Ao longo da última década, o Brasil reduziu drasticamente a quantidade de tropas em missões de paz da Organização das Nações Unidas (ONU).
Em fevereiro de 2021, o país tinha 76 representantes em operações pelo mundo, o que corresponde a apenas 3% do número total de brasileiros no exterior há dez anos, na época da missão da ONU no Haiti, conforme publicou a Folha de S.Paulo.
Em 2011, o Brasil chegou a ter 2.493 representantes no exterior, segundo a publicação do jornal, com base em dados do Departamento de Operações de Paz da ONU, do Ministério da Defesa e do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada).
A Minustah, nome da missão no Haiti, era comandada pelo Brasil e se encerrou em 2017.
De lá para cá, o país encerrou sua participação na missão Unifil, no Líbano, em que era responsável pela força marítima, e recusou um convite para chefiar uma outra missão, na República Centro-Africana.
Segundo o cientista político Danilo Bragança, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e especialista em Defesa, a redução da participação brasileira no exterior se deve, principalmente, ao maior engajamento dos militares em questões domésticas.
Ele relembra que, ao final do primeiro mandato de Dilma Rousseff (PT), em 2013, iniciou-se um processo de quebra de confiança do governo federal com relação à classe militar.
Naquele momento, de acordo com o especialista, as Forças Armadas passaram a se mobilizar para questões políticas internas.
Ele explica que o movimento se intensificou a partir do segundo mandato da ex-presidente, culminando, dois anos depois, com o apoio à candidatura do atual presidente da República, Jair Bolsonaro.
Bragança ressalta que as crises políticas internas, como a do Rio de Janeiro, que resultou na intervenção federal no estado em 2018, no mandato do ex-presidente Michel Temer, também contribuíram para a redução das tropas nacionais no exterior.
"A redução passa pela necessidade de conter a sangria política interna, com as crises, desde o fim do primeiro governo Dilma, e com uma série de questões que fazem os militares se engajarem mais aqui", afirmou Danilo Bragança em entrevista à Sputnik Brasil.
Segundo o especialista, com os requisitos mais recentes exigidos pela ONU para as chamadas missões de paz, o militar brasileiro não é mais "profissionalizado como deveria". Para o professor, o currículo de soldados e oficiais brasileiros agora está "muito enfraquecido em relação a temas jurídicos e de direitos humanos".
"Nesse momento, a expertise brasileira no exterior é descartável, no sentido de que não há, notadamente, uma qualidade do oficialato ou dos soldados brasileiros em cumprir missões de paz a partir dos preceitos definidos na carta das Nações Unidas", explicou.
Reformulação das Forças Armadas?
O cientista político afirma que a redução das tropas brasileiras no exterior pode ter sido "providencial" neste momento.
Segundo ele, agora há uma "janela de oportunidade" para as próprias Forças Armadas brasileiras reformularem suas bases curriculares, permitindo que o soldado se profissionalize.
O especialista acredita que a classe militar precisa ser menos politizada e entender, efetivamente, seu papel em uma democracia e no jogo internacional.
"Com um processo profundo de reformulação das Forças Armadas, com mudança nas bases curriculares, nas competências e na formação, poderemos ter uma participação exterior mais importante, relevante e sustentável do que essa que propomos hoje", indicou Bragança.
Para o especialista em Defesa, as propostas brasileiras atuais para operações de paz são "falhas e essencialmente problemáticas, por conta da formação paupérrima de soldados, oficiais e praças".
Caminho para voltar ao exterior
O cientista político avalia que "não há a menor possibilidade de se reapresentar ao mundo, à comunidade internacional e às Nações Unidas com a mesma quantidade de erros cometidos por militares da ativa e da reserva".
"Nesse momento, precisamos fazer essa reforma fundamental nas Forças Armadas, que precisa estabelecer pontos específicos, de profissionalização, mudança de currículo, mas também tem que tratar de racionalização de contingente", apontou o especialista.
Segundo ele, um peso muito grande do orçamento do Ministério da Defesa é destinado a pensões, auxílios e privilégios, além do pagamento dos funcionários da ativa.
Bragança ressalta a necessidade de uma redução drástica de pessoal, que possa promover melhores condições salariais tanto para o Exército, como para a Marinha e a Aeronáutica.
Esta reforma, segundo ele, mexerá em estruturas complexas, mas criará "um Exército mais modernizado, com forças profissionais".
"O que precisamos é, primeiramente, recuperar a instituição militar e, depois, ampliar o escopo para se pensar em participação brasileira no jogo internacional", indicou.