A Frente de Libertação de Moçambique (FREMILO), partido no poder no país africano, exaltou o "empenho e a bravura" das forças militares nacionais e internacionais no combate ao terrorismo em Cabo Delgado, no norte de Moçambique.
"A comissão política reitera o seu encorajamento às Forças de Defesa e Segurança, em coordenação com as tropas de Ruanda e da SADC [sigla em inglês para Comunidade de Desenvolvimento da África Austral], a continuarem alinhados e com determinação no combate ao fenômeno, cujos resultados se refletem na recuperação dos postos administrativos de Diaca, Mbau e da vila de Mocímboa da Praia e outras posições anteriormente ocupadas pelos terroristas", diz o comunicado da FREMILO citado pela agência LUSA nesta quinta-feira (26).
A luta contra grupos armados extremistas em Cabo Delgado ganhou um novo impulso com a chegada de militares de Ruanda, que ajudaram as forças locais a reconquistar a estratégica vila portuária de Mocímboa da Praia, que estava nas mãos dos rebeldes há mais de um ano.
Segundo o documento da FREMILO, os resultados das operações conjuntas são promissores e trazem esperança para as populações deslocadas. De acordo com autoridades locais, mais de 3.000 pessoas morreram e outras 817 mil estão deslocadas devido ao conflito, que devastou distritos do norte da província de Cabo Delgado nos últimos quatro anos.
A Sputnik Brasil conversou com dois especialistas sobre a presença de terroristas islâmicos no norte de Moçambique, a chegada de tropas ruandesas no local e as possíveis consequências políticas, econômicas e sociais da expulsão dos extremistas de Cabo Delgado para Moçambique, Ruanda e a região como um todo: Arcénio Francisco Cuco, doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor na Universidade Rovuma, em Moçambique, e Franco Alencastro, mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).
Da Tanzânia para Moçambique
Desde 2017, a província de Cabo Delgado registra ações corriqueiras de militantes islâmicos, que realizam ataques violentos mesmo durante o dia. Franco Alencastro explica que esse grupo extremista fundamentalista, que se autodenomina Ansar al-Sunna, surgiu em 2015 a partir dos ensinamentos do clérigo salafita queniano Aboud Rogo Mohammed, que morreu em 2012.
"Rogo era um clérigo radical que defendia, entre outras crenças, que você trabalhar para o governo queniano era um crime contra Alá e que você poderia servir a Deus ou ao Estado, mas não aos dois [...]. Rogo desenvolveu uma forma bem moderna de divulgar os seus ensinamentos. Foram criados CDs com seus discursos que eram vendidos na rua e ele também usava as redes sociais. Os militantes extremistas que atuam em Cabo Delgado seguem muito dessa filosofia de Aboud Rogo e eles defendem, por exemplo, que a Sharia, a lei islâmica, deve ser aplicada em Moçambique e pregam lealdade ao grupo Estado Islâmico [Daesh, organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países]."
Alencastro acrescenta que o grupo de seguidores de Rogo se originou na Tanzânia antes de se instalar no norte de Moçambique, uma região com grande população islâmica, em 2015. Mas apenas dois anos depois o grupo começou a adotar as táticas violentas, atacando delegacias e a população civil e afirmando que não acreditava na educação ocidental e que não pagaria impostos.
Após algumas vitórias contra as tropas moçambicanas, o Ansar al-Sunna declarou lealdade ao Daesh e essa associação permitiu aos extremistas islâmicos conseguirem armas sofisticadas, como lança-granadas, conta Alencastro. "Esse apoio tático, e a própria desorganização das forças moçambicanas, também contou com a constante minimização do conflito feito pelas autoridades moçambicanas, que preferiram dizer que estava tudo sob controle", recorda.
Esse desleixo das autoridades de Moçambique é sublinhado Arcénio Francisco Cuco, que afirma que pode ter havido negligência por parte do governo de Filipe Nyusi.
"No último discurso que o chefe de Estado deu com relação a Cabo Delgado ficou claro que a situação já se falava bem antes de eclodir em 2017. O chefe de Estado mostrou que já existiam informações claras de que estavam a acontecer movimentos estranhos nesses lugares. O que significa que pode ter havido uma certa negligência por parte do governo moçambicano em se antecipar a uma situação que pudesse se tornar alarmante, como se tornou em 2017. Estou expectante que o governo moçambicano tenha aprendido [...]. Penso que daqui para frente vai valorizar toda informação que receber sobre qualquer movimento estranho que possa colocar em causa a soberania e a integridade do território nacional."
Intervenção de Ruanda
Cuco afirma que desde o início do conflito com o Ansar al-Sunna a administração Nyusi nunca se mostrou contra a presença de forças externas em Moçambique.
"O que se fez foi uma ponderação sobre que tipo de intervenção seria satisfatória para a situação que Moçambique vive hoje. Muitos países ocidentais e asiáticos se disponibilizaram a apoiar Moçambique do ponto de vista militar, mas Moçambique optou por soluções da região e dentro de relações bilaterais que tem com outros países africanos" assinala.
A solução que saiu do papel de forma mais rápida foi o envio de mil ruandeses para Cabo Delgado. Essa solução bilateral foi criticada pela ministra da Defesa da África do Sul, Nosiviwe Mapisa-Nqakula, que disse que lamenta o acordo: "É de lamentar, é uma situação sobre a qual não temos controle e que significa que Moçambique acordou com os ruandeses que as Forças Armadas de Ruanda deveriam intervir".
Alencastro relembra que a África do Sul, que faz fronteira com Moçambique, é a grande potência militar da região e havia prometido enviar tropas para Cabo Delgado. Mas o país atualmente se encontra em uma grande crise local.
"O envio das tropas da SADC foi combinado em maio, mas acabou atrasando. Isso tem muito a ver com a situação difícil enfrentada pela África do Sul, que é, de longe, a maior potência militar dentro do grupo. Vale lembrar que a África do Sul vive uma situação tensa já há alguns meses, com a condenação do ex-presidente Jacob Zuma por corrupção, em 29 de junho. Zuma questionou essa prisão, disse que o julgamento foi político, e isso levou a uma onda de protestos gravíssimos que resultou na morte de mais de 300 pessoas. É possível que com o recuo da África do Sul, que está aí envolvida com questões de política domésticas, os outros países da organização ficaram menos dispostos a contribuir, já que suas tropas ficariam mais expostas", analisa o mestre em Relações Internacionais.
Arcénio Cuco reforça que o importante é que mitigar a situação em que Moçambique se encontra e que é inegável que as forças Moçambique-Ruanda estão produzindo resultados significativos.
"Basta ter em conta que os pontos mais estratégicos que eram ocupados pelos terroristas foram em menos de um mês recuperados pelas forças conjuntas [...]. Está a ser devolvida uma certa esperança para todas aquelas pessoas que têm vindo a sofrer com o terrorismo [...]. Defendo que em situações como essa, alianças de conveniência são necessárias porque precisamos buscar soluções para impedir que a violência que se vive naquele lugar [...] atinja outros países da região. Mais do que questionar a presença de Ruanda, vemos os resultados que a presença de Ruanda tem produzido no nosso país. Isso, para mim, é fundamental. O resto se discute depois", frisa o professor na Universidade Rovuma.
Implicações políticas da intervenção
No fim de julho, o presidente Nyusi afirmou que nenhum país exigiu recompensa para participar no combate ao terrorismo: "Não existe razão para se recear a presença e a intervenção das forças da SADC nem de Ruanda. Ninguém pediu uma recompensa a Moçambique por apoiar a salvar vidas dos moçambicanos. Pelo menos eu e o meu governo não temos nenhum conhecimento", salientou.
Ainda assim, os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil concordam que é uma situação com potenciais ganhos políticos, mas não só. Arcénio Cuco reitera que, pelo menos no discurso oficial, não terá nenhuma contrapartida por causa da intervenção. Mas ele aponta que há uma série de jogos de interesse nessas situações.
"Desde que Ruanda falou que ia intervir em Moçambique, há uma série de eventos que vem acontecendo. Os EUA decidiram enviar seu embaixador de Ruanda [Peter Hendrick Vrooman] para Moçambique. Por outro lado, o presidente de Moçambique viajou para Ruanda logo depois da visita do presidente francês [Emmanuel Macron]. Há um jogo de peças no xadrez que devem ser chamadas para se pensar as razões que estariam movendo Ruanda a estar presente neste combate ao terrorismo em Moçambique", avalia.
Franco Alencastro, por sua vez, enfatiza os ganhos políticos de Ruanda, já que o país se consolida como um esteio da segurança no continente, ajudando a promover a estabilidade, mas evidencia ainda outros possíveis benefícios.
"Tem outras coisas em jogo também. Recentemente a França anunciou uma iniciativa de cooperação com Ruanda. Avaliada em US$ 500 milhões [aproximadamente R$ 2,6 bilhões] com duração de quatro anos. Uma coisa parece não ter muito a ver com outra até você lembrar que uma famosa empresa de petróleo francesa era uma das principais investidoras na região de Cabo Delgado, justamente a que está sendo ameaça pelos militantes. Então do ponto de vista da política internacional, Ruanda acaba salvaguardando a região para os interesses desses investidores ao mesmo tempo em que se beneficia economicamente."
Em abril, a gigante francesa de energia Total suspendeu os trabalhos em um enorme projeto de gás, avaliado em US$ 20 bilhões (R$ 105 bilhões), após os terroristas terem atacado a cidade de Palma, o centro urbano mais próximo de empreendimentos do setor de gás no país, avaliados em US$ 60 bilhões (R$ 315 bilhões).
Franco Alencastro recorda ainda que o exército de Ruanda é muito experiente em situações de conflito, uma vez que desde 2005 Ruanda é um dos países mais participativos em operações de paz no continente africano: "Hoje tem mais de 5.000 militares ruandeses em cinco missões da ONU [Organização das Nações Unidas]. Isso permitiu as tropas de Ruanda ganhar muita experiência e financiamento, já que a ONU arca com o financiamento das missões".
Fim do conflito e cooperação
Os especialistas concordam que a chegada dos militares ruandeses é um ponto de virada importante no conflito, mas sublinham que isso não significa que Ansar al-Sunna está derrotado.
Franco Alencastro afirma que é preciso cautela, uma vez que em conflitos entre forças do Estado e grupos armados, os últimos muitas vezes se ocultam entre a população ou buscam esconderijos, voltando quando os adversários baixaram a guarda.
"Não por acaso tivemos recentemente a vitória do Talibã no Afeganistão, que mesmo tendo perdido o poderio em 2001, sempre continuou um combate de guerrilha e manteve esse atrito até surgir a ocasião de retomar o poder", alerta.
Além disso, Alencastro recorda que, apesar de avaliada em bilhões de dólares, os investimentos feitos até agora na região de Cabo Delgado não beneficiaram a população local, que é majoritariamente formada por agricultores e que enfrenta uma alta taxa de desemprego.
"Essa sensação de abandono e frustação que é sentida na região explica por que o Ansar al-Sunna conseguiu recrutas locais e, se essas causas não forem enfrentadas, é possível que o grupo ressurja."
Arcénio Cuco avalia que é fundamental que os países da região reforcem os laços e estendam a mão aos países vizinhos, relembrando que a Tanzânia foi bastante questionada por ter se mantido inerte nos últimos anos, apesar dos laços históricos que tem com Maputo.
"É necessário que exista ações claras que demonstrem que os países estão interessados em um apoio mútuo quando qualquer um desses países esteja em uma situação de instabilidade como no caso de Moçambique [...]. A partir do momento em que os países da região começaram a entender que era muito importante a intervenção em Moçambique, isso chama a atenção a todas as forças de defesa e segurança na região. De forma que passará a haver maior vigilância na região", analisa.
O professor da Universidade Rovuma tem esperança de que a SADC se torne "uma comunidade no verdadeiro sentido da palavra", assim boas alianças vão surgir, o que permitirá maior patrulhamento contra possíveis focos de violência extrema.
Na mesma linha, Franco Alencastro afirma que o governo de Moçambique precisa ampliar sua cooperação internacional para prevenir o reaparecimento e fortalecimento de grupos extremistas. E conclui enfatizando a importância de investir em Cabo Delgado após o fim do conflito.
"Quando a região de Cabo Delgado estiver estabilizada é provável que os investimentos do setor de gás natural retornem com grandes entradas de capitais dos EUA, Itália e França. Assim, se abre uma oportunidade, que precisa ser uma prioridade para as autoridades moçambicanas canalizar essa riqueza gerada para investimentos na infraestrutura local em Cabo Delgado, em serviços públicos de qualidade, em saúde e educação. O histórico mostra que os grupos extremistas prosperam em ambientes de pobreza e abandono pelo Estado. Então, investir no desenvolvimento da região é o caminho mais seguro para impedir que essa ameaça retorne."