Já a Hungria, por exemplo, primeiro país da Europa a administrar a terceira dose, estendeu a vacinação complementar, desde o início de agosto, a todos que quiserem, desde que tenham tomado a segunda dose há pelo menos quatro meses. Até o Brasil, que tem apenas 28% da população com a imunização completa, anunciou, nesta semana, o início do reforço vacinal em idosos e imunossuprimidos em setembro.
A aplicação universal da dose extra é um cenário pouco provável em Portugal, pelo menos, no curto prazo. Um dos países com a cobertura vacinal completa mais avançada no mundo, cobrindo 73% da população, e 83% com a primeira dose, quer atingir primeiro os 85% de portugueses inoculados com as duas doses para, só depois, pensar na terceira.
Em entrevista à Sputnik Brasil, Gustavo Tato Borges, que assumiu a presidência da Associação Nacional de Médicos da Saúde Pública no lugar do epidemiologista Ricardo Mexia, licenciado para disputar as eleições autárquicas, diz ser favorável à aplicação da terceira dose nos idosos e nas pessoas "mais frágeis", com comorbidades, mas não em toda a população.
"Aumentar ou reforçar o sistema vacinal com as vacinas atuais só fará algum sentido naquelas pessoas idosas, com imunossupressão, problemas renais ou respiratórios. Se calhar, reforçar os obesos, pois sabemos que é um fator de risco importante para ter a doença grave de COVID-19", avalia Borges.
Questionado pela Sputnik Brasil, por que ainda não se avançou nessa discussão em Portugal, ele argumenta que há uma clara noção de que, seguindo as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS), primeiro é preciso vacinar todas as pessoas que possam e queiram ser vacinadas com o esquema vacinal habitual.
Ele prevê que o país deve começar a aplicar a terceira dose nos idosos e em pessoas com comorbidades entre outubro e novembro. Segundo ele, a Direção-Geral de Saúde (DGS) faz um trabalho muito cauteloso e baseado nas orientações da OMS.
"Enquanto a OMS não disser que é fundamental vacinar com três doses, creio que Portugal vai demorar a avançar nesse caminho", acredita.
Possibilidade de vacina se tornar anual, como a da gripe
Outra possibilidade que ele levanta é de que haja uma atualização da vacina contra COVID-19 para que seja aplicada anualmente, como a da gripe, em doentes mais graves. De acordo com especialistas, os fármacos atuais previnem a doença grave e a morte, mas não impedem a infecção nem a transmissão.
"O esquema vacinal que está previsto são vacinas de uma ou duas doses, que foram feitas antes de aparecer a variante Delta e que oferecem proteções um bocadinho mais baixas para essa variante. Se aparecer uma vacina muito mais eficaz contra a variante Delta, aí fará sentido vacinar toda a gente [com a terceira dose]", pondera.
Nesta quarta-feira (25), o diretor-geral da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, afirmou, em coletiva de imprensa, que é errado tecnicamente e do ponto de vista moral aplicar doses adicionais de imunizantes contra a COVID-19, enquanto muitos países sofrem com a escassez de vacinas. Segundo ele, isso permite a circulação e a mutação do novo coronavírus.
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Borges alega que a preocupação da OMS é vacinar 85% da população mundial para tentar conter o vírus, mas, enquanto houver países com uma cobertura vacinal muito baixa, há sempre o risco acrescido de aparecerem novas variantes.
Indagado pela Sputnik Brasil se Portugal deveria abrir mão de aplicar doses adicionais e doá-las para países que têm dificuldade de aquisição, ele alega que esse papel cabe à OMS. O médico pondera que o país não pode prescindir dessas vacinas para o próximo inverno europeu, mas que já há um esquema de aceleração vacinal na África.
"Mas nunca será rápido o suficiente para que possamos chegar ao inverno aqui e abdicar da proteção da terceira dose. A UE já tem um contrato com a indústria farmacêutica para a terceira dose, Portugal vai beneficiar e inocular as pessoas mais frágeis para reforçar a sua imunidade. Não podemos arriscar perder mais idosos e pessoas vulneráveis no inverno por causa dessa doença", justifica.
DGS anuncia reforço na imunização para 100 mil imunodeprimidos
No mesmo dia em que Tedros Adhanom apelou a valores morais para tentar frear o ímpeto de países com a vacinação mais avançada a aplicar a terceira dose, a DGS anunciou que deve reforçar a imunização de cerca de 100 mil pessoas imunodeprimidas. Estão nesse grupo portadores de HIV, pacientes transplantados e doentes oncológicos.
Segundo a SIC, ainda está em estudo a hipótese de estender o reforço vacinal a 1,5 milhão de idosos com sistema imunológico mais vulnerável, mas sem datas nem previsões. De acordo com a TV portuguesa, a ministra da Saúde, Marta Temido, não vai mais aguardar recomendações da Agência Europeia de Medicamentos (EMA, na sigla em inglês) devido à demora na definição dos parâmetros para a aplicação da terceira dose.
Apesar de elogiar a DGS, Borges reconhece que há um problema de comunicação não só do órgão, mas de todo o Ministério da Saúde no que diz respeito às informações sobre o combate à pandemia. No atual momento, ele defende que a mensagem que deve ser reforçada é a de que devem ser vacinados todos que puderem e quiserem. Do contrário, isso poderia causar um novo ruído comunicacional.
"Muitas mensagens quanto à vacinação poderiam fazer com que as pessoas ficassem sem perceber se são várias doses, se vale a pena ser vacinado porque os idosos já vão ser imunizados novamente, levantaria muita confusão. Vamos chegar aos 85% [com vacinação completa] e depois vamos reforçar os mais frágeis. Acho que é uma tentativa da DGS de diminuir o ruído", supõe.
Um exemplo concreto do conflito de informações foi a imunização para crianças e adolescentes de 12 a 15 anos. Apesar de a DGS tê-la recomendado, inicialmente, apenas para os jovens com comorbidades, com orientação médica, o presidente Marcelo Rebelo de Sousa, quando em sua visita ao Brasil, deu a entender que bastava que os pais dos menores de idade autorizassem.
Após a confusão e a pressão política e da imprensa portuguesa, a DGS acabou tornando a vacinação universal também nessa faixa etária. No entanto, Borges critica a interferência presidencial e recomenda que as decisões sejam apenas técnicas, a fim de não haver mais barulho na comunicação.
"A verdade é que a sociedade não para, e vários atores se comunicam com a população e acabam por transmitir mensagens. O mais visível deles é o senhor presidente da República, que não se coíbe de comentar tudo que é atualidade, seja do desporto, da saúde ou da política. Isso faz com que gere ruídos, como na vacinação de 12 a 15 anos. Ele não deveria ter comentado, mas ter aguardado a posição técnica da DGS, porque ficou a ideia no ar de que ele forçou a DGS a vacinar os meninos de 12 a 15 anos", lamenta.
Infectologista aponta aumento de internações e mortes como razão
O infectologista brasileiro Gerson Salvador chama a atenção para o fato de ter havido um aumento de internações e de mortes por COVID-19 mesmo em países que já estão muito avançados na vacinação, com destaque para o Reino Unido e Israel, levando esses países a uma nova estratégia de imunização.
Mais de 1 milhão de israelenses já receberam o reforço vacinal, e o Reino Unido planeja começar a aplicação da terceira dose em setembro, sem ter definido ainda se será universal ou apenas para grupos vulneráveis.
Em Portugal, o relatório semanal de monitorização das linhas vermelhas para a COVID-19, publicado nesta sexta-feira (27) pela DGS e pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), aponta que a atividade epidêmica na população sênior e a pressão nos serviços de saúde poderão aumentar nas próximas semanas.
"A análise dos diferentes indicadores revela uma atividade epidêmica de infecção por SARS-CoV-2 de elevada intensidade, com tendência estável a nível nacional, mas com provável tendência crescente na região Centro, nos grupos etários dos 10 aos 29 anos e acima dos 65 anos de idade", lê-se em um trecho.
Salvador acrescenta um segundo fator que justifica o reforço vacinal: a queda da imunidade e de anticorpos, depois de alguns meses da vacinação. Segundo ele, isso está bem documentado, principalmente em pessoas mais velhas ou imunodeprimidas.
"Por fim, há estudos que mostram aumento de títulos de anticorpos com a terceira dose. Possivelmente, isso confere mais imunidade e pode ter impacto na redução das mortes e dos casos, principalmente em pessoas mais velhas. Frente ao aumento do número de mortes e casos nesses países, é uma estratégia defensável", afirma Salvador à Sputnik Brasil.