Nesta semana, termina a inspeção da Organização das Nações Unidas (ONU) em tropas da Marinha e do Exército Brasileiro. A visita da comitiva, feita a pedido do Brasil, tem como objetivo avaliar as capacidades do país em gerar, desdobrar e manter potencial contribuição de tropas em operações de paz, como a de Estabilização no Haiti (MINUSTAH), que o Brasil liderou de 2004 a 2017.
"Cumprimos uma etapa importante que é a preparação técnica para um possível envio, em um futuro breve, dos nossos contingentes de tropas em uma missão de operação de paz da ONU. A visita da comitiva é uma etapa fundamental, sem ela é impossível qualificar as nossas tropas para o envio a uma missão de paz", disse o brigadeiro Maurício Ferreira Hupalo, citado pelo Correio Braziliense.
Os integrantes da inspeção verificaram a logística de apoio para o dia a dia das tropas, que envolve a subsistência e itens essenciais para as missões. A averiguação abrange materiais para comunicações e equipamentos elétricos, médicos e de combate, entre outros produtos fundamentais para o emprego militar em países em conflito.
Após a visita, a ONU poderá conceder a certificação desses contingentes para o nível 2, condição básica para futuro emprego em missões de paz.
A Sputnik Brasil entrevistou Gustavo Heck, conferencista e professor da Escola Superior de Guerra (ESG) para saber melhor sobre o papel do Brasil nessas missões, qual aprendizado as Forças Armadas ganharam com sua contribuição e quais os atuais desafios enfrentados pelas forças brasileiras em seu território.
Presença brasileira em missões de paz
Segundo Heck, a participação do Brasil em missões de paz tem sido exitosa, principalmente em países de língua portuguesa, como os da África, e que vários comandantes brasileiros foram chamados pela ONU para colaborar em outras operações devido ao seu êxito.
"O Brasil se escusa de participar das operações de promoção da paz, ele participa das operações de manutenção da paz, dada a postura da Constituição brasileira que mantém a posição de 'vamos participar, desde que haja concordância entre as partes, desde que não tenha enfrentamento militar, que só se utilize armas para própria defesa'. Até hoje, já participamos de mais de 50 missões de paz, com mais de 55 mil soldados, são números bastante expressivos", explicou o professor.
Sobre o fato de o Brasil não realizar operações de combate, mas sim ligadas à manutenção da paz, Heck afirma que isso reflete o perfil brasileiro de não intervenção, um perfil mais amistoso, que quando chega a outros países, envolve a população local.
Adicionalmente, o especialista destaca que há uma vertente que tenta fazer com que os organismos regionais concentrem essas operações de paz no seu território, ou seja, o Brasil participaria mais de missões no Hemisfério Ocidental.
Indagando se o atual governo brasileiro ainda tem vontade de participar de missões de paz, Heck diz que "sim, desde que seja de manutenção, não de promoção da paz", e que mesmo que o foco, agora, seja a Amazônia, se houver disponibilidade de tropa, o professor acredita que o país continuaria a participar dessas operações.
Papel da ONU
Heck considera que a organização precisa de uma formulação, pois é necessário analisar se o Conselho de Segurança da ONU realmente retrata a realidade mundial ao ser representado pelos cinco países ganhadores da Segunda Guerra Mundial, e questiona se, hoje, essa representação não deveria contar com a participação de economias promissoras e fortes como a do Brasil.
"A ONU enfrenta esse tipo de problema, como ela está baseada nos cinco grandes países e todos eles têm poder de veto, isso pode gerar uma certa confusão. Entretanto, o Brasil está ligado a todas essas grandes potências", afirmou.
Como exemplo, Heck recorda o envolvimento da França, um dos países do Conselho de Segurança, com Brasil, uma vez que "a formação da doutrina militar brasileira foi francesa, posteriormente substituída pela influência norte-americana".
Heck complementa que uma maior participação brasileira no conselho seria adequada e traria um certo equilíbrio já que "o Brasil não tem a proposta de confronto, de expansão de poder, temos é a de projeção do poder, mas não de expansão".
"Eu acho que as Nações Unidas deveriam repensar um pouco esse modelo de gestão das operações de paz, mas dentro das nossas disponibilidades, acho que vamos prosseguir nesse tipo de trabalho, pois não vejo razão para que nos afastemos disso."
Aprendizado das Forças Armadas nas operações
Heck aponta para participação brasileira no Haiti como um grande aprendizado para as Forças Armadas, a partir do momento que o país haitiano dispõe de áreas parecidas com as favelas brasileiras, e que essa característica deu um treinamento novo para as tropas, que o utilizou em operações de intervenção militar no Complexo da Maré ou no Morro do Alemão, ambas no Rio de Janeiro.
"As tropas que constituíram essas intervenções haviam participado da missão no Haiti, então isso foi favorável, porque de certa forma elas sabiam como lidar com aquele espaço [das favelas]. As Forças Armadas não gostam de participar dessas missões, elas são levadas a isso. Elas gostam sim de participar de ações subsidiárias, que se baseiam em levar apoio às populações", explicou o professor.
O especialista destaca, dentro dessas ações subsidiárias, a atuação logística das Forças Armadas durante a pandemia, "levando insumos e tudo aquilo que era necessário para tentar combatê-la".
Desafios atuais das forças brasileiras
Para Heck, um dos maiores desafios para as Forças Armadas atualmente é a Amazônia, pois "além da questão ambiental, é também uma questão de ordem geopolítica" pelas ameaças externas que "tentam entrar por 'baixo dos panos' para obter as vantagens que aquele espaço riquíssimo oferece".
"Hoje as grandes preocupações do Brasil são as tentativas para consolidar a integração do seu território com a Amazônia e proteger a calha do [rio] Amazonas para que não tenhamos a interferência de grupos terroristas, como as FARC da Colômbia. A nossa fronteira terrestre é uma fronteira muito porosa, muito fácil de entrar", disse o especialista.
Portanto, o Brasil precisa das Forças Armadas para "efetuar esse poder dissuasório em relação à Amazônia". O professor ainda complementa que, anteriormente, a hipótese de alguma guerra brasileira era atrelada à Argentina, entretanto hoje, essa possível guerra estaria ligada ao território amazonense, tanto que várias brigadas do Rio Grande do Sul e de outros estados foram transferidas para Amazônia, segundo o professor.
Ele também aponta como um segundo desafio a questão das fronteiras marítimas com as plataformas de petróleo, e que por conta disso, o país está se envolvendo em projetos de submarinos, uma vez que os mesmos "são a grande arma dissuasória para proteger o mar".
A primeira participação brasileira em operações de paz foi na década de 1950, com o Batalhão de Suez, enviado ao Egito. Desde então, o Brasil já enviou para o exterior cerca de 57 mil militares para missões desse gênero. Ao todo, 72 missões foram realizadas, e o país participou de 40 delas.