O financiamento da ajuda externa já havia sido reduzido no país no início deste ano sem alteração da Legislação. No entanto, a medida do governo foi veementemente criticada, inclusive pela predecessora de Johnson, Theresa May, devido a não dar aos deputados a oportunidade de ratificarem a nova quota de despesas.
Isso levou à votação na Câmara dos Comuns do Reino Unido, no dia 13 de julho de 2021. O projeto de lei foi aprovado oficialmente por 333 deputados, enquanto 298 votaram contra a medida. Assim, o Reino Unido deve reduzir o volume de ajuda aos países estrangeiros de 0,7% para 0,5% da renda nacional bruta.
De acordo com a iniciativa, os países em desenvolvimento vão receber quatro bilhões de libras esterlinas (cerca de R$ 28,6 bilhões) a menos. Para compreender melhor as consequências políticas desse passo, a Sputnik Brasil ouviu o professor Demetrius Pereira, coordenador do Núcleo de Estudos e Negócios Europeus da ESPM.
Ajudar para influenciar
As políticas de ajuda a países em desenvolvimento sempre desempenham um importante papel nas relações exteriores do Reino Unido, em particular como elemento do seu prestígio internacional. Demetrius Pereira relembra que o Reino Unido é um dos países mais ricos do mundo, sendo membro do grupo G7 – os sete mais industrializados do planeta.
Para além disso, a Grã Bretanha foi a potência hegemônica durante o século XIX e colonizador de grande parte do mundo, mantendo até hoje várias ex-colônias no mundo, que continuam sendo países pobres. Mas, agora o Reino Unido já não possui a mesma influência que tinha no passado.
Em consequência, para ter determinada influência internacional, o Estado britânico tem que aplicar a chamada política de soft power, o poder brando, aponta o especialista.
Para Demetrius Pereira, a ajuda externa aos países em desenvolvimento "faz parte dessa política mais branda de realmente influenciar o mundo por meio dessa ajuda".
Até o momento, o Reino Unido mantém um sistema de associação com suas ex-colônias em diversos formatos, como a CommonWealth, a Comunidade das Nações, que abrange quase todos os países que faziam parte do Império Britânico.
A aprovação do corte da ajuda ao desenvolvimento pode dar a impressão que Londres está reduzindo as relações com os países desse grupo. Porém, o especialista acredita que, ao contrário, quem corre risco de perder a ajuda britânica são os países fora da Commonwealth.
Ele explica que "uma das grandes promessas do Brexit" foi um maior engajamento com os membros da Commonwealth, após a saída da União Europeia.
Nacionalismo como motivo da decisão
Existe um sentimento de que o engajamento internacional com políticas de desenvolvimento econômico está diminuindo globalmente. O especialista explica que "esse foco no nacional em vez do internacional" parcialmente é motivado pelo nacionalismo presente em muitos países: nos Estados Unidos com Trump, no Brasil com Bolsonaro ou no Reino Unido após o Brexit.
Para Demetrius Pereira, a população com viés nacionalista pensa que primeiramente os governos devem ajudar seus cidadãos e só depois podem prestar ajuda externa.
O especialista constatou a existência dentro do país dessa oposição entre os ingleses mais nacionalistas, geralmente oriundos da população mais tradicionalista do interior, e outras áreas do Reino Unido que apostam em um maior papel internacional, entre eles os londrinos, escoceses e residentes na Irlanda do Norte.
A política externa de Boris Johnson é uma política bastante nacionalista, sublinha, o que em parte explica por que o premiê britânico sugeriu esse corte no orçamento de ajuda internacional.
Uma outra razão que aponta é a crise econômica global devido à pandemia, que forçou os países a fazerem cortes nos orçamentos.
Essa redução do orçamento de fato reduz o papel internacional de Londres, e o especialista concorda com isso.
No entanto, ele acrescentou que isso "é consequência da própria vontade da população", uma vez que o plebiscito que resultou no Brexit em 2016 revelou o comportamento bem nacionalista da sociedade britânica.
Crítica à iniciativa: fim dos Grandes Tempos?
A ex-primeira-ministra britânica e líder do Partido Conservador de 2016 a 2019, Theresa May, votou pela primeira vez contra seu partido. Ela disse que o Reino Unido quebrou o compromisso que tinha com os pobres de todo o mundo.
Além do mais, adiciona o professor, a proposta do governo sofreu críticas de todos os ex-ministros britânicos. Pereira considera que essa tendência para a redução da ajuda internacional se observa tanto no Partido Conservador, como em todo o país, o que leva à diminuição do papel do Reino Unido no mundo.
"O Reino Unido parece estar se tornando a pequena Inglaterra e não a Grã-Bretanha", afirma ele, indicando que desde a Primeira Guerra Mundial, o papel dos britânicos na arena internacional vem se reduzindo cada vez mais.
Mesmo assim, ele admite que o Reino Unido ainda é uma potência internacional, levando em conta seu assento permanente no Conselho da Segurança da ONU, que só cinco países têm, e a participação do G7.
Porém, essa nova iniciativa do governo é mais um fator, afirma o professor, que "vem reduzindo o protagonismo dos britânicos, cada vez mais distante do Império Britânico, embora muitos ainda tenham esse saudosismo dos Grandes Tempos".
Para apaziguar a revolta dos parlamentares opositores à medida, o ministro do Tesouro britânico Rishi Sunak garantiu que a redução será temporária. Mas, neste caso, a retoma da ajuda internacional britânica no patamar anterior pode ser mais difícil.
Já que a medida levou a uma alteração legislativa, Demetrius Pereira explica que a nova mudança necessitará de outra aprovação parlamentar "para que tudo volte a ser como era". "Realmente pode haver uma dificuldade em relação a isso", concluiu.