Entre 18 de fevereiro e 2 de março de 2020, a população cearense viveu dias de caos e medo por conta de uma paralisação de parte da Polícia Militar que permitiu um aumento muito significativo no número de crimes de diversos tipos em vários municípios do estado, incluindo a capital, Fortaleza. Membros do Exército e da Força Nacional precisaram ser acionados para evitar uma escalada ainda maior da insegurança.
No final do mês passado, a fundação InSight Crime, que se dedica ao estudo do crime organizado na América Latina e Caribe, publicou um balanço da violência em 2020, citando o Ceará como um dos destaques negativos do Brasil. No ano passado, esse estado brasileiro teve o fevereiro mais violento desde 2013, com 456 homicídios, dos quais 312 ocorreram durante os dias da paralisação dos policiais militares, classificada como ilegal e "um perigo para as instituições" por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
Em um ano, segundo o Diário do Nordeste, ao menos 130 policiais foram denunciados pelo Ministério Público do Ceará (MPCE), por meio da Promotoria da Justiça Militar, por participação direta ou indireta no motim, que teve como principal reivindicação um aumento salarial e consistiu, basicamente, em ocupação de quartéis, recusa à realização de patrulhamentos e tentativas de atrapalhar os trabalhos de colegas não amotinados. Ao todo, quase 250 militares foram afastados e respondem a processos administrativos disciplinares.
Uma ação errada na hora certa
"Estávamos às vésperas do Carnaval cearense, com muitos eventos de pré-carnaval acontecendo. Eu estava trabalhando na produção de um bloco carnavalesco semanal, e lembro que tomamos a decisão de contratar segurança privada, com receio de não poder contar com a polícia. Fizemos mudanças no horário, para acontecer mais cedo, tínhamos medo de grupos armados aparecerem, e calculávamos que as pessoas poderiam ter medo de vir festejar, sem a polícia nas ruas. Mesmo vendo os esforços do governo estadual, o medo continuava fazendo parte de todos os nossos planos", conta, em entrevista à Sputnik Brasil, uma moradora de Fortaleza, relembrando o período de tensões na capital cearense.
De acordo com ela, à época do motim, era compartilhada por muitos a opinião de que a ação parecia "muito estratégica", por ser justamente em um período no qual a demanda por policiamento era ainda maior.
"Uma vizinha passou por uma situação de violência doméstica. Nós ligamos para o Ciops [Centro Integrado de Operações de Segurança] três vezes, mas não veio nenhuma viatura. Ela poderia ter sido morta, que ninguém ia proteger essa mulher, mas, graças a Deus, não aconteceu. A população ficou muito descrente da Polícia Militar."
O pior momento, na opinião da entrevistada, foi quando, em Sobral, o senador Cid Gomes, ex-prefeito da cidade e ex-governador do estado, foi alvo de uma tentativa de homicídio quando tentava acabar com uma ocupação em um batalhão da PM, caso que segue em fase de inquérito.
'Sempre há uma motivação política'
O antropólogo e especialista em segurança pública Paulo Storani, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, acredita que o motim observado há um ano no Ceará foi, sem dúvidas, um ato ilegal que deve ser condenado e ter seus responsáveis devidamente punidos. No entanto, em declarações à Sputnik Brasil, ele avalia que a situação merece uma análise mais aprofundada, a fim de determinar se houve, de fato, ou não, uma motivação político-partidária por trás.
"Se as pessoas não sabem, os policiais militares não têm direito a sindicato, eles não têm direito a se organizar em uma representação sindical. Eles podem ter associações, que, normalmente são quem representam a categoria junto ao próprio comando ou ao próprio governo do estado. Mas, se há motivação política, partidária — esse que é o problema, se é uma motivação político-partidária —, isso tem que ser avaliado. Mas, em uma situação como essa, sempre há uma motivação política, no seguinte sentido: de relações e interesses que são ou desrespeitados ou que querem que prevaleçam sobre a intenção, por exemplo, do governante", afirma.
A via escolhida pelos amotinados, na opinião de Storani, mais depõe contra a instituição do que ajuda. Mas, para ele, tal episódio também evidencia que a crise só chegou a esse ponto porque "foram cortadas todas as possibilidades de diálogo" por parte do governo estadual. E ele lembra que, antes do Ceará, algo semelhante já havia ocorrido no Espírito Santo, funcionando como "um grande laboratório".
"Faltou, com certeza, habilidade, capacidade do governo do estado do Ceará, mas também do próprio comandante geral da instituição, que marcou a sua história, a sua carreira, com uma situação lamentável como essa."
Para o especialista, a responsabilização dos envolvidos no motim de 2020 é importante também como parte de um processo de resgate da imagem da corporação.
"Se vai acontecer ou não, aí é um outro caso. Pensando em Brasil, só se houver um interesse político em punir aqueles que violaram a norma no caso, os líderes do movimento, enfim. Há uma motivação política? Talvez. Mas uma motivação política vai determinar também se as pessoas vão ser punidas ou não."
Novos motins são possíveis?
Em 2019, o Ceará teve uma redução de 50% nas mortes provocadas por crimes violentos. Entre homicídios dolosos, feminicídios, latrocínios e lesões corporais seguidas de morte, foram 2.257 casos, contra 4.518 no ano anterior. Esse foi o melhor resultado da década, conforme informações da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social.
Ainda de acordo com a pasta, a taxa por 100 mil habitantes também foi a menor em dez anos, caindo de 49,8 em 2018 para 24,7 no ano seguinte. Ao mesmo tempo, o índice de resolutividade dos inquéritos policiais relacionados a mortes provocadas por crimes violentos passou de 27,2% para 39,7% em 12 meses, contra cerca de 9% da média nacional.
Após o motim e em meio à pandemia da COVID-19, o número de assassinatos no estado em 2020 ficou em 4.039, aumento de quase 80%, enquanto aumentaram também as mortes provocadas por intervenção policial — de 136 para 145, com recorde de 35 ocorrências em abril, apesar do isolamento social —, como destaca a Rede de Observatórios da Segurança.
Um ano após o motim da PM, o cenário da segurança pública no Ceará se deteriorou. Entenda a perspectiva nada animadora para os próximos meses no artigo de @ricardoxmoura: https://t.co/qjy0cPZ9KW pic.twitter.com/zftBvatEbn
— Rede de Observatórios da Segurança (@rede_seguranca) February 18, 2021
"Diante desses desafios, o que se pode destacar é uma anuência velada aos policiais militares pelo próprio governo do estado. Como foi denunciado pela própria Rede de Observatórios, diversos crimes cometidos por PMs em serviço foram registrados em 2020 sem que fossem devidamente investigados e punidos. Tais casos também não mereceram uma condenação pública tanto do governador quanto dos dois secretários da Segurança Pública que atuaram desde então", escreve o coordenador da iniciativa no estado, Ricardo Moura.
A fim de afastar a possibilidade de novos motins e dar uma resposta eficaz aos "desvios" registrados no ano passado, Moura defende que os "órgãos de controle e de fiscalização da atividade policial precisam ser reforçados", o que, segundo ele, não vem ocorrendo até agora.
"A grande novidade na área da segurança pública foi o anúncio, em dezembro, de mais um concurso público para a Polícia Militar com 2,2 mil vagas. É importante que o efetivo seja reforçado, mas a formação e a punição dos maus militares não podem ser deixadas de lado sob o risco do que ocorreu em fevereiro de 2020 se torne realidade mais uma vez."