Após a carta enviada por 65 eurodeputados a António Costa pressionando para que ele suspendesse o acordo, há um mês, no último domingo (7), uma nova missiva endereçada ao primeiro-ministro português, dessa vez pelo vice-chanceler da Áustria, Werner Kogler, pediu que se evite "qualquer manobra" para facilitar a votação do texto do tratado UE-Mercosul.
Em ambos os casos, a política ambiental brasileira foi citada como justificativa para o entrave. O Parlamento austríaco, por exemplo, rechaçou o documento por considerar que o texto atual não contém cláusulas suficientes para combater o desmatamento na Amazônia brasileira.
Na última semana, contudo, Augusto Santos Silva, ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal, disse, na Assembleia da República, que a presidência portuguesa do Conselho da UE está trabalhando, com os países do Mercosul, em uma "clarificação política adicional" sobre os padrões ambientais no acordo.
"Está em curso um diálogo sobre o reforço da cooperação quanto à dimensão do acordo, relativa ao desenvolvimento sustentável, considerando a implementação do acordo de Paris e a questão da desflorestação. Daremos imediatamente sequência a essa proposta de clarificação e esperamos vivamente que haja avanços durante a presidência portuguesa", afirmou Santos Silva à agência Lusa.
O chanceler, que atualmente lidera o Conselho de Negócios Estrangeiros da UE, ressaltou que os avanços no processo dependem de um primeiro passo da Comissão Europeia, porque cabe a ela propor essa clarificação. Apesar de Santos Silva não ter citado nominalmente o Brasil como entrave ao acerto, Valdis Dombrovskis, vice-presidente executivo da Comissão Europeia e responsável pela pasta do Comércio, já o havia feito na semana anterior.
"Estamos cooperando com as autoridades do Mercosul, nomeadamente do Brasil, para discutir que compromissos adicionais estes países podem adotar relativamente ao combate às alterações climáticas e à desflorestação da Amazônia para que possa haver uma implementação bem-sucedida do acordo", disse Dombrovskis durante apresentação da proposta de revisão da política comercial da UE.
Especialista diz que cabe a Portugal evitar sepultamento do tratado
Especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil consideram improvável que o tratado seja ratificado até o fim de junho, quando acaba o mandato da presidência portuguesa no Conselho da UE. Doutora em Direito Internacional Público pela Universidade Autônoma de Barcelona (UAB), Anna Ayuso considera que caberá ao primeiro-ministro de Portugal evitar que o acordo seja sepultado após 20 anos de negociação, o que seria visto como um descrédito das relações.
"Penso que, durante a presidência portuguesa, na melhor das hipóteses, será possível avançar na aproximação de posições a algumas questões pendentes, incluindo as ambientais. Mas a oposição de alguns países e os tempos parlamentares tornam praticamente impossível a conclusão do acordo neste semestre, de forma que, no máximo, a presidência portuguesa poderá impedir o sepultamento do acordo. Algo que seria percebido como muito negativo na região", avalia Anna Ayuso.
Questionada pela Sputnik Brasil sobre qual o real papel de Portugal nas negociações acerca do tratado, ela explica que a presidência do Conselho da UE só permite promover determinadas prioridades da agenda, mas sua eficácia depende da obtenção do consenso dos demais membros, o que, no caso do pacto comercial com o Mercosul, não há.
Anna Ayuso ressalta que a posição unilateral da Áustria e de outros membros do bloco, principalmente da França, torna muito difícil a união de vontades para buscar um consenso por meio de um acordo complementar sobre o meio ambiente.
Especialista sênior para a América Latina no CIDOB (Centro de Informação e Documentação Internacional de Barcelona), ela reconhece que os países contrários fizeram disso um problema interno com a aliança entre lobbies agrícolas e ambientalistas, mas refere que a política ambiental brasileira dificulta. Com isso, ela vê um distanciamento da ratificação, atrelado às agendas eleitorais de Alemanha e França.
"A presidência de Jair Bolsonaro no Brasil também não ajuda. Mas, acima de tudo, a mudança de posição na Alemanha, que, de um dos principais impulsionadores, passou para uma posição mais reticente. Provavelmente, por pressões dos setores mais protecionistas, pensando nas eleições de setembro de 2021. Depois das eleições, vai depender dos resultados. Mas vamos nos aproximar das eleições francesas, e será ainda pior", prevê.
Já Renato Flôres, diretor do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getulio Vargas (NPII/FGV), é um pouco mais otimista. Mas nem tanto. Em entrevista à Sputnik Brasil, ele elogia a capacidade de negociação de António Costa e dos diplomatas portugueses, mas reconhece que o tempo é curto para que se ratifique o acordo até o fim da presidência portuguesa no Conselho da UE.
"É um papel importante, pois o primeiro-ministro de Portugal é um político muito habilidoso e inteligente, com poder de agenda, porque pode dar um destaque repetido e exigir aceleração de decisões com relação ao trâmite desse acordo. Se tiver o apoio da presidente da Comissão Europeia (Ursula von der Leyen), e parece que tem, exerce um certo poder de pressão. Não sou completamente otimista, mas acho que [a chance de ratificar] é de 50%", estima Flôres.
Doutor em Economia pela UFRJ e professor da Escola de Pós-graduação em Economia (EPGE), ele considera que a probabilidade de ratificação seja ampliada para 80% ou 85% até o fim do ano. Ele leva em consideração todos os trâmites burocráticos, lentos e pesados. Após ser aprovado em junho de 2019, o texto está sendo traduzido para os idiomas oficiais dos 27 países da UE e verificado juridicamente.
Professor brasileiro relativiza peso da rejeição austríaca
Depois de ser assinado pelos chefes de Estado, os legislativos de todos os 27 países integrantes precisam chancelá-lo. Os últimos passos são a análise e a aprovação pelo Parlamento Europeu. Flôres relativiza o peso da carta enviada pelo vice-chanceler da Áustria a António Costa e mesmo a rejeição do Parlamento austríaco ao acordo, que ainda pode ser revertida, segundo ele.
"A questão da Áustria está virando mais importante que ela é. A carta não foi enviada nem pelo primeiro-ministro nem pelo ministro da Economia. Foi pelo vice-chanceler, que representa as forças verdes no governo austríaco. Tem peso, mas não é tão contundente. Se houver outras ratificações e começar uma onda mais favorável, pode chamar um outro voto no Parlamento daqui quatro ou seis meses. Mas o prazo de junho fica exíguo", avalia.
Ainda que outros países como Alemanha e Holanda já tenham demonstrado a intenção de não ratificar o pacto, que também encontra resistência em outros parlamentos, tais quais os de Bélgica, Irlanda e Luxemburgo, é mesmo a liderança francesa que exerce o maior peso contra o tratado. O presidente Emmanuel Macron já disse se opor ao acordo "tal como está".
Flôres, que já foi professor visitante do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po) e do Departamento de Economia da Universidade Técnica de Lisboa, destaca que é do interesse de ambos os blocos que o tratado seja concretizado, apesar de haver forças contrárias que não são muitas, mas são fortes. Segundo ele, a questão ambiental é importante, mas há um lobby agrícola totalmente contrário que fala mais alto.
"No meio desse zoológico de 20 e tantos países diferentes, há vários, como a França, que têm grandes problemas com o Mercosul por causa da baixa competitividade de sua produção agrícola, de baixa escala. Quando entra a carne, não tem condições de competir com Argentina, Uruguai, Brasil e Paraguai", exemplifica.
Tanto ele quanto Anna Ayuso concordam que, caso o acordo não se concretize, a posição da UE seria enfraquecida em favor de outros atores, principalmente da China, mas também dos Estados Unidos, se Joe Biden decidir dar mais peso à política regional. Dessa forma, o fechamento do pacto comercial com o Mercosul aumentaria o poder de barganha do bloco europeu, por passar a ter um leque de economias mais relevantes.
Por sua vez, Andrés Malamud, Secretário-Geral da Associação Portuguesa de Ciência Política, é mais cético e não acredita que o acordo seja ratificado. Questionado pela Sputnik Brasil se a presidência portuguesa não teria nenhum papel nessa negociação, o investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa é incisivo.
"Só se [os portugueses] descobrirem uma fonte de financiamento para os agricultores franceses. Tudo depende de Macron. Se a França apoiar o tratado, ele é possível; o resto é palha", resume.