Na terça-feira (20), o Banco Mundial divulgou relatório que afirma que a crise econômica causada pela pandemia do novo coronavírus deve provocar efeito negativo sobre empregos e salários no Brasil por nove anos.
De acordo com o "Emprego em crise: Trajetórias para melhores empregos na América Latina pós-Covid-19", a crise gerada pela COVID-19 vai afetar o mercado de trabalho no Brasil e na América Latina por um longo período.
"No Brasil e no Equador, embora os trabalhadores com ensino superior não sofram os impactos de uma crise em termos salariais, e sofram apenas impactos de curta duração em matéria de emprego, os efeitos sobre o emprego e os salários do trabalhador médio ainda perduram nove anos após o início da crise", lê-se no documento.
Para entender melhor quais serão os grandes desafios para os trabalhadores brasileiros nos próximos anos, como o governo federal pode intervir para mitigar a situação e quais serão as "cicatrizes" deixadas pela pandemia, a Sputnik Brasil conversou com a economista Maria Beatriz de Albuquerque David, professora da Faculdade de Economia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
'Cicatrizes' mais profundas nos menos qualificados
O relatório explica que o nível de emprego informal na América Latina costuma continuar menor por um ano e oito meses após o começo de uma recessão. No caso dos empregos formais, a recuperação demora mais de dois anos e meio para acontecer.
"Na região da ALC [América Latina e Caribe], as cicatrizes são mais intensas para os trabalhadores menos qualificados, sem ensino superior", afirma o documento. O banco acrescenta que os trabalhadores informais têm menos proteções e, assim, a probabilidade de perderem o emprego é maior, independentemente da qualificação.
Maria Beatriz David explica que, mesmo em períodos de crise, as empresas procuram manter os trabalhadores mais qualificados porque é mais difícil contratar. "Ou seja, ele é o último a ser demitido entre os trabalhadores."
Por outro lado, a especialista comenta que nos mercados que necessitam de trabalhadores pouco qualificados, como é o caso do Brasil e da América Latina, a retomada em setores como construção civil demora menos.
"O mercado de trabalho é aquele que primeiro demite em condições de crise e é o último a retomar […]. No Brasil, e na América Latina em geral, você tem os mercados que são muito demandadores de mão de obra pouco qualificada, como, por exemplo, a construção civil, que sobem rapidamente quando você tem a retomada", afirma.
Mudanças tecnológicas
A professora da UERJ, todavia, explica que mesmo em setores como a construção civil, o trabalhador que era apto para vaga talvez não esteja preparado para ocupar um posto agora ou daqui a alguns meses.
"O problema é que mesmo na construção civil, e, em geral, na maioria dos setores, estão ocorrendo mudanças tecnológicas importantes. Um trabalhador que era apto para esse setor no passado, hoje pode não ter a mesma facilidade de emprego, que demanda trabalhar mais com máquinas, com necessidade de ler instruções […]. Um exemplo clássico é a agricultura, hoje para você trabalhar na agricultura mais moderna no Brasil, a não ser nas funções que você ganha muito pouco, você tem que saber manejar uma máquina sofisticada", esclarece a especialista.
Dessa forma, trabalhadores mais velhos, que não estão a par de questões digitais, terão mais dificuldades de manejar máquinas e equipamentos que necessitem desse conhecimento e terão mais dificuldade de se recolocarem no mercado. Os trabalhadores mais jovens, por outro lado, terão mais facilidade, afirma Maria Beatriz David.
"[Agora] exige-se muito mais da mão de obra e não há um sistema de treinamento eficiente. O que acontece? As próprias empresas estão treinando os trabalhadores para atender às suas necessidades. O impacto disso na desigualdade social e na distribuição de renda tende a ser de longo prazo e crescente", alerta.
Governo sem margem de manobra
O desemprego no Brasil ficou em 14,7% no trimestre encerrado em abril e se manteve em patamar recorde, atingindo 14,8 milhões de pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
A especialista afirma que, apesar da situação difícil, há pouco a ser feito pelo governo federal em termos de política econômica.
"O grande papel das políticas públicas é impulsionar o crescimento. Todas as outras são mitigatórias, de curto prazo e têm impactos nas contas públicas. E todos os países têm problemas de questão fiscal, especialmente o Brasil […]. O que se pode fazer são as políticas tradicionais compensatórias […] voltadas para a qualificação de mão de obra, para aumento de produtividade, que é um dos grandes problemas dessas economias, o baixo nível de produtividade", comenta.
Maria Beatriz David acrescenta que com as mudanças que ocorreram nos últimos anos, o mercado de trabalho será cada menos regulado, com menos contratos permanentes, com cada vez mais pessoas trabalhando por períodos, por tarefas, para vários empregadores.
Salário mínimo seguirá baixo
Na semana passada, o Ministério da Economia divulgou ao Congresso Nacional o valor de reajuste do salário mínimo 2022: R$ 1.147. Ou seja, sem ganho real e abaixo da inflação. 2022 será o terceiro ano consecutivo em que o piso nacional não terá reajuste com base na inflação. E a professora da UFRJ não tem boas notícias:
"Não há muito espaço para o aumento do salário mínimo em termos reais se não houver uma retomada vigorosa da economia. Porque quem ganha menos é impacto não só pelo nível de atividade econômica, mas pela valorização do dólar, pelo custo de transporte, ou seja, pelo aumento de produtos como petróleo."
A especialista destaca ainda que também não tem muito espaço para aumentar o piso nacional porque quem ganha salário mínimo trabalha em setores como serviços ou é mão de obra pouco qualificada, de forma que "não tem muito espaço para aumento de salário porque impacta em todos os outros segmentos da economia que também perderam renda".
Por fim, Maria Beatriz David lembra que as relações de trabalho agora são mais fluídas, estabelecidas diretamente entre o empregador e empregado, o que mina o poder de barganha da mão de obra menos qualificada.
"Negociações gerais vão ter cada vez menos peso, a não ser em setores muito determinados. E, quem tem maior poder de barganha é a mão de obra muito mais qualificada, não é essa mão de obra que estamos falando, que a mão de obra que ganha salário mínimo ou a grande maioria, que ganha até dois salários mínimos".