Desde 2018, movimentos internacionais capitaneados por mulheres tornaram-se cada vez mais presentes na China.
Em dezembro, o movimento #MeToo ("eu também", na tradução em português), que demonstra solidariedade às vítimas de assédio sexual que expões seus agressores, se reuniu em passeatas ao redor da China para acompanhar o julgamento de Zhou Xiaoxuan.
Apelidada de Xianzi, ela acusou um famoso âncora de TV de abuso sexual, em um dos primeiros casos de enfrentamento público da prática no país.
"A luta contra o assédio sexual é a ponta do iceberg da questão de gênero na China", disse Maria Rosa Azevedo, apresentadora do podcast Pagode Chinês, ligado ao laboratório Observa China, à Sputnik Brasil.
"Por ser uma sociedade muito machista, na China nem sempre o assédio é recriminado. Ele é muito normalizado", relatou a especialista em tecnologia.
Ela aponta, no entanto, que "para entender o feminismo no país, temos que evitar encarar a questão a partir da ótica ocidental".
"Na China, a questão de gênero está muito ligada à dualidade. O que colocamos como masculino e feminino aqui no Brasil, lá é visto como o passivo e o ativo, o fogo e o frio, o Ying e o Yang", relatou Azevedo.
Segundo ela, "o processo de urbanização acelerado mudou a relação entre homens e mulheres na China".
"Quando a China era uma economia essencialmente agrícola [...] o trabalho era dividido de forma mais equiparada entre homens e mulheres", relatou Azevedo.
Mas depois de "40 anos de crescimento econômico de dois dígitos, a China mudou. A classe média cresce cada vez mais e o nível de escolarização é muito maior".
Ela relata que, assim como no Brasil, a presença feminina nas universidades chinesas é por vezes superior à masculina.
"Temos uma juventude feminina chinesa que discute cada vez mais os papéis de gêneros, o feminismo e a maternidade", disse a especialista.
Reações
Em resposta à crescente mobilização feminina no país, o governo reconheceu pela primeira vez o crime de assédio sexual, em artigo do novo código civil, aprovado em 2020.
"Ao mesmo tempo em que as respostas do governo são um paliativo, elas também demonstram uma preocupação em resolver a questão", acredita Azevedo.
Medidas práticas contra a desigualdade de gênero são raras. A norma é que declarações de apoio às causas femininas fiquem só no discurso.
"Não só o governo, mas também grandes empresas como a Alibaba [...] trazem uma narrativa de que as mulheres são importantes e essenciais. Mas essas frases sempre são ditas por homens quando estão em cima de palcos", notou a especialista.
De fato, o dono da Alibaba, Jack Ma, faz discursos exaltando o papel das mulheres de forma reiterada, tanto dentro quanto fora da China.
Uma de suas primeiras intervenções sobre a questão feminina fez história: durante o Fórum de Davos de 2015, o fundador declarou "ter orgulho de que mais de 34% dos gerentes sêniores da empresa são mulheres".
"Elas realmente fazem com que a nossa empresa tenha o Ying e Yang balanceados" disse Ma na ocasião. "As mulheres contrabalanceiam a lógica e o instinto. Eu diria que esse é o 'tempero secreto' da empresa."
Apesar da retórica - que não deixa de associar as mulheres às funções emocionais, do cuidado e da cozinha - o ambiente de trabalho das empresas de tecnologia chinesas para as mulheres "tem níveis de humilhação bem dramáticos", conta Rosa.
A empresa Tencent, por exemplo, teve que apagar um incêndio midiático após vídeos de "trotes" humilhantes com funcionárias mulheres perpetrados por executivos de alto escalão da empresa vazarem nas redes sociais.
O discurso pró-mulheres de líderes de empresas de e-commerce também é motivado por interesses econômicos, acredita a especialista.
"Os números das plataformas de e-commerce mostram que homens só compram produtos para homens. Já as mulheres compram produtos para homens, mulheres, idosos e crianças. Quando você é confrontado com esses números, fica fácil dizer que as mulheres são importantes", ironizou Rosa.
Startups femininas
Veículos de mídias chineses e internacionais enfatizam a grande quantidade de mulheres fundadoras de startups na China.
A empresária Lucy Lei Peng, fundadora do braço financeiro da Alibaba, a Ant Financial, liderou o maior IPO empresarial da história, em 2016. Líderes como Melissa Yang, fundadora do aplicativo de hospedagem Tujia e Zhong Huijuan, dona da farmacêutica Hansoh, são apontadas como modelos para a nova geração.
"Dados do governo chinês revelam que cerca de 55% das startups do país tem como fundadora ou cofundadora uma mulher", disse Azevedo. "Os dados de outras fontes apontam que este número esteja em cerca de 30%."
A especialista acredita, no entanto, que "em nenhum país o setor de tecnologia é propenso à mão de obra feminina. Seja no Brasil, seja na China ou nos EUA".
Segundo ela, "desde a parte de desenvolvimento, passando pela parte de capital de risco até a avaliação de investimento, todo esse ciclo é feito por homens", revelou Azevedo.
"Elas são muito exaltadas por lá também com o objetivo de enfatizar que o modelo chinês seria mais igualitário do que o norte-americano", disse Azevedo.
Segundo ela, "os dados de mulheres fundadoras de startups nos EUA são realmente piores do que os da China".
"Nos EUA tem mais empresas de tecnologia com CEOs chamados "John" do que com CEO mulheres. E isso não é uma piada", disse Azevedo.
Portanto, "nesse quesito, os chineses estão um pouco na frente, sim. Tanto do Brasil, quanto dos EUA. Mas a maneira como isso é noticiado faz parecer com que a situação seja muito melhor do que ela realmente é dentro das startups", concluiu a especialista.