De acordo com uma equipe de pesquisadores do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e da Saúde (ICVS), da Escola de Medicina da Universidade do Minho, liderada por Nuno Osório e Ana Santos Pereira, a mutação K65R, que surge em resposta ao uso de Tenofovir, cresceu de 2,23% para 12,11% entre 2008 e 2017.
Nesse período, os pesquisadores analisaram 20.226 sequências de HIV (uma sequência de cada pessoa) em processo de tratamento antirretroviral no Brasil, país com mais pessoas infectadas por HIV na América do Sul.
Segundo Nuno Osório, a terapia antirretroviral, quando tem sucesso, aumenta em grande medida a esperança média e a qualidade de vida das pessoas infectadas, impedindo a transmissão. Por isso, o crescimento de mutações no HIV causadoras de resistência a vários medicamentos é preocupante, pois limita as opções de tratamento.
Em entrevista à Sputnik Brasil, o pesquisador português explica que o Tenofovir é um dos fármacos mais usados no Brasil. No entanto, diferentemente de outros países em que se testa a presença de mutações de resistência no HIV em todas as pessoas diagnosticadas, no Brasil, isso só acontece em alguns casos. Ele diz que isso contribuiu para casos de falência terapêutica e agravamento do problema da resistência.
"Globalmente, os nossos resultados apoiam que alguns dos fármacos mais utilizados no Brasil podem ficar comprometidos devido à alta frequência de mutações e que os testes de resistência deveriam passar a ser universais e obrigatórios, uma vez que são a melhor forma de promover a seleção personalizada do regime terapêutico mais otimizado para a infecção com HIV", recomendou Nuno Osório.
Leia a íntegra da entrevista abaixo:
Sputnik: Por que o Brasil foi escolhido como o local de origem das sequências de HIV analisadas?
Nuno Osório: O Brasil foi escolhido para este estudo por diversas razões, entre as quais se destacam: I) ser o país da América do Sul com mais pessoas a viver com a infecção por HIV; II) não efetuar teste de genotipagem para determinação de resistências no HIV em todas as pessoas diagnosticadas; III) ter o mérito de ter serviços centralizados e especializados que, mediante autorização ética, fornecem dados anonimizados e de qualidade para trabalhos de pesquisa; IV) a existência de um protocolo de colaboração entre o Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (Brasil) e a Escola de Medicina da Universidade do Minho (Portugal).
S: Houve acompanhamento ou monitoramento dessas pessoas, ainda que de parte delas, ao longo dos dez anos de estudo?
NO: A pesquisa teve delineamento transversal, ou seja, não fez acompanhamento longitudinal das pessoas. Entretanto, como cobriu um período prolongado (2008 a 2017), foi possível estratificar as análises por ano e descrever o efeito longitudinal da mudança do padrão de resistência aos antirretrovirais estudados.
S: Mas e o monitoramento clínico?
NO: Sobre o acompanhamento clínico das pessoas, as mesmas já se encontravam sob assistência médica longitudinal nos respectivos serviços de saúde onde eram cadastradas, e isso não sofreu modificação. Elas já eram acompanhadas clinicamente antes do estudo e continuam este acompanhamento, de modo que a pesquisa em nada influenciou a assistência de saúde recebida pelas pessoas. Apenas utilizamos dados secundários que têm origem nos serviços assistenciais e são consolidados nacionalmente. Portanto, as pessoas receberam e continuam a receber acompanhamento médico e cuidados de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil. Após autorização da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP) do país, que assegura que os trabalhos de pesquisa cumprem todos os requisitos éticos e que está garantida a privacidade dos participantes, os responsáveis da equipe de investigação tiveram acesso aos dados, tendo estes sido tratados e analisados.
S: Como foi a parceria do ICVS, da Escola de Medicina da Universidade do Minho, com o Departamento de Medicina da UFSCar? Qual papel coube a cada instituição no estudo?
NO: O Departamento de Medicina da UFSCar teve um papel determinante na obtenção de dados, na tramitação ética e no seu tratamento. Para possibilitar este e outros trabalhos de pesquisa, o professor doutor Bernardino Souto realizou um pós-doutorado em Portugal na Universidade do Minho. O seu conhecimento da realidade brasileira e a vasta experiência como médico e envolvimento no tratamento de doentes com infecção de HIV no Brasil e pesquisa na área da epidemiologia foram fundamentais para a correta interpretação dos dados e para a realização das principais descobertas dos trabalhos. O ICVS contribuiu com a partilha de metodologias avançadas de pesquisa baseadas na sistematização informática de dados em larga escala e em formas estatísticas e bioinformáticas de pesquisa, como análises filogenéticas ou previsões baseadas em algoritmos de inteligência artificial.
S: O senhor afirmou que a terapia antirretroviral, quando tem sucesso, também impede a transmissão. O que significa isso na prática? Quando o tratamento é bem-sucedido, uma pessoa com o HIV pode ter relações sexuais com outra sem risco de infectá-la, por exemplo?
NO: Hoje, há confirmação baseada em evidência científica de que o risco de transmissão sexual do HIV é muito baixo quando envolve uma pessoa infectada, mas que esteja a ser tratada com sucesso e tenha conseguido garantir uma carga viral indetectável no sangue por pelo menos seis meses. Claro que é também bem conhecido que infelizmente a carga viral aumenta quando a terapia falha. A falência terapêutica pode acontecer por vários motivos, por exemplo, por alguma interrupção, mesmo que temporária, na ingestão dos medicamentos. Daí que se recomenda que a pessoa que vive com a infecção por HIV siga criteriosamente o plano de tratamento que lhe foi dado e seja regularmente acompanhada pelo seu médico, assegurando que a carga viral se mantém indetectável sendo isso fundamental para a sua saúde e também para assegurar que o risco de transmissão do vírus se mantenha negligenciável.
S: Quais são os principais impactos da mutação K65R no tratamento com o Tenofovir? Torna a medicação ineficaz ou apenas diminui sua eficácia?
NO: Foi demonstrado laboratorialmente que a presença da mutação K65R reduz a suscetibilidade do HIV ao Tenofovir até duas vezes quando comparada com a suscetibilidade de vírus sem a mutação. Também reduz a susceptibilidade do vírus a outros fármacos da mesma classe. A consequência prática disso é que a maioria das pessoas infectadas com vírus com a mutação K65R e que estejam a ser tratadas com coquetéis que incluem Tenofovir apresentam falência de tratamento e aumento da carga viral de HIV. Demonstramos no artigo que as pessoas infectadas com o vírus contendo a mutação K65R tinham cargas virais estatisticamente superiores quando comparadas a pessoas infectadas com vírus wild type.
S: É possível estimar o tempo de redução na esperança média de vida dos pacientes afetados por essa mutação?
NO: Não é possível estimar com exatidão o tempo de redução na esperança média de vida das pessoas infectadas. Há diversos fatores para o nível individual que influenciarão o tempo e qualidade de vida de cada um. Enquanto não for possível ter uma cura para o HIV, o mais importante para uma pessoa infectada é assegurar que cumpre o tratamento, e que a carga viral de HIV no seu sangue permanece indetectável. Uma pessoa infectada com HIV com mutação K65R pode ser capaz de manter a carga viral indetectável se for tratada com o coquetel adequado de fármacos. Para isso, é fundamental que o médico tenha acesso ao teste de genotipagem para determinar as mutações de resistência que estão presentes no HIV para poder fazer a prescrição mais adequada para a pessoa em causa.
S: O senhor disse que no Brasil não se testa, em todas as pessoas diagnosticadas, a presença de mutações de resistência no HIV. Isso é feito em Portugal?
NO: Em Portugal e em diversos outros países, o teste da presença de mutações de resistência no HIV é feito em todas as pessoas assim que o diagnóstico de HIV positivo é confirmado. Isso permite que o médico escolha fármacos que serão eficazes evitando casos de falência terapêutica. Essa forma de iniciar o tratamento é a mais benéfica para todos em nível individual e comunitário. Mesmo pensando apenas do ponto de vista econômico, apesar de, numa primeira análise, se poder dizer que ao não fazer o teste em todas as pessoas se poupa o dinheiro de alguns testes, quando se faz uma análise mais holística, é facilmente demonstrado que se trata de uma falsa poupança. É necessário considerar o custo não só do teste (que é cada vez mais acessível), mas também os custos para o sistema de saúde do seguimento da pessoa em falência terapêutica e o potencial de transmissão do HIV a outras pessoas que irão também ser tratadas.
S: Além da K65R, há outras mutações do HIV que preocupam os cientistas? Por quê?
NO: Sim há outras mutações que preocupam a comunidade de médicos e cientistas que trabalham nesta área. O nosso trabalho demonstra que, apesar da tendência decrescente observada, ainda foi verificada uma alta prevalência de mutações de resistência. Os dados mostram que o alargamento dos critérios para incluir mais pessoas com HIV na recomendação para testes de determinação de mutações de resistência feita no Brasil em 2013 teve um impacto positivo, mas ainda assim foi insuficiente. Verificamos altos níveis de mutações, como M184V, K103N e M41L, subjacentes a muitos casos de falha de tratamento no Brasil, não só entre 2008 e 2012, mas também continuando de 2013 a 2017. Além disso, observamos um claro aumento da K65R. Este aumento da K65R é particularmente relevante em combinação com os elevados níveis de M184V encontrados na população de estudo, sugerindo que a efetividade da terapia pré-exposição poderá estar em parte comprometida. Globalmente, os nossos resultados apoiam que alguns dos fármacos mais utilizados no Brasil podem ser comprometidos devido à alta frequência de mutações e que os testes de resistência deveriam passar a ser universais e obrigatórios, uma vez que são a melhor forma de promover a seleção personalizada do regime terapêutico mais otimizado para a infecção com HIV.
S: Em menos de um ano de pandemia de COVID-19, já foram produzidas mais de cinco vacinas diferentes. Por que o senhor acredita que, mais de 30 anos depois da descoberta da AIDS, ainda não foi criada uma vacina ou mesmo descoberta a cura para a doença?
NO: Um dos fatores mais relevantes para o insucesso no desenvolvimento de uma vacina para o HIV/AIDS são a variabilidade genética do HIV e a elevada taxa com que acumula mutações. A taxa de mutação do HIV é superior à taxa de mutação do vírus SARS-CoV-2, sendo este um fator que facilitou o desenvolvimento de vacinas eficazes para COVID-19. Historicamente, as vacinas tentam imitar e induzir respostas imunológicas naturais que são eficazes. Quando as pessoas conseguem produzir respostas imunológicas eficazes contra determinado organismo causador de doença, é possível descobrir esse mecanismo e tentar fazer vacinas com a capacidade de imitar este processo no corpo de pessoas que eram vulneráveis. No caso do HIV, o organismo produz anticorpos e outras respostas contra o vírus que, no entanto, não são eficazes em eliminar o vírus do organismo. Se o próprio organismo humano não tem mecanismos eficazes para eliminar o HIV, não temos uma referência natural para tentar imitar com a vacinação. Isso dificulta muito a descoberta e implementação de uma vacina eficaz contra o HIV. Com a COVID-19 é diferente: o organismo consegue produzir uma resposta imunológica capaz de eliminar o vírus. Ao imitar este processo, foi possível fazer vacinas que ajudam. Além disso, a resposta da sociedade à COVID-19 foi notável, mostrando que, quando isso é considerado prioridade, é possível avançar mais rápido na pesquisa e desenvolvimento de novas formas de controlar as doenças infecciosas, aumentando a esperança também para o HIV/AIDS e outras doenças.