Criada em 1910, a União Aduaneira da África Austral e Moçambique (UAAA), também conhecida por sua sigla em inglês SACU (Southern Africa Customs Union), é a união aduaneira mais antiga do mundo ainda em vigência, e conta com seis países africanos em sua constituição: Moçambique, África do Sul, Botswana, Lesoto, Essuatíni e Namíbia.
A união tem como objetivo manter o livre intercâmbio de mercadorias entre os países-membros, e prevê uma pauta externa comum, assim como uma política comum imposta pela união para essa região. Porém, além do foco econômico, o bloco também abrange questões de segurança e militares.
Moçambique tem sofrido graves ataques terroristas por quase três anos, realizados principalmente por militantes jihadistas do Al-Shabaab (organização terrorista proibida na Rússia e em diversos países), particularmente na região norte do país. O grupo também tem aterrorizado a província de Cabo Delgado ao longo desse tempo.
Até agora, os ataques já provocaram pelo menos 2.800 mortes, sendo mais da metade de civis, e originaram quase 700 mil pessoas deslocadas.
Nessa quarta-feira (23), o SACU vai se reunir para debater cooperação militar com Moçambique. Antes desse encontro, a Sputnik Brasil ouviu o especialista Arcénio Francisco Cuco, doutor em Ciência Política pela UFRGS e professor na Universidade Rovuma em Moçambique, para saber como está o contexto da segurança no país e como o governo tem reagido diante dos ataques terroristas.
Segurança e religião
Sobre a segurança no país, Cuco acredita que a situação continua preocupante, pois além da gravidade em si da situação, a mesma está associada ao fato de não se ter muito acesso às notícias sobre o que realmente está acontecendo. O cientista político ressalta que o contexto transbordou para um drama humanitário, a partir do momento que há deslocados que precisam de apoio para se reinstalar em outras regiões por conta da violência.
Ao ser indagado se a questão religiosa se manifesta com relação aos conflitos, o cientista acha difícil associar as duas coisas, pois defende a ideia de que é preciso questionar mais profundamente para se entender completamente um contexto que envolve vários aspectos, inclusive um fortemente presente no mundo todo, que é o problema da imigração.
"A questão da religião não é uma questão que pode ser descartada, mas eu penso que nesse momento ela é uma variável com menor grau explicativo, porque Moçambique não tem histórico de conflitos religiosos nesses 45 anos de independência. Seria muito prematuro associarmos a violência em Cabo Delgado à religião", explicou Cuco.
Reação do governo e deslocados
Cuco conta que existe largo envolvimento de organizações internacionais, assim como do próprio governo moçambicano, no intuito de mitigar a crítica situação humanitária que se vive na província de Cabo Delgado.
Segundo o cientista, o governo vem realizando encontros locais de forma cíclica com membros da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC, na sigla em inglês) para discutir se é possível a intervenção da SADC nesse processo, porque embora a situação esteja mais centralizada em Cabo Delgado, não se pode desconsiderar a possibilidade de o contexto afetar outros países.
"Eu penso que talvez a posição que o governo moçambicano queira tomar neste momento, no que diz respeito à região, seja a margem acertada, porque é preciso que haja uma união de esforços entre os membros da SADC para que se encontrem soluções para mitigar o problema", disse Cuco
De acordo com o cientista, a situação dos deslocados é bastante tenebrosa, pois há muitas pessoas carecendo de apoio. O governo tem tentado criar algumas condições para que as mesmas possam ter o mínimo para sobrevivência, incluindo a elaboração de áreas específicas nas quais são oferecidos espaços para os deslocados se assentarem definitivamente.
Cuco também ressalta o apoio de organizações não governamentais que têm ajudado as pessoas com produtos alimentícios para dar condições aos deslocados de reiniciarem suas vidas.
Apoio militar da UE
Em maio, a União Europeia (UE) cogitou a possibilidade de enviar uma missão militar a Moçambique para apoiar as tropas do governo. Sobre essa questão, Cuco diz que o país africano não acolheu tal ajuda, e o mesmo acredita que essa posição seja a mais acertada, pois "a experiência que países africanos têm com a intervenção de países do mundo ocidental não são animadoras".
Cuco diz que o governo não negou o apoio da UE, mas aceitou apoio técnico e treinamento oriundo desses países para que Moçambique possa desenvolver por si próprio a capacidade de lutar contra frentes terroristas na região.
Vale lembrar que no final de março, Portugal anunciou o envio de 60 militares para ações de formação com as Forças Armadas moçambicanas, em um plano bilateral de cooperação com Moçambique para ajudar a combater os jihadistas na cidade de Palma, de acordo com a emissora portuguesa RTP.
Saída da Total e economia moçambicana
No fim de abril, a petrolífera Total suspendeu suas operações em Cabo Delgado evacuando todos os seus funcionários dias depois que grupos jihadistas, ligados ao Daesh (organização proibida na Rússia e em diversos países), invadiram Palma, vizinha da cidade, conforme noticiado no dia 26 de abril.
Cuco diz que é preciso analisar a retirada da empresa do país africano com muita minúcia, pois esse tipo de multinacionais sempre se instalou em regiões onde há instabilidades. Na visão do especialista, a saída da Total foi uma retirada estratégica para forçar o governo a renegociar sua estada na região.
"Não acredito que a Total vá deixar seus investimentos naquele lugar a sua sorte, eu penso é que foi uma retirada estratégica, basicamente para pressionar os governantes a renegociarem os contratos que eles têm com o governo", disse Cuco.
Para cuco ainda é prematuro dizer se a economia moçambicana vai retroceder ou não após a saída da Total, pois em sua visão, a empresa apenas representava um grande potencial nas contribuições para o Estado, mas que do ponto de vista de ganhos fiscais a companhia não teria uma representatividade tão significativa. Contudo, sua retirada pode interferir nas projeções do Estado.
"A Total representaria maior contribuição mais para o futuro, quando particularmente começasse a fase da maturação, a fase da concretização da empresa em Moçambique. Portanto, não é possível dizer que a retirada da empresa represente a piora da economia moçambicana", explicou Cuco.
O norte de Moçambique vive o auge de uma onda de violência que tomou a região nos últimos três anos, quando insurgentes islâmicos passaram a promover assassinatos, decapitações e sequestros de mulheres e crianças em vilarejos na província de Cabo Delgado, rica em rubi e gás natural.
Até agora, os ataques já provocaram pelo menos 2.800 mortes, sendo mais da metade de civis, e originaram quase 700 mil pessoas deslocadas.