As mulheres estão celebrando o 8 de março em um ano particularmente difícil: a pandemia levou todos para dentro de suas casas, em busca de segurança contra o vírus. Para as mulheres, no entanto, o próprio lar não necessariamente é um espaço seguro.
De acordo com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), em 2020, cinco casos de feminicídio e violência contra a mulher foram reportados por dia no Brasil. Os dados apontaram para um pico de casos nos meses de quarentena.
Nesse contexto, pesquisadoras de Relações Internacionais reunidas no grupo MaRIas, vinculado ao Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (IRI-USP), nos convidam a questionar o que entendemos por "segurança".
"Mesmo que um país esteja com uma economia forte e sua segurança militar e alimentar garantidas, ele pode estar em uma guerra interna: em uma guerra civil contra as mulheres", disse Laira Rocha Tenca, coordenadora de Prospecção do grupo de pesquisadoras de Relações Internacionais MaRIas.
Segundo ela, para que uma sociedade seja realmente "segura", as mulheres devem ocupar lugar igualitário na política, economia e sociedade.
"Não quero adotar a narrativa de que se tivéssemos mulheres na política, automaticamente ela seria mais justa, igualitária e eficaz", disse Tenca. "Mas é inegável que mulheres fazem a diferença, basta olhar para a resposta para a crise sanitária da primeira-ministra da Nova Zelândia ou da chanceler da Alemanha."
Com pouco mais de dois mil casos e 26 mortes em decorrência da COVID-19, a Nova Zelândia, liderada pela primeira-ministra Jacinda Ardern, é considerada modelo no combate à pandemia de COVID-19.
Para Tenca, no entanto, a desigualdade entre os gêneros, que se manifesta na diferença salarial e no acesso à educação, "estão impedindo as mulheres de fazerem política internacional".
Para mudar esse quadro é necessário bastante debate e jogo de cintura.
"Como a questão de gênero mexe com relações culturais, que são pessoais em alguma medida, elas não podem ser modificadas do dia pra noite", disse Beatriz Azevedo Coutinho, mestre em Relações Internacionais pela USP e coordenadora do grupo MaRIas.
"Antes, o mundo queria colocar um Band-Aid em cima de uma ferida muito grande. Queria achar soluções muito fáceis para problemas muito complexos", disse Coutinho. "Mas é difícil encontrar soluções que agradem a todos, [...] então precisaremos encontrar um meio termo."
Mulheres na Política Internacional
As Relações internacionais se focam em temas amplamente atribuídos à masculinidade, como guerras, defesa e poder.
"Política Internacional é um mundo de homens: um mundo de poder e conflito, no qual conduzir a guerra é um privilégio", escreveu a pesquisadora J. Ann Tickner, "uma das fundadoras desse campo de estudo", de acordo com Coutinho.
Para Tickner, a ideia que temos de cada gênero seria definida como um "pacote de expectativas": esperamos que mulheres se comportem de determinadas maneiras, e os homens de outras. Da mesma forma que esse "pacote" foi construído, ele poderia ser destruído, ou pelo menos modificado.
Um passo nessa direção seria garantir a inserção de mulheres nesse ambiente "masculino", o que se provou uma tarefa bastante desafiadora.
"As próprias diplomatas mulheres no Itamaraty raramente viram colegas serem promovidas a embaixadoras", pontuou Tenca.
Segundo ela, questões como o cuidado com os filhos e com a carreira do marido muitas vezes tomam a dianteira.
Essas "questões materiais" impactam não só "como a mulher vai desempenhar seu papel político na sociedade", mas também a própria formulação da política externa brasileira.
Mesmo na área acadêmica, as pesquisadoras enfrentam obstáculos materiais que dificultam sua inserção na política internacional.
"O governo atual já sinalizou que projetos sobre [relações de] gênero não vão receber financiamento. [...] Estamos com um governo que retira a palavra "gênero" de documentos, inclusive de documentos sobre merenda escolar, quando o termo se referia a gêneros alimentícios. É nesse momento que estamos fazendo pesquisa", lamentou Tenca, que é doutoranda na Universidade de Brasília (UnB).
A falta de representatividade na diplomacia e pesquisa não intimida a participação das mulheres nas Relações Internacionais.
"As mulheres já se organizavam internacionalmente para tentar impedir conflitos como a Primeira Guerra Mundial, lutaram pela formação da Liga das Nações e da Organização das Nações Unidas", contou Coutinho.
"Elas tentaram barrar essa economia política internacional baseada na guerra", disse a especialista. "A guerra gera dinheiro, mas afeta as mulheres, que já sofrem com a violência de forma muito ampla."
Segundo Tenca, "quando um Estado está em guerra, todos nós entendemos o que isso significa para a sua soberania e como coloca em risco as suas forças produtivas".
"Mas raramente a gente para pra pensar que as mulheres estão em constante estado de guerra e conflito, lutando pela sua sobrevivência e dignidade a cada dia", afirmou a coordenadora.
Para ela, a condição vulnerável das mulheres é uma ameaça à sociedade como um todo, uma vez que "elas fazem o trabalho reprodutivo e são as geradoras da vida de uma nação. Sem mulheres não há vida dentro de um Estado".
Mulheres e solução de conflitos
A contribuição das mulheres em processos de reconciliação e solução de conflitos pode fazer a diferença, relatou Coutinho.
"Na Libéria [...] as mulheres interferiram na segunda guerra civil de forma muito potente: se organizaram tanto na esfera da desmobilização, que é trazer o ex-combatente de volta para a sociedade, quanto para viabilizar os acordos de paz", disse Coutinho.
A mobilização levou à eleição da primeira mulher presidente do país, a ganhadora do Nobel da Paz, Ellen Johnson Sirleaf, em 2006.
O processo de mobilização de grupos vulneráveis na Libéria não veio sem retrocessos.
"A então secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, tentou apoiar a comunidade LGBTQIA+ da Libéria e forçar a revogação de uma lei [local] que proibia a sodomia", contou Coutinho.
A representante de Washington teria inclusive condicionado a revogação da lei à concessão de financiamento externo para a economia da Libéria.
"Quando esse debate foi trazido de fora e de uma forma muito forte [...] gerou um debate interno negativo", relatou a especialista. "As pessoas passaram a ser mais perseguidas e o parlamento tentou endurecer as leis. Foi um total retrocesso."
Por isso, ela enfatiza que as políticas de gênero devem ser adotadas de forma a não causar danos para a própria população que se procura proteger.
Na América Latina, as questões de gênero foram abordadas durante as negociações de paz entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
"Uma das propostas foi excluir da anistia crimes de estupro", contou Tenca. "Isso é importante porque se nós temos a anistia a esse tipo de crime, a gente entraria num período de paz [...] mas declaramos que é tudo bem uma nação continuar em guerra contra as mulheres."
Esses casos ilustram que não só nesse 8 de março "as mulheres devem ser compreendidas como centrais ao Estado-nação, como de fato elas são", concluiu Tenca.
Nesta segunda-feira (8), é comemorado o Dia Internacional da Mulher. A comemoração da data remonta ao ano de 1917, quando mulheres russas realizaram manifestações por melhores condições de vida no país. Em 1975, a data foi adotada oficialmente pelas Nações Unidas e passou a ser celebrada internacionalmente.