Apartheid, regime que oprimiu a população negra na África do Sul, durou por quase meio século. O sistema de segregação racial foi implementado em 1948 e durou até 30 de junho de 1991, quando foi abolido.
Para relembrar essa data, a Sputnik Brasil conversou com o historiador Amilcar Pereira, doutor em História e professor do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que comentou sobre as semelhanças e diferenças entre o apartheid na África do Sul, as leis de Jim Crow nos EUA e a segregação racial no Brasil. O historiador destaca o pioneirismo político do movimento negro no Brasil e a referência que fomos para a luta antirracista nos EUA.
Comemorar o fim do apartheid
Amilcar Pereira ressalta a importância de recordar esse sistema político no qual a raça, como uma relação de poder, é levada ao extremo, em que uma minoria branca tinha o poder e a população negra era absolutamente inferiorizada, marginalizada, excluída.
"Havia uma segregação estabelecida politicamente, oficial, que impedia, inclusive, a possibilidade [de negros] de frequentar determinados espaços […]. [Daí a] importância que a gente traga à memória, no sentido não de celebrar, mas de comemorar, de trazer à memória para que a gente não esqueça. O lema do Museu do Apartheid, em Joanesburgo, é uma frase que o [ex-presidente sul-africano] Nelson Mandela usava muito: 'Perdoar, mas não esquecer'."
O ativista Nelson Mandela foi condenado à prisão perpétua por sabotagem em 1964. Passou 27 anos preso e se tornou o prisioneiro político mais conhecido do mundo, além de um ícone da luta antiapartheid. Foi presidente da África do Sul de 1994 a 1999.
Segregação racial no Brasil e nos EUA
O professor da UFRJ recorda que nos EUA também houve um sistema político que usou o aparato repressor do Estado para manter a política segregacionista oficial: as leis de Jim Crow. Essas eram leis estaduais que vigoraram entre as décadas de 1870 e 1960 e impunham a segregação racial nos estados do sul dos EUA. No Brasil, todavia, nunca houve uma segregação oficial.
"No Brasil nunca teve um apartheid como o da África do Sul […]. Mas se a gente amplia essa percepção [do apartheid] para as relações hierárquicas estabelecidas em função da raça, aqui no Brasil, em países da Europa, [e] em muitos outros países da diáspora africana, a gente encontra uma espécie de segregação não oficial, não como política, não legal, mas que afeta as relações, estabelece hierarquias, limita possibilidades, oportunidades, para determinados grupos que são objetos de discriminação", afirma o historiador.
Amilcar Pereira explica que, em função do regime segregacionista oficial, houve uma série de articulações na própria população negra norte-americana que permitiu uma luta contra o regime explícito de segregação e que teve muitas vitórias visíveis, como as leis de ações afirmativas na década de 1960.
As evidentes conquistas nas lutas pelos direitos civis e contra o racismo nos EUA, principalmente na década de 1960, fez com que pesquisadores comparassem as relações raciais nos EUA e no Brasil, e questionassem se aqui, em função da não institucionalização e não legalização do racismo, os avanços na luta contra o racismo não teriam sido inexpressivos. O especialista admite que essa é uma interpretação possível, mas sustenta que suas pesquisas mostram o contrário.
Luta brasileira é inspiração para EUA
O historiador da UFRJ afirma que identificou uma série de conquistas muito importantes produzidas pela luta antirracista brasileira que serviram, inclusive, de referência para os norte-americanos antes do surgimento do movimento pelos direitos civis dos negros nos EUA.
"Lá nos anos 1930, o movimento negro brasileiro era tido como referência na luta por direitos sociais e direitos civis por negros estadunidenses, já que aqui no Brasil, em meio à hierarquização do racismo, em meio a toda opressão produzida na sociedade brasileira em função do racismo, havia uma população negra se mobilizando, articulando-se, criando organizações", começa por explicar o especialista.
O professor cita a Frente Negra Brasileira (FNB), um movimento político criado em 1931, que chegou a reunir milhares de pessoas de muitos estados brasileiros e se tornou, em 1936, um partido político, "maior do que o Partido Comunista Brasileiro".
"A FNB criava escolas, já batalhava pela integração do negro na sociedade nacional em 1931, quando foi criada, e foi um partido grande […] [com] força política, inclusive, algumas de suas demandas foram atendidas pelo [ex-presidente] Getúlio Vargas".
A FNB foi o segundo partido negro criado nas Américas, 30 anos antes do Partido dos Panteras Negras, criado nos EUA em 1966. Amilcar Pereira comenta que havia muitas notícias na imprensa norte-americana negra sobre a FNB, esse movimento que lutava por direitos no Brasil. "Então, principalmente a FNB era vista como uma inspiração para a luta contra o racismo nos EUA nos meados e até o fim dos anos 1930."
Avanços e retrocessos
O professor da UFRJ identifica retrocessos na promoção de igualdade racial no governo Bolsonaro.
"As tentativas de retrocesso são evidentes, são muitas. As falas, inclusive de pessoas poderosas que ocupam espaço de poder, desde o presidente da República [Jair Bolsonaro] ao presidente da Fundação [Cultural] Palmares, [Sérgio Camargo,] que é uma instituição de Estado criada no centenário da Abolição [da Escravatura no Brasil] […] para a preservação do patrimônio cultural afro-brasileiro, e hoje o presidente dessa fundação ataca esse patrimônio cultural cotidianamente, ao ponto de recentemente decidir retirar [de circulação] o acervo de livros da biblioteca da Fundação Palmeiras", lamenta o historiador.
Mas Amilcar Pereira salienta que a luta antirracista no Brasil é uma realidade ao longo da história do Brasil e produziu conquistas importantes.
"A gente está falando aqui sobre a importância de relembrar, de não esquecer o apartheid e uma das conquistas mais importantes da luta contra o racismo no Brasil é justamente a criação de uma legislação em 2003 que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana em todas as escolas do Brasil. Isso me parece um avanço, em termos de política, em termos de ensino, de educação, para a luta contra o racismo, que sociedades como a dos EUA ainda hoje não conseguiram, por exemplo."
O especialista explica que a Lei 10.639 de 2003 faz parte de um processo, que começa em 1988, com os artigos da Constituição brasileira, que desde então têm sido reificados e fortalecidos. E reforça a importância dessa legislação que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira na composição das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio:
"[A lei permitiu que se] incorporasse a população negra como sujeito da história, como parte importante do que somos como sociedade, e essa legislação tem esse potencial de mudança cultural, que me parece algo fundamental para rompermos com esse sistema de poder que não é legalizado, mas que estabelece esse tipo de apartheid não institucionalizado, essa segregação […]. Essa legislação é uma conquista que muitas outras sociedades, mesmo onde houve uma legislação segregacionista, como o apartheid, não conseguiram chegar: uma construção política de promoção da igualdade com esse âmbito na legislação."
Amilcar Pereira conclui afirmando que, embora o Brasil esteja muito distante de onde ele gostaria, ou seja, de uma sociedade mais igualitária, mais solidária, onde o racismo não fosse um elemento estruturante das desigualdades, "o processo histórico me parece inevitável, vai continuar nesse mesmo sentido, com altos e baixos, com alguns avanços mais importantes, mas é um processo que tende a continuar".