Trata-se da coluna de opinião intitulada "Povo pronto para todo o serviço", publicada pela escritora e jornalista Clara Ferreira Alves no semanário português Expresso, no dia 21 de maio de 2021, cuja íntegra pode ser lida aqui. No quinto parágrafo, a autora escreve o trecho transcrito abaixo:
"'Estão cá todos', congratulou-se o diretor da Região de Turismo do Algarve, que aparece nalgumas notícias escritas como director, com a consoante muda, porque neste ponto do inútil e inutilizável Acordo Ortográfico, ninguém sabe bem como se escreve ou pronuncia a língua portuguesa que, ao contrário das línguas anglo-saxónicas, cortou as suas raízes latinas na ortografia e na fonética e aderiu ao patois africano e brasileiro, países onde ninguém sabe bem o que é e para que serve o Acordo Ortográfico. E onde ninguém compra ou lê livros", lê-se no trecho.
No dia seguinte, em uma publicação em seu perfil no Facebook, o linguista português Fernando Venâncio, autor do livro "Assim nasceu uma língua", considerou a passagem "imprópria e inadmissível", reproduzindo o mesmo trecho. Nos comentários do post, mais de uma centena de pessoas, em sua maioria portuguesas, concordaram.
Dois dias depois, a Plataforma GENI, de mulheres migrantes em Portugal, publicou o mesmo trecho em sua conta no Instagram, destacando o fato de a coluna ser "usada para continuar propagando o preconceito linguístico e colocando os países de língua portuguesa como inferiores", algo combatido pelo coletivo. Dessa vez, a maioria dos comentários foi de brasileiros, concordando que se tratava de preconceito linguístico.
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Mas a polêmica não se restringiu às redes sociais. O debate sobre o Acordo Ortográfico (AO) e o preconceito linguístico contra brasileiros em Portugal é recorrente no meio acadêmico e na imprensa. No dia 13 de maio, o jornalista e escritor Sérgio Rodrigues já havia publicado um artigo na Folha de S. Paulo, intitulado "Lusofonia, adeus!".
No texto, o autor escreve que já acreditou no mito da lusofonia e defendia o Acordo Ortográfico. No entanto, por uma série de argumentos, dentre os quais, "está claro que o português não deseja se tornar uma língua sem centro, com 270 milhões de falantes e algumas variedades nacionais", ele explica sua mudança de posição.
Rodrigues também cita a discriminação de brasileiros em escolas portuguesas, como mostrou a Sputnik Brasil em abril, em reportagem sobre professores que estariam dando notas menores a estudantes por falarem com sotaque brasileiro. Em um dos casos, uma professora mandou uma aluna brasileira colocar um lápis na boca para treinar o sotaque local. Após a matéria, um representante do Ministério da Educação foi à escola e instaurou um procedimento investigatório sobre a conduta da docente.
"Já implantado no Brasil de cabo a rabo [o Acordo Ortográfico], seria ridículo que o revogássemos, além de um desperdício de dinheiro. Mas convém tratar como reforma brasileira o que não passou de desacordo, gasolina na fogueira do antibrasileirismo em Portugal – onde a nova ortografia foi rejeitada em peso pela sociedade – e motivo de confusão na África", lê-se em um trecho na coluna de Rodrigues.
Debate na imprensa portuguesa
O texto repercutiu do outro lado do oceano Atlântico. No dia seguinte à publicação, Rui Tavares, historiador português e ex-eurodeputado, escreveu, no Público, um artigo intitulado "Ainda dá para salvar a lusofonia?", sob a forma de pergunta retórica em resposta a Rodrigues. Ele propõe criar um "Parlamento Internacional dos Escritores da Língua Portuguesa, com objetivos de defender os direitos fundamentais, a liberdade de expressão e a riqueza literária e linguística dos povos de língua portuguesa". E conclui de forma espirituosa.
"Sérgio, senta aí. Vamos falar. Quem sabe, vamos até fazer", convida Tavares.
Uma semana depois, na véspera da publicação de Clara Ferreira Alves no Expresso, Nuno Pacheco, redator-principal do Público, escreveu a coluna "Lusofonias, grafias, fobias e velhas megalomanias", ainda repercutindo o texto de Rodrigues. Não se perca na cronologia. No dia 27 de maio, o Diário de Notícias publicou uma entrevista com o autor brasileiro feita pelo correspondente do jornal português no Brasil.
Já em entrevista a este correspondente da Sputnik Brasil em Lisboa, Rodrigues comentou a coluna de Clara Ferreira Alves, que já havia lido e sobre a qual, inclusive, tinha manifestado sua opinião no Facebook de Fernando Venâncio. Questionado se identifica traços de preconceito linguístico, xenofobia e/ou antibrasileirismo no texto dela, o autor de "Viva a língua brasileira!" diz que não conhecia a referida jornalista até começarem a lhe enviar esse artigo.
"Acredito que nesse sentido o texto tenha cumprido seu papel, o de chamar atenção, provocar escândalo. É escandaloso mesmo, na sua completa parvoíce e soberba imperial - ou a versão farsesca da soberba imperial que for possível a esta altura da história. Não há surpresa nisso. Também no Brasil, deixar a vergonha de lado e alimentar preconceitos, dando munição a gente tosca, tem sido uma estratégia bem-sucedida de porta-vozes da extrema direita. Aprendi com o Millôr Fernandes que 'não se amplifica a voz dos imbecis', embora às vezes seja difícil", ensina Rodrigues.
Indagado pela Sputnik Brasil sobre em que medida o descontentamento dos portugueses com o Acordo Ortográfico aumenta o preconceito linguístico e/ou também mascara outros motivos para a xenofobia e o antibrasileirismo, ele afirma que a questão da língua talvez seja só pretexto para uma discriminação que tem raízes mais profundas. O escritor também acredita que a questão do preconceito linguístico seja afetada diretamente pelos desacordos que cercam o Acordo Ortográfico, que ele já defendeu, mas hoje crê que deva ser abandonado.
"A maioria da sociedade portuguesa, à esquerda e à direita, parece ter feito da língua um bastião de orgulho e resistência diante da ameaça cultural representada por um país gigantesco como o Brasil. E o fato é que as variedades de português faladas dos dois lados do Atlântico já se distanciaram demais, é melhor mesmo que sigam seus caminhos próprios", opina.
Para ilustrar, Rodrigues usa uma metáfora de casais que já não suportam viver na mesma casa, mas podem manter uma bela amizade depois da separação.
"O problema do antibrasileirismo é um pouco diferente, ainda que os dois temas se cruzem inevitavelmente. É claro que deve ser combatido, como todo tipo de xenofobia, mas me parece até certo ponto uma reação previsível ao grande número de imigrantes brasileiros em Portugal nos últimos anos, à disputa de postos de trabalho etc.", exemplifica.
Brasil vendeu 41,9 milhões de livros em 2020
Confrontado especificamente com o trecho de que o Brasil é um país onde ninguém lê nem compra livros, o escritor recorda que, em 2020, foram comercializados 41,9 milhões de exemplares no Brasil, mais de quatro vezes a população de Portugal.
"Os números poderiam ser muito maiores e serão, mas entrar nesse jogo quantitativo seria até covardia, dadas as imensas desproporções entre Brasil e Portugal em termos de população, PIB etc.", compara.
Durante uma semana, a Sputnik Brasil tentou contato com a colunista Clara Ferreira Alves. Na terça-feira (1º), este correspondente enviou três perguntas por e-mail, por intermédio da secretaria de redação do Expresso. Nesta segunda (7), ela respondeu que preferia não se manifestar na reportagem.
Mas há quem não veja nada de mais no texto da jornalista. Micaela Ramon, diretora do Mestrado em Português Língua Não Materna da Universidade do Minho, não enxerga preconceito linguístico nem xenofobia no texto.
"Não vejo discriminação. Apenas a crônica semanal azeda, cínica e cáustica, habitual da CFA [Clara Ferreira Alves]. A haver discriminação, ela é muito transversal e abrangente e, por isso, não discrimina. Inclui todos, numa rasia desencantada", relativiza.
Lexicógrafa vê xenofobia disfarçada de preconceito linguístico
Para a lexicógrafa Débora Ribeiro, mestre em Português como Segunda Língua pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, as afirmações da autora com relação ao português brasileiro não se pautam em nada para além de xenofobia disfarçada de preconceito linguístico.
"Para justificar o seu argumento de que, em Portugal, 'ninguém sabe muito bem como se escreve ou pronuncia a língua portuguesa', ela menciona o Acordo Ortográfico e usa a palavra francesa 'patois', que significa um dialeto rural francês ou quaisquer dialetos orais falados em uma região restrita, para afirmar que o português cortou suas raízes latinas na ortografia e na fonética pela influência que recebeu dos 'dialetos' brasileiro e africano", assinala Débora.
De acordo com a lexicógrafa, ao contrário do que a autora afirma, o português de Portugal se alterou bem mais na fonética do que o português brasileiro. Ela cita o linguista Ataliba de Castilho, segundo o qual o português do Brasil teria mantido a pronúncia do português do século XV. Débora exemplifica com gramáticas do século XVI, como a de Fernão de Oliveira, que faz menção à "fala lenta dos portugueses".
"Atualmente, a fala dos portugueses é bem mais rápida, e a dos brasileiros mais lenta. Portanto, caso o português brasileiro influencie a pronúncia do português de Portugal seria para aproximá-lo de suas raízes latinas e não para afastá-lo delas", pondera.
Ela acrescenta que, no Brasil, o Acordo Ortográfico foi amplamente instaurado em todo território nacional. De fato, a "nova" ortografia é ensinada nas escolas e foi adotada pelos jornais brasileiros, como O Globo e Folha de S. Paulo, ao contrário de periódicos portugueses.
"Diferentemente do que ocorre em Portugal, país onde ninguém realmente sabe a razão do Acordo Ortográfico, mas propaga ideias que se pautam apenas em achismos linguísticos", acrescenta.
Débora cita uma pesquisa da Picodi, em que o Brasil aparece como 8º entre 41 países onde mais se compram livros, com 74% dos brasileiros tendo afirmado que compraram pelo menos um livro ao longo do ano. No mesmo ranking, liderado pela Turquia (87%), seguida da Rússia (82%) e da Espanha (81%), Portugal (65%) ocupa a 23ª posição. A mesma pesquisa foi noticiada pelo Jornal Econômico em 2019.
"Portanto, a fala da autora demonstra, em relação ao Brasil, um profundo desconhecimento tanto linguístico, quanto social", conclui Débora.