A pouco mais de um ano da corrida presidencial, França está tomado por um debate peculiar sobre o termo "islamoesquerdismo".
De acordo com alguns ministros do gabinete do presidente Emmanuel Macron, o islamoesquerdismo estaria se apoderando do sistema educacional francês.
Em fevereiro, a ministra da Educação Superior, Frédérique Vidal, causou furor ao pedir uma investigação sobre pesquisas "islamoesquerdistas" nas universidades, classificando a suposta abordagem de "não científica".
Para a ministra, professores estariam usando universidades como espaço para promover movimento que une o islamismo radical à extrema esquerda.
"É um termo difícil de entender [...] que foi apropriado pela extrema direita como um espantalho", disse o professor do Sciences Po de Paris, Thomás de Barros.
"Em uma entrevista caricatural, a ministra Vidal confirma a afirmação de que o 'islamoesquerdismo' seria uma aliança entre aiatolá Khomeini e Mao Zedong", relatou o especialista brasileiro radicado na França.
Ambos já falecidos, aiatolá Khomeini foi o líder da Revolução Iraniana de 1979 e Mao Zedong, o líder da Revolução Comunista chinesa iniciada em 1945.
Mas não é só o islamoesquerdismo que é alvo de críticas na França. Pesquisas sobre racismo e gênero, chamadas genericamente de estudos interseccionais, também são temas delicados.
"Existe uma ideia na França chamada republicanismo [...] que defende uma igualdade radical entre os cidadãos. A ideia de que a nação francesa é uma e indivisível e que todos são iguais perante a lei, sem privilégios", explicou Barros. "Esse imaginário está presente até hoje."
Segundo Barros, "esse discurso diz que qualquer tentativa de agrupar as pessoas em subgrupos dentro da nação é um atentado à unidade nacional".
Logo, ao pesquisar problemas atinentes a grupos sociais desfavorecidos, como negros, mulheres e, no caso francês, árabes, os estudos interseccionais estariam dividindo a nação francesa.
"Ao contrário de países anglo-saxões ou mesmo do Brasil, a França rejeita políticas como a de cotas, seja racial ou de gênero, encarada como uma forma de segregar as pessoas", disse Barros.
Essa concepção é levada à risca no país: "Na França é proibido perguntar a cor da pele das pessoas no censo, por exemplo. Os pesquisadores não têm acesso a essas informações."
"No Brasil, com dados do IBGE ou do DIEESE, você consegue saber qual a diferença salarial média entre um trabalhador branco e um trabalhador negro", explicou Barros. "Na França essa informação não existe."
Sem dados estatísticos, acadêmicos teriam dificuldades para abordar temas como guetização, discriminação de filhos de imigrantes de terceira geração e desigualdade de oportunidades.
"Os pesquisadores na França têm uma dificuldade de lidar com isso e, quando tentam, são acusados de islamoesquerdismo", disse Barros.
Segundo ele, "a ideia de uma sociedade que fecharia os olhos para as diferenças funcionava em alguma medida enquanto [a França] era uma sociedade homogênea".
"Depois da Segunda Guerra Mundial, a França estimulou a vinda de trabalhadores das colônias – negros, árabes e povos da Indochina – para trabalhar na reconstrução, transformando-a em uma sociedade mais plural", disse Barros.
Essa mudança de configuração social trouxe consigo temas como o racismo e a islamofobia para o debate político.
Esse debate é mais sensível ainda se considerarmos o histórico de ataques terroristas perpetrados na França.
"A França é o país do mundo ocidental que teve mais casos de ataques terroristas ligados a grupos fanáticos religiosos muçulmanos", lembrou Barros. "Então quando as pessoas dizem que existe racismo e islamofobia no país, elas são acusadas de estar vitimizando, 'passando pano' para os terroristas."
Para ele, se debruçar sobre as causas da discriminação contra grupos desfavorecidos não significa apoiar o terrorismo.
"Estudar processos de discriminação e achar que políticas reparatórias possam ser importantes [...] não significa apoiar com grupos fanáticos religiosos de qualquer natureza", disse Barros.
Eleições
O termo islamoesquerdismo foi forjado pela primeira vez na França ainda na década de 90. A sua volta ao debate público pode estar ligada à aproximação do processo eleitoral do país.
O atual presidente, Emmanuel Macron, considerado uma figura de centro, deve enfrentar a líder da extrema direita Marine Le Pen na corrida presidencial de 2022, repetindo cenário do último pleito, em 2017.
"As eleições estão polarizadas entre Macron e Marine Le Pen. Ele segue favorito, mas, se vencer, será por uma margem menor do que a obtida em 2017", acredita Barros.
Recentemente, os ministros da Educação Nacional, Jean-Michel Blanquer, a ministra da Educação Superior, Frédérique Vidal, e o ministro do Interior, Gérald Darmanin, fizeram declarações próximas à extrema direita.
Centralizador, o presidente Emmanuel Macron dificilmente teria sido pego de surpresa pela abordagem de seus ministros, acredita Barros.
"Macron está deixando esse discurso rolar. Não demitiu ainda nenhum desses ministros. Então me parece que é uma estratégia deliberada visando agradar os eleitores da extrema direita", disse Barros.
Para o professor, a estratégia pode não só falhar em absorver eleitores de Le Pen, mas também afugentar eleitores mais à esquerda.
"Não acredito que os eleitores da Marine Le Pen vão passar a votar em Macron porque ele agora esposa um discurso conservador ou de extrema direita", disse Barros. "Por outro lado, as pesquisas mostram que uma parte importante do eleitorado de esquerda está dizendo que não votaria nele."
Nesse contexto, pode ser difícil que forças democratas e republicanas se unam em torno de um nome para barrar a extrema direita francesa, como ocorreu nas eleições presidenciais de 2002 e 2017.
Acossado por um governo que teve dificuldades de realizar promessas de campanha, Macron pode estar brincando com o fogo do extremismo para tentar manter seu posto no Palácio do Eliseu.