Após uma onda de protestos antigovernamentais ter ocorrido em Cuba desde 11 de julho, a administração Biden anunciou uma nova rodada de sanções contra a ilha, tendo imposto restrições econômicas às forças militares cubanas e ao ministro da Defesa do país.
Logo depois, os chanceleres dos Estados Unidos, Brasil e diversos outros países emitiram um comunicado conjunto no qual condenaram as detenções em massa de manifestantes pelo governo e exigiram a Havana para respeitar os direitos e liberdades universais.
Para compreender melhor as caraterísticas da política externa brasileira em relação a Cuba durante o governo Bolsonaro e também para avaliar potenciais mudanças na agenda a respeito dos laços com a América Latina em geral, a Sputnik Brasil conversou com Guilherme Casarões, cientista político e professor de Relações Internacionais da FGV.
Panorama das relações Brasil-Cuba
Desde a década de oitenta, da época da Nova República, o Brasil mantém uma posição muito positiva relativamente a Cuba, independentemente da inclinação ideológica dos governos brasileiros.
De acordo com as palavras de Guilherme Casarões, isso "está no próprio DNA da política externa brasileira", nomeadamente a defesa da soberania e da autodeterminação cubana e também uma defesa da reintegração de Cuba ao sistema americano.
No entanto, com a chegada do governo Bolsonaro, as relações entre Havana e Brasília deram uma virada. Jair Bolsonaro é conhecido pela dura crítica e pela hostilidade a Cuba desde sua campanha eleitoral. Ao assumir a presidência, ele transformou sua visão em uma diretriz mais clara de política externa.
Um dos primeiros passos que tomou Ernesto Araújo, após ter sido designado chanceler, foi não convidar Cuba, bem como Venezuela, para a posse do presidente Bolsonaro – os dois únicos países não convidados ao evento, relembra o especialista.
"Cuba virou muito mais uma peça de imaginário da política externa do governo Bolsonaro do que propriamente o interlocutor a quem o governo seria hostil."
Esse movimento "mostra uma ruptura total" com a anterior política externa brasileira. Após a nomeação do novo chanceler Carlos França, que é mais pragmático, conforme especialista, o Brasil observa pequenos ajustes na política em relação à América Latina.
Embora ainda não tenha havido nenhuma mudança substantiva, Carlos França mostra uma disposição de restaurar um diálogo com países vizinhos e de romper o isolamento diplomático.
Um sinal mais expressivo e concreto que sinaliza a prontidão de voltar para uma política mais tradicional nesse âmbito é a mudança no voto brasileiro sobre o embargo a Cuba. Segundo aponta Guilherme Casarões, o país sempre votou contra a medida, durante a era de Araújo veio a votar a favor, se alinhando com os Estados Unidos, mas com Carlos França o Brasil se absteve.
EUA e Brasil são amigos contra um inimigo?
Os Estados Unidos historicamente têm criticado o governo cubano e continuam impondo um embargo comercial, econômico e financeiro à ilha.
No entanto, na visão do especialista, apesar de ambos os governos – brasileiro e americano – serem críticos a Cuba, a crítica se constrói a partir de argumentos diferentes.
A crítica dos EUA a Havana é à volta do desrespeito dos direitos humanos e do caráter alegadamente ditatorial do governo de Cuba. No caso brasileiro, os pretextos referidos se usam raramente.
Conforme a posição do governo federal, o problema-chave de Cuba é o comunismo e o governo socialista, e essa é a diferença fundamental, sugere o analista. Cuba "sempre foi um motivo de distância entre o Brasil e os Estados Unidos".
Carta de Cuba nas mangas de Lula
Na semana passada, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou uma carta aberta no jornal New York Times pedindo que o presidente americano Joe Biden ponha fim às sanções econômicas contra Cuba. Tal manifestação da inclinação aberta do petista pode parecer estranha no momento, quando ele tenta costurar alianças com partidos mais à direita no espectro político, mas apenas à primeira vista.
"Lula é um estrategista nato, um sujeito que sabe jogar muito bem politicamente."
O professor opina que, em caso de vitória do candidato do PT, ele terá que fazer um governo mais para o centro e realizar uma política econômica talvez mais próxima dos setores empresariais e dos bancos.
A recriação desse "governo de conciliação entre capital e trabalho" – o petista já fez tal governo no passado – vai acontecer em um contexto político em que a esquerda está mais radicalizada do que estava há 20 anos.
Assim, o cálculo de Lula, do ponto de vista de Guilherme Casarões, é sinalizar por meio dessa carta: "Olha, esquerda, eu estou com vocês em algumas pautas". Ao mesmo tempo, precisa entender que a sinalização é "inócua" e de um campo muito simbólico, uma vez que, no fundo, a relação com Cuba diz muito pouco sobre a plataforma mais ampla do candidato Lula.
Cenário das relações após eleições 2022
Em uma eventual mudança de governo no Brasil em 2022, é bem possível retomar um maior engajamento de Brasília com os países da América Latina. O professor não duvida que qualquer candidato viável para vencer as eleições em 2022 – que não seja Jair Bolsonaro – vai ter uma relação diferente com América Latina e em particular com América do Sul.
A razão principal de tal desfecho é que o Brasil por muitos anos foi observado pelos diplomatas como o centro de gravidade natural da América do Sul.
"América do Sul em particular é uma região que o Brasil sempre viu como seu espaço natural de engajamento e de interação. E isso acabou se esvaziando nesses últimos tempos e criando uma série de dificuldades com relação ao governo Bolsonaro."
Para retomar sua anterior posição regional, o vencedor das eleições será obrigado, primeiramente, a reconstruir as relações com os vizinhos, o que vai exigir esforços muito grandes, e em segundo lugar restaurar a integração regional. "Primeiro um passo bilateral, aliás, vários passinhos bilaterais, e depois – um grande passo regional", comenta Guilherme Casarões.
Conforme afirma o especialista, se Lula for eleito o novo presidente do Brasil, ele "conseguiria navegar com alguma tranquilidade" nas relações da América do Sul, já que tem "um grande repertório, um trânsito" nessa região. Outros candidatos enfrentariam um pouco mais dificuldade.
"Claro que nada garante que o Brasil vai conseguir em quatro anos reconstituir toda a base regional construída por décadas por liderança do Brasil, mas pelo menos o início desse processo é bem provável que a gente veja a partir de 2023", concluiu o especialista em uma nota positiva.