Em crise desde 2018, após os estragos provocados pelo furacão Leslie, os ENM sofreram também com a interrupção dos serviços de construção de um navio encomendado por Timor-Leste devido à insolvência, à época, da AltanticEagle Shipbuilding, empresa responsável pelo projeto. Com isso, os trabalhadores do EMN tiveram seus contratos suspensos desde então.
Já em julho de 2019, Taur Matan Ruak, então primeiro-ministro de Timor-Leste, explicou, em um debate no Parlamento, que faltavam ainda 30% para concluir a construção do barco de carga e passageiros Haksolok, interrompida devido a problemas judiciais da AtlanticEagle.
Na ocasião, o ministro de Estado da Presidência, Agio Pereira, informou que caberia à Região Administrativa Especial de Oé-Cusse-Ambeno (RAEOA), como armador responsável pelo projeto, decidir se pretendia concluir as obras do ferryboat e dos pontões de Ataúro e de Oé-Cusse, ou desistir e perder as verbas já pagas, de cerca de US$ 16 milhões (R$ 84,2 milhões).
Um ano depois, uma reunião do Conselho de Ministros aprovou o projeto de resolução do governo, apresentado por Ruak, referente à conclusão do Haksolok. Segundo o governo de Timor-Leste, além do interesse público de melhoria e incremento das redes de comunicação nacionais, por meio da melhoria das ligações na costa norte do país e da criação de uma ligação às ilhas indonésias adjacentes, a embarcação tem como principal objetivo diminuir o isolamento da região de Oé-Cusse Ambeno.
"Estabelece-se, na presente resolução, que a RAEOA é a pessoa coletiva pública responsável pela condução do processo negocial e pela promoção das diligências necessárias para a conclusão da construção do navio Haksolok. Os órgãos da RAEOA ficam também exclusivamente incumbidos da prática dos atos relacionados com a gestão do contrato celebrado com a AtlanticEagle Shipbuilding para a construção do navio de carga e passageiros", lê-se no comunicado de imprensa.
Atualmente, a sócia majoritária da AtlanticEagle é uma sociedade de desenvolvimento criada pela RAEOA, sua maior credora. À Agência Lusa, Bruno Costa, gerente da empresa, afirmou que é o primeiro grande investimento que Timor-Leste faz em um país e que há um interesse estratégico e político não apenas de terminar a construção do ferry, mas de ser competitivo nos mercados nacional e internacional.
"Era importantíssimo que o governo português também ajudasse nesta iniciativa, que é de um país irmão. Espera-se do Estado português uma ajuda, uma abertura, para, de alguma forma, agradecer, entre aspas, esta entrada [de Timor-Leste no estaleiro], que vai recuperar a indústria de construção naval", disse Costa à Lusa.
Autarca diz que investimento está na fase final
Sputnik Brasil tentou contato com o gerente da AtlanticEagle por três dias, mas ele não respondeu às mensagens enviadas nem atendeu as ligações. Já Carlos Monteiro, presidente da Câmara Municipal (prefeito) de Figueira da Foz, revela, em entrevista à Sputnik Brasil, que o investimento está na fase final.
"A única situação que está pendente é Timor-Leste nomear o administrador responsável pela gestão dos fundos que vão aplicar no estaleiro. Tenho quase a certeza de que os investimentos vão dar certo e acredito que, até o fim do ano, os estaleiros vão estar a laborar", prevê.
Candidato à reeleição nas autárquicas que decorrem no fim do próximo mês, o político do Partido Socialista (PS), o mesmo do primeiro-ministro António Costa, diz que o governo português está atento à necessidade de contrapartidas necessárias para que os estaleiros honrem o compromisso com Timor-Leste.
"É uma obrigação de todos nós, quer dos autarcas, quer do governo, criar as condições para que esse compromisso seja levado a bom termo. Creio que todos vamos contribuir para que o investimento seja bem aplicado e bem gerido, não só para concluir o navio que está encomendado, mas para projetos futuros. Esses estaleiros empregam sempre umas dezenas de funcionários", explica.
Monteiro estima que ao menos 40 postos de trabalho sejam reativados. De acordo com ele, a vantagem é que Figueira da Foz já tem um conjunto de operários e soldadores qualificados, aptos a trabalhar e disponíveis assim que a situação estiver resolvida. O autarca acrescenta que o mais difícil, nesse mercado, é conseguir mão de obra especializada, o que não será um problema na região.
Segundo ele, a recuperação dos estaleiros navais já fazia parte do seu programa de governo, pois é importante economicamente para a região, não apenas em termos de Marinha Mercante, mas também para o ponto de pesca local e até para a náutica recreativa.
"Portanto, essa é uma estrutura de maior relevância dentro dessas áreas.Também há uma relevância a nível nacional, pois, para a mitigação das alterações climáticas, é muito importante. Tudo tem a ver com o transporte marítimo. A Figueira da Foz tem boas condições de construir navios", avalia.
Contudo, ainda há problemas a serem resolvidos. Desde 2019, pelo menos, o Partido Comunista de Portugal (PCP), questiona o governo a respeito de auxílios a trabalhadores. No ano passado, a eurodeputada Sandra Pereira recorreu à Comissão Europeia do Parlamento Europeu para perguntar quais apoios financeiros poderiam ser concedidos aos ENM por se tratar de um setor estratégico abandonado há três anos.
Infraestrutura e rendas pagas à administração portuária são desafios
Na avaliação da eurodeputada, os projetos de recuperação passam pela melhoria do equipamento instalado, com construção de uma doca seca para navios até 100 metros, o que permitirá intervir na área da reparação e inspeção de navios, assim como desenvolver outras capacidades na área da metalomecânica pesada. Monteiro reconhece que a reativação dos ENM depende dos investimentos de Timor-Leste.
"Há algumas intervenções que precisam ser feitas no estaleiro em resultado dos danos que foram provocados pelo Leslie, mas penso que essa situação também já está ultrapassada", pondera.
Há ainda outro problema que afeta também a AtlanticEagle: as rendas mensais pagas ao Porto de Figueira da Foz, que rondam os € 30 mil (R$ 185 mil), segundo o PCP. Essa é uma das contrapartidas que a empresa requer do Estado português, inclusive a negociação dos aluguéis atrasados.
Questionado pela Sputnik Brasil como a Câmara Municipal pode ajudar a solucionar essa equação, Monteiro afirma que está em diálogo com a administração portuária e com o governo de Timor-Leste.
"Temos conversado, já disponibilizei à administração portuária aquilo que fosse necessário. Tenho conversado com alguns membros do governo de Timor-Leste na perspectiva de também colocar à disposição deles o que for necessário aqui na Figueira da Foz", completa.
Procurada pela Sputnik Brasil, Fátima Alves, presidente do Conselho de Administração do porto de Figueira da Foz, diz que não pode dar detalhes sobre a negociação com a AtlanticEagle, mas que se trata de uma atividade muito importante para a região na área portuária.
"Estamos a tentar construir uma solução com a AtlanticEagle e com o governo de Timor-Leste, porque é de todo o interesse. É um patrimônio da Figueira [da Foz]. A administração está sempre aberta [à colaboração]. Dentro do nosso quadro legal e das responsabilidades da defesa do interesse público, estamos em conversação com o doutor [Bruno] Ramos para chegar a um bom termo", resume Fátima Alves.
Sputnik Brasil não conseguiu contato com a Embaixada do Timor-Leste em Lisboa.