O presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou em outubro de 2020 diversas alterações no Código Brasileiro de Trânsito (CBT). Após a sanção presidencial, as novas regras passariam a valer em 180 dias, prazo concluído na segunda-feira (12).
Entre as principais alterações, as mudanças dificultam a suspensão da habilitação de motoristas, ampliam o prazo de renovação da Carteira Nacional de Habilitação (CNH), delimitam regras para o uso de cadeirinhas infantis e endurecem a punição para casos de motoristas que causarem morte ou lesão conduzindo veículos após a ingestão de bebida alcoólica, ou de drogas.
Para a advogada Rochane Ponzi, Integrante do Núcleo Jurídico do Observatório Nacional de Segurança Viária (ONSV), a mudança que mais trará impactos para a segurança no trânsito é a do aumento do limite de pontos na CNH, para a qual ela acredita que não houve embasamento técnico. Segundo ela, a medida privilegia a punição com multa, o que não seria o ideal. A alteração no CBT estende o limite de pontos na CNH de 20 para 40, caso o motorista não tenha nenhuma infração gravíssima.
"É a suspensão/cassação da CNH que efetivamente tem poder de mudar comportamentos no trânsito. Aliás, a história já nos mostrou que o simples peso no bolso não muda comportamento, principalmente para quem tem dinheiro. Aumentar o limite de pontos apenas por aumentar, tende a mandar o recado errado à população. Ou seja, de que está tudo bem cometer infrações", afirma a advogada em entrevista à Sputnik Brasil.
Segundo ela, diante das mudanças, o trabalho da sociedade civil organizada no Brasil será "árduo", caso as metas estabelecidas para 2030 pela Terceira Conferência Ministerial Global sobre Segurança Viária venham a ser cumpridas. Entre as metas está a redução pela metade das mortes no trânsito. Em 2019, cerca de 31 mil pessoas morreram em acidentes de trânsito no Brasil.
Ponzi ressalta ainda que será importante observar a aplicação da nova legislação, lembrando que a redação original do CBT, de 1998, "era muito boa, mas infelizmente nunca foi aplicada na sua plenitude".
"O que vai determinar se as mudanças foram um avanço (ou retrocesso) para a segurança de trânsito será o quanto os órgãos de trânsito, que fazem parte do Sistema Nacional de Trânsito, estiverem dispostos a fazer a sua parte e aplicar a lei da forma que ela ficou", afirma, apontando que a "condescendência" da nova legislação pode ser compensada pelo recrudescimento da fiscalização e por campanhas de conscientização.
Apesar das críticas, a advogada aponta alguns pontos positivos nas mudanças, como a regulamentação da cadeirinha, o aumento da idade para transporte de crianças em motocicletas, a punição para quem não realiza exame toxicológico e a endurecimento da punição para quem, dirigindo sob efeitos de álcool ou drogas, mata ou lesiona pessoas.
Uma boa legislação de trânsito deve proteger a vida, diz especialista
Para Armando de Souza, advogado e presidente da Comissão Especial de Acompanhamento e Estudo da Legislação do Trânsito no Conselho Federal da OAB, as mudanças no CBT não têm como foco a proteção das vidas e sim "facilitar a vida do motorista", o que é preocupante.
"Toda boa legislação de trânsito tem como objetivo a proteção da pessoa. Ela visa proteger a pessoa. Esta nova legislação de trânsito, o objetivo dela foi desanuviar os órgãos de trânsito que processam e julgam os procedimentos de infração de trânsito e facilitar a vida do motorista. Só esse fato desta nova lei não ter como principal objetivo a proteção da pessoa isso já me preocupa", afirma o advogado especialista em questões de trânsito à Sputnik Brasil.
O especialista destaca que a mudança é mais branda com motoristas profissionais, que poderão fazer exames de reciclagem para zerar os pontos na CNH. Para Souza, essa mudança é "um convite ao risco", pois os acidentes em rodovias, onde há mais motoristas profissionais, são os mais fatais.
Além disso, o advogado destaca que o aumento do prazo para a renovação da CNH não foi baseado em estudos, tendo em vista que a mudança que estabeleceu os prazos anteriores teve como objetivo combater as infrações de trânsito.
As mudanças na legislação são uma bandeira defendida pelo presidente brasileiro Jair Bolsonaro (sem partido), mas para o advogado, não é possível afirmar que haja intenções políticas na alteração.
"Não posso afirmar a você que tenha uma finalidade política, uma intenção política nisso, mas eu posso te garantir que, na verdade, esse governo, para mim, despreza a vida. Isso é um fato que ninguém pode negar, seja por falta de segurança sanitária e pode ser também por falta de segurança no trânsito", aponta o especialista.
Assim como a advogada Rochane Ponzi, Souza acredita que a legislação avançou em alguns pontos, como no caso da regulamentação das cadeirinhas. No geral, porém, especialista ressalta que a flexibilização da legislação não é algo que se faça em uma sociedade "responsável".
"Não é razoável em uma sociedade civilizada, com o número que nós temos de acidentes com mortes, pensar em flexibilizar [a legislação] com a segurança no trânsito. Acho isso inconcebível em uma sociedade responsável, que saiba que o dever do Estado é de zelar pela vida das pessoas", avalia.
Principais mudanças na legislação
Entre os principais pontos de alteração que entraram em vigor está a extensão da validade da CNH, que agora exigirá renovação a cada dez anos, ao invés de cinco, para pessoas com idade inferior a 50 anos. No caso de pessoas com idade igual ou superior a 50 e abaixo de 70 anos, o prazo será de cinco anos. Já para pessoas com 70 anos ou mais, a renovação será feita a cada três anos. Além disso, a obrigatoriedade de aulas noturnas para a obtenção da CNH foi suspensa.
No caso da perda da habilitação, a mudança também altera a quantidade de pontos que podem levar à suspensão da CNH. A partir de agora, o motorista terá a habilitação suspensa caso acumule 20 pontos se tiver duas ou mais infrações gravíssimas, 30 pontos se tiver uma infração gravíssima, e 40 pontos, mesmo sem infrações gravíssimas.
Já em relação à punição de motoristas acusados por homicídio culposo ou lesão corporal sob efeito de álcool, ou drogas, a conversão da prisão em penas alternativas foi proibida, endurecendo a punição.
Outras mudanças são a regulamentação da obrigatoriedade do uso de cadeirinhas no banco traseiro para crianças com menos de dez anos e com altura abaixo de 1,45 m, ao invés de considerar apenas a idade.
A idade permitida para crianças serem transportadas em motos também subiu de sete para dez anos. Ainda sobre motocicletas, a gravidade da infração sobre o não uso dos faróis foi reduzida de gravíssima para média.
Além disso, em casos de recall de automóveis por montadoras, o licenciamento do veículo só ocorrerá caso o automóvel passe pelas alterações exigidas pelo fabricante.