A Casa Branca anunciou que o presidente dos EUA, Joe Biden, reunirá em dezembro, por videoconferência, chefes de Estado e de governo para uma "cúpula pela democracia".
Não foram anunciados os países convidados, mas a proposta é que a cúpula seja uma alternativa ao tradicional G20, que reúne as principais economias do mundo, mas deixando a China de fora. Segundo o comunicado, a reunião será em 9 e 10 de dezembro e vai focar em três questões: defesa contra o autoritarismo, combate à corrupção e promoção dos direitos humanos.
"O desafio do nosso tempo é demonstrar que as democracias podem fazer o que é preciso, melhorando a vida de seu próprio povo e abordando os maiores problemas que o mundo enfrenta", afirmou Biden, citado pela agência AFP.
Especialistas veem iniciativas como essa como uma forma de os EUA reassumirem o protagonismo na política externa, que foi deixado de lado durante a presidência do republicano Donald Trump (2017-2021). A Sputnik Brasil conversou sobre as ambições de Biden para a política externa norte-americana, as reações chinesas e o interesse das duas superpotências na região da Ásia-Pacífico com Pedro Costa Júnior, doutor em Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro "O Poder Americano no Sistema Mundial Moderno: Colapso ou Mito do Colapso?".
Hegemonia dos EUA
Quando o democrata assumiu a presidência norte-americana em 20 de janeiro deste ano, uma das grandes questões que pairavam era se Biden continuaria a guerra comercial com a China que o ex-presidente Trump havia desencadeado. Pedro Costa Júnior afirma que o democrata não apenas deu continuidade como intensificou a guerra comercial com Pequim.
O cientista político destaca que isso foi sinalizado, por exemplo na série de reuniões que Biden fez em junho.
"Primeiro ele se reúne com Boris Johnson [primeiro-ministro britânico], depois com o G7 [grupo das sete economias mais desenvolvidas do mundo], depois com a União Europeia e com a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] [...]. Depois ele vai ter aquele encontro teatral com Putin, uma reunião em que eles vão concordar em discordar. Mas com a China ele não se reuniu ainda [...]. Tudo isso é muito calculado, muito pensado do ponto de vista da política externa", comenta.
Pedro Costa Júnior recorda, que durante a cúpula da OTAN, a organização classificou Pequim, pela primeira vez, como um risco de segurança para a aliança militar.
"Todos os líderes concordaram que, em uma era de competição global, a Europa e a América do Norte devem se manter fortes e juntas na OTAN para defender nossos valores e nossos interesses. Especialmente em uma época em que regimes autoritários como a Rússia e a China desafiam a ordem baseada em regras", afirmou o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg, em discurso de encerramento da reunião de cúpula, em 14 de junho.
Para o cientista político, essas cúpulas que Biden fez, visitando aliados, são uma tentativa de restaurar uma ordem na política externa que não é mais possível.
"Essa peregrinação passa a mensagem: 'vocês [aliados] podem voltar a contar com os EUA, nós voltamos para o mundo, vocês podem voltar a contar com seu aliado tradicional. [...]. Eles querem voltar o lugar que já ocuparam [...]. Ele [Biden] quer restaurar a velha ordem Ocidental hegemônica dos EUA que, no entanto, é uma ordem que se esvai, não existe mais."
Republicanos e democratas unidos contra China
A retórica ofensiva contra a China se intensificou com Biden e tende a continuar pelas próximas administrações, acredita Pedro Costa Júnior. O cientista político afirma que, independentemente se o governo é democrata ou republicano, os EUA possuem uma política de Estado contra a China, e não começou com Trump.
"Isso fica claro no Congresso norte-americano, nas comissões de Relações Exteriores para a Ásia, para o Sudeste Asiático, para a China. Há uma política de Estado contra a China. Isso já estava notoriamente se desenhando no governo [do democrata Barack] Obama [2009-2017], quando Biden era vice-presidente. A Hillary [Clinton], quando era secretária de Estado [2009-2013], tentou fazer o chamado pivô para a Ásia, isolando a China."
O pivô seria um movimento estratégico dos EUA da Europa e do Oriente Médio em direção à Ásia, mas, de acordo com o especialista, o plano não avançou porque os "atoleiros" no Oriente Médio eram tão grandes que os EUA não conseguiram sair do Oriente Médio na ocasião, mas ali eles identificaram o "problema": o inimigo agora era China.
Por isso, Pedro Costa Júnior argumenta que a guerra comercial e tecnológica, contra o 5G chinês, Huawei e outras empresas que começaram no governo Trump, serão ampliadas e aprofundadas na administração Biden.
Resposta chinesa
Se a resposta da China para as tarifas, assim como as diversas sanções, impostas por Trump foi firme, o cientista político acredita que o presidente chinês Xi Jinping será cada vez mais agressivo a cada ação norte-americana contra Pequim. Mas ele frisa que a política externa chinesa é muito diferente do projeto norte-americano.
"A China, obviamente, já entendeu e está respondendo à altura. A política chinesa não tem essa política de expansão hegemônica, porque a China sequer tem uma religião para exportar para o mundo. Eles não querem exportar o marxismo, eles não têm uma política missionária igual os EUA, que tem essa coisa de ser a nação que vai exportar democracia, liberalismo e seus valores que são pretensamente universais."
A China não teria essas pretensões, pelo contrário, os interesses chineses seriam mais pragmáticos e pontuais.
"[A China] tem outro tipo de formação cultural e histórica. Ela não responde aos EUA com esse projeto hegemônico. Essa é uma diferença fundamental. Mas naquilo que são os seus interesses essenciais, ela não abre mão: questões relacionadas ao mar do Sul da China, Hong Kong, Taiwan, Nova Rota da Seda, 5G. Isso ela não vai abrir mão e não vai recuar um centímetro."
Desafios da administração Biden
Washington precisa agir rapidamente contra Pequim porque os EUA sabem que é uma questão de tempo para que a China se torne a primeira economia do mundo e que o 5G chinês e a Nova Rota da Seda ganhem cada vez mais importância econômica e política.
Mas Biden até agora não apresentou muito. Pedro Costa Júnior recorda que, em seis meses de presidência, o democrata já acumula duas derrotas na política externa: a mediação fracassada durante a troca de foguetes entre Israel e Hamas, na Faixa de Gaza, que deixou ao menos 243 palestinos mortos, incluindo 66 crianças, e vitimou 12 israelenses, incluindo duas crianças. A outra derrota ainda está se desenrolando: a saída das tropas norte-americanas do Afeganistão, que resultou na volta do Talibã (organização terrorista proibida na Rússia e em outros países) ao poder em poucas semanas.
Além disso, as iniciativas como Construa de Volta um Mundo Melhor (B3W, na sigla em inglês), que pretende investir US$ 40 trilhões (aproximadamente 211,6 trilhões) em infraestrutura em países em desenvolvimento, são vagas, comenta o especialista. O projeto é uma iniciativa do G7 e pretende rivalizar com a Nova Rota da Seda, da China.
"A Nova Rota da Seda é, uma espécie de Plano Marshall da China para este tempo, é plano de desenvolvimento para o mundo [...]. Os EUA trataram disso com o G7, eles chegaram a falar de um acordo de US$ 40 trilhões [R$ 211 trilhões] para tentar fazer um contraponto à Nova Rota da Seda, mas eles não falaram de onde é que vão tirar esses US$ 40 trilhões. Essa é a diferença da China. A China fala de onde vai tirar, eles se planejam, eles criam cronogramas, é uma diferença fundamental. A China está trazendo desenvolvimento para toda a região do Sudeste Asiático."
Por fim, Biden tem um desafio interno. O presidente dos EUA quer passar uma imagem de estabilidade, após Trump ter deixado uma marca de instabilidade, comenta o cientista político. Mas a administração Biden pode sofrer um grande revés em novembro de 2022, quando ocorrem as eleições de meio de mandato.
Pedro Costa Júnior comenta que os líderes mundiais estão de olho nessas eleições, uma vez que, embora a vantagem do Partido Democrata seja relativamente folgada na Câmara dos Representantes, os democratas possuem apenas voto de desempate no Senado.
"Se ele perder as eleições de meio de mandato ele não vai conseguir aprovar nada, ele vai se complicar bastante [...]. Mesmo que ele seja habilidoso, os EUA estão divididos e ele pode ter dois anos muito difíceis em que ele não consiga ratificar as suas decisões. E mais do que isso, se isso acontecer, ele pode ter um governo muito complicado e não conseguir se reeleger. E se ele não se reeleger pode voltar o trumpismo, com ou sem Trump, com alguém completamente imprevisível, alguém da extrema-direita", conclui.