No Rio de Janeiro, há um histórico de décadas de intimidação de grupos armados contra religiões de matriz africana. Em 2019, por exemplo, um grupo de traficantes chamado "Bonde de Jesus" foi preso por realizar ataques contra terreiros. Já no ano passado, uma aliança entre milícias e traficantes evangélicos proibiu a prática de religiões de matriz africana em um conjunto de favelas nomeado de "Complexo de Israel". Para o professor, o recrudescimento dessa prática mostra falta de ação do poder público diante dos dados e denúncias ao longo dos anos.
"[A melhora na coleta dos dados] não quer dizer que houve uma atitude concreta dos órgãos responsáveis com relação a isso, tanto que estamos vendo aí o caso da comunidade de Israel, como ela se fortalece, como ela se amplia. Isso já demonstra que não houve, de fato, uma ação efetiva nesse campo", lamenta o babalaô, que acrescenta que a área da Educação também falha ao não aplicar a Lei 10.639, que obriga o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas do país.
Em 2016, o pesquisador Ivanir dos Santos publicou, junto à Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), o primeiro relatório nacional sobre o tema. Neste ano, o babalaô é um dos organizadores de um seminário sobre o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, transmitido on-line devido à pandemia da COVID-19. Santos reforça que a criação de uma data simbólica como a de 21 de janeiro ampliou o debate em torno da questão e ajudou a chamar atenção para as denúncias.
"Antes, só nós aqui do Rio de Janeiro, da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa tínhamos uma atividade nesse dia para lembrar a data, e na Bahia, onde se inaugurou um busto dela [Mãe Gilda]. Hoje, se observar, até no cenário político nacional, estão todos os setores falando sobre isso", diz o professor, que foi laureado em 2019, nos Estados Unidos, com o Prêmio Internacional de Liberdade Religiosa.
Direito tardio, perseguição histórica e ambiente político
O cientista político Paulo Baía, professor da UFRJ, recorda que mesmo após a abolição da escravatura, a população negra brasileira enfrentou décadas de criminalização das religiões de matriz africana. É só a partir da Constituição de 1946 que a liberdade religiosa é introduzida no texto constitucional brasileiro, apesar de que a perseguição institucional continuou até a Constituição de 1988.
"Aí a perseguição muda para atentados de natureza mais civis, não diretamente ligados ao Estado, como foram até 1988. É evidente que essa perseguição às religiões de matriz africana está diretamente ligada à estrutura racista, de embranquecimento e de desafricanização do Brasil posta em prática a partir de 1850 com a política pública de fazer com que o Brasil deixe de ter uma maioria negra e africana", explica Baía em entrevista à Sputnik Brasil.
"Essa presença gera tensões em função de, sobretudo, discriminar minorias religiosas, como as minorias de igrejas de matrizes africanas, da mesma maneira que se coloca contra outras denominações religiosas. Então, esse crescimento é um crescimento não dos religiosos, mas de uma visão cristã que faz com que se tente estabelecer uma hegemonia cristã que eu chamo de calvinista com a cosmovisão cristã sendo imposta a todos os demais brasileiros", explica.
Perseguições que ganharam forma como as do Complexo de Israel no Rio de Janeiro estão, segundo o professor Paulo Baía, diretamente ligadas a esse ambiente no poder público.
"Quando você tem presente essa ideia no poder público, a prática criminal da discriminação, do atentado e da violência contras as igrejas de matriz africana é quase legitimada, não apenas pela inação, não apenas pela omissão, mas com uma certa conivência, com uma certa aprovação. O caso do Rio de Janeiro, em particular, deve ser analisado como essa imbricação do crime organizado, das facções criminosas e da milícia, com extensão de braços do poder público", explica o pesquisador.
Ativista judeu prega solidariedade inter-religiosa
O engenheiro Sérgio Storch é judeu e fundador da Frente Inter-Religiosa Dom Paulo Evaristo Arns por Justiça e Paz. A organização realiza em São Paulo atos anuais em comemoração à data de 21 de janeiro, reunindo líderes de diversas religiões. O evento deste ano será transmitido de forma virtual devido à pandemia da COVID-19 e no ano passado esteve em 22 cidades. Apesar do engajamento, Storch acredita que a comunidade judaica não sofre perseguição no Brasil, mas salienta que isso ainda ocorre em outros países.
"A comunidade judaica do Brasil não sofre perseguição religiosa. Então, a comunidade judaica, não estou falando de outros lugares, estou falando daqui, é muito apática em relação a isso. A verdade é essa, ela é muito apática. Com exceções que são os grupos da comunidade judaica ajudando, apoiando as minorias que são efetivamente vítimas do ódio religioso", afirma Storch em entrevista à Sputnik Brasil.
"O uso que se tornou comum dos símbolos religiosos judaicos por parte do Bolsonaro, por parte agora dos traficantes do Complexo de Israel, coisa mais absurda, é uma coisa muito revoltante para judeus que têm uma consciência judaica. É muito revoltante saber que a nossa bandeira, a bandeira de Israel, é usada por criminosos", desabafa.
O ativista, que recorda que fora do Brasil a comunidade judaica sofre perseguições de extremistas, organiza uma frente de diversas religiões em ações como a campanha "Genocídio Nunca Mais", e afirma que se engajou na luta contra a intolerância motivado pela solidariedade, principalmente em relação às religiões de matriz africana e aos povos indígenas.
"Para mim, é muito importante [o Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa]. Eu sinto uma responsabilidade moral em relação aos povos que hoje são perseguidos, porque o meu povo foi perseguido. Então eu sinto uma responsabilidade moral de solidariedade a indígenas e a negros, às religiões de matriz africana. [...] Para nós, a luta contra a intolerância religiosa faz parte da luta contra o genocídio, e isso está acontecendo no Brasil", conclui.