A instabilidade aumenta em meio às promessas das autoridades americanas de retirar seu contingente militar do solo afegão até 31 de agosto.
O Talibã estabeleceu o controle sobre grandes territórios nas regiões rurais e começou uma ofensiva contra as principais cidades. Regiões fronteiriças perto do Irã e Tajiquistão também estão sob controle dos militantes.
Os EUA, por sua vez, seguem com uma nova iniciativa, formando com o Afeganistão, Paquistão e Uzbequistão uma nova plataforma diplomática para apoiar a paz e a estabilidade na região. Contudo, fica a questão de se esta aliança será ou não eficaz para a estabilização regional, bem como quais serão suas vantagens e desvantagens.
Para explicar o assunto, a Sputnik Brasil falou com o professor de Relações Internacionais da UFF Jonuel Gonçalves.
Vantagens e desvantagens da nova diplomacia dos EUA
De acordo com o professor, esta aliança não será efetiva para estabilizar a região, e será uma vantagem apenas para a política norte-americana.
"A vantagem é para a política norte-americana. Eles estão preparando um grupo que vai conter influência em substituir os EUA na região e para não dar poder a mais ao Paquistão, que sempre exige este tratamento privilegiado em relação ao Afeganistão, inclusive uma parte da população é da mesma etnia dos dois lados da fronteira", explicou.
Com relação ao Uzbequistão, Jonuel afirmou que o país tem diversas vantagens, tendo boas relações com os EUA. Contudo, depois o Uzbequistão pode fazer a ponte com a Rússia quando for preciso.
De acordo com Rudenko, combatentes terroristas estrangeiros oriundos das zonas de guerra do Oriente Médio e do Norte da África estão se concentrando no Afeganistãohttps://t.co/YyF4wmg16Q
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Enquanto não houver esta necessidade, o Uzbequistão quer ter influência no Afeganistão por ter receio que o Talibã avance para dentro do país, não necessariamente do ponto de vista militar, mas sim politicamente, ressalta o professor.
"As relações norte-americanas com o Uzbequistão já são melhores do que com os outros, os EUA querem desenvolver e projetar a diplomacia uzbeque na região, então os norte-americanos fizeram uma espécie de grupo concentrado [...]", explicou Jonuel, ressaltando que os EUA deixaram de fora a Índia, a Rússia e a China, devido à competição que tem com estes países.
Como os EUA pretendem manter a segurança no Afeganistão após retirada das tropas?
Falando sobre como os EUA pretendem manter a segurança no Afeganistão após a retirada de suas tropas, Jonuel acredita que os norte-americanos darão apoio aéreo às forças do Afeganistão.
"Eles vão dar apoio aéreo ao Exército afegão em Cabul, mas ninguém sabe se isso vai funcionar ou não. Em segundo lugar, o apoio pode vir, do ponto de vista militar, mas também do ponto de vista político, do Paquistão e do Uzbequistão", indicou.
De acordo com o professor, este tipo de grupo vai funcionar em termos experimentais, e o presidente Joe Biden está testando o que ele pode fazer na região, já que o atual governo norte-americano não tem muito conhecimento de como as coisas podem evoluir, sabendo apenas que a situação atual não pode prevalecer.
União entre Afeganistão e Paquistão
Para Jonuel, o fórum diplomático unindo o Afeganistão e o Paquistão, dois países que possuem relações conturbadas, foi uma ação negociada, com o governo de Cabul aceitando precisamente estes dois e mais ninguém.
"Penso que isso foi negociado. O governo de Cabul teria aceito precisamente estes dois e não quis mais ninguém", afirmou.
Historicamente há problemas, por exemplo, entre o Afeganistão e a Índia, há dois ou três séculos, então este peso histórico na região parece que dá conta. Em relação ao Paquistão, tudo o que o Afeganistão quer é que o Paquistão não fique contra, não apoie o adversário do governo.
Com a escalada do conflito com o Talibã, o Afeganistão está procurando a assistência militar da Índia para combater os terroristas, que continuam alegando o controle de pontos importantes na fronteira e de cidades devastadas pela guerrahttps://t.co/v2EYooxxYV
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O grande problema do Afeganistão não é apenas militar, o país não tem acesso ao mar, enquanto que o comércio exterior do Paquistão usa abastecimentos e tudo mais feitos através do Paquistão. E este acesso ao mar do Afeganistão tem sido um problema por toda a vida, dificultando o desenvolvimento econômico.
Além disso, há outro aspecto, o fato de o Afeganistão ser um país muito encravado e montanhoso, e tem tido uma capacidade de resistência muito grande.
"Se você fizer as contas na história, vários impérios ou vários grandes países atacaram o Afeganistão e acabaram saindo, às vezes até pior do que os EUA saíram. Não conseguiram uma retirada ordenada, mas como puderam", ressaltou Jonuel.
Desta forma, Jonuel acredita que o Paquistão seja um elemento inevitável para uma negociação ou para uma internacionalização do governo do Afeganistão.
Aliança diplomática sem países-chave da região
Outro ponto ressaltado é que, como já citamos antes, os EUA excluíram países de peso da região, como Rússia, Índia e China, de sua aliança diplomática no Afeganistão.
Para Jonuel, é provável que países como a China, a Índia e a Rússia, em termos individuais e separados, continuem mantendo seus contatos.
"Por mais de 20 anos, a principal parte da liderança, obviamente, ficou farta de guerra e compreende a necessidade de buscar caminhos políticos para sair do impasse atual", disse o representante do MRE russo referindo-se à cúpula do Talibã https://t.co/brGnDekAsm
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O professor também destaca que não há muita política em relação ao Afeganistão. Desta forma, estes países estão observando o que os norte-americanos podem fazer, e tudo que eles puderem fazer contra o Talibã, a Índia, Rússia e China também podem.
O Talibã pode ser uma ameaça para a Índia, principalmente nas fronteiras com os Estados muçulmanos e com terrorismo dentro de seus próprios territórios, bem como para a Rússia e a China, que possuem maiorias muçulmanas muito fortes, que podem ter maior ou menor receptividade ao discurso jihadista.
Influência da China, Índia e Rússia no Afeganistão
Sobre a possibilidade de os EUA conseguirem controlar a influência da China, Índia e Rússia no Afeganistão, Jonuel entende que os norte-americanos não terão capacidade e vontade para conter esta influência.
Jonuel citou o exemplo do Egito, quando o então presidente dos EUA Barack Obama aprovou o embargo de armas ao novo governo do Egito, que derrubou a Irmandade Muçulmana: "Estava evidente que o Egito iria buscar armas na Rússia, e também estava evidente que os EUA não disseram nada".
"Então, tudo que significar equipamento nas mãos do governo afegão, venha de onde vier, os americanos não se opõem, apenas se opõem se houver equipamentos que vão para as mãos do Talibã, coisa que não vai acontecer de jeito nenhum, nem da parte da Rússia, nem da China, e muito menos da Índia", comentou.
Contudo, Jonuel explicou que "as armas não chegarão às mãos do Talibã vindas diretamente do fornecedor. Contudo, eles podem atacar quartéis da Polícia e do Exército afegão e capturar estas armas".
"Uma guerrilha bem organizada conta muito com as armas do inimigo. Atacar pequenos postos, tomar patrulhas. Fazendo isso por três anos, você tem milhares de armas na mão. Contudo, se o Exército afegão for mais organizado [...] ele consegue proteger este equipamento. Eu estou convencido que o governo afegão vá trabalhar em dois níveis, em um grupo com os EUA e buscando relações bilaterais", explicou.
Reconhecimento do Talibã como ator legítimo da política afegã
Com relação à possibilidade de alguns membros da comunidade internacional quererem "normalizar" o Talibã, Jonuel diz acreditar nesta possibilidade, desde que estas forças do fundamentalismo islâmico renunciem à violência e ao atentado.
Ele recorda que tem muita gente dizendo que o Talibã não estava informado sobre os ataques conduzidos pela Al-Qaeda (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países) nos EUA, e naquela altura, em 2001, todos diziam que cúmplice é a mesma coisa.
"Agora com a necessidade de normalização, começam a dizer que é diferente, afirmando que o Talibã é uma coisa e a Al-Qaeda é outra, e se o Talibã está disposto a negociar, e negociou com os EUA, inclusive mais tempo do que soubemos, eu não me admiraria de que o Talibã virasse um partido político [...]", afirmou.
Há motivos para preocupação com as fronteiras?
Para Jonuel, todas as fronteiras estão com problemas, pois agora o Talibã controlaria a fronteira com o Paquistão, ou parte desta fronteira. E que a luta pelas fronteiras será muito importante, e podermos ver a capacidade de dispersão das forças do Talibã e das forças governamentais.
"O Talibã tem vantagem no controle de fronteiras, pois pode chegar nestes pequenos pontos com pequenas unidades [...] Eu tenho a impressão de que em todas as repúblicas asiáticas, antiga União Soviética, há uma tentativa de evitar que forças russas estabeleçam território", ressaltou.
Perspectivas das negociações de paz entre Talibã e Cabul
Jonuel afirma ver uma perspectiva de acordo, mas através de negociações em fases, e provavelmente será uma negociação que durará muito tempo.
"Eu vejo uma perspectiva de acordo, mas nós estamos acostumados a saber como os acordos funcionam. Teremos negociações por fases, por etapa, e cada fase que interrompe dará combate no terreno para melhorar as condições de força do negociador. Portanto, é muito provável que seja uma negociação que vá durar bastante tempo [...] E sempre que houver uma divergência grave, os negociadores se afastam para consultarem seus governos e, neste intervalo, é no terreno que as coisas se decidem [...]", explicou.
"Se alguém desequilibrar a situação militar no terreno, a negociação fica quase impossível. Então, podemos dizer que é uma negociação no fio da navalha', os dois lados que estão negociando politicamente têm que reforçar seus dispositivos militares para não perder posições importantes", concluiu.