Quais seriam repercussões da reconciliação entre Arábia Saudita e Irã para o Brasil?
16:38 13.10.2021 (atualizado: 11:21 03.12.2021)
© AP Photo / Bandar AljaloudPríncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman (c) acompanha o primeiro-ministro iraquiano Mustafa al-Kadhimi (d) em Riad, na Arábia Saudita, dias antes da reunião entre oficiais sauditas e iranianos em Bagdá, Iraque. Foto de arquivo
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A Sputnik Brasil conversou com especialista em questões do Oriente Médio sobre as implicações que um restabelecimento das relações entre Arábia Saudita e Irã pode ter para o Oriente Médio e para o mundo.
O Irã pediu à Arábia Saudita que os países reabram os consulados e restabeleçam os laços diplomáticos como um prelúdio para o fim da guerra do Iêmen, informa a agência Bloomberg nesta quarta-feira (13).
Altos funcionários do Irã e da Arábia Saudita se encontraram quatro vezes desde abril deste ano com o objetivo de reduzir as tensões e os conflitos no Oriente Médio. A última rodada de negociações foi em 21 de setembro e outra deve ocorrer em breve de acordo com autoridades iranianas.
A Sputnik Brasil conversou com Fernando Brancoli, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e especialista em questões do Oriente Médio, sobre as implicações que um reestabelecimento das relações entre Arábia Saudita e Irã pode ter para o Oriente Médio e para o mundo.
Relações rompidas desde 2016
Em janeiro de 2016, o clérigo xiita Nimr al-Nimr foi executado na Arábia Saudita, país de maioria sunita. A morte do clérigo, considerado terrorista pelo governo saudita, foi bastante criticada no Irã, país de maioria xiita, e, em represália, manifestantes incendiaram a embaixada saudita em Teerã. Em seguida, Riad decidiu romper relações diplomáticas com Teerã.
Na semana passada, o ministro das Relações Exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdollahian, afirmou que as negociações entre os dois países estão no "caminho certo" e frisou que "não fomos [Teerã] os primeiros a cortar relações com a Arábia Saudita. A decisão foi tomada pelas autoridades sauditas".
© REUTERS / Mídia Associada O ministro das Relações Exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdollahian (à esquerda) encontra-se com o presidente da Síria, Bashar al-Assad, em Damasco, Síria, 29 de agosto de 2021
O ministro das Relações Exteriores do Irã, Hossein Amir-Abdollahian (à esquerda) encontra-se com o presidente da Síria, Bashar al-Assad, em Damasco, Síria, 29 de agosto de 2021
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Iraque mediador
Os encontros entre as duas nações estão ocorrendo no Iraque e foram inicialmente mediadas pelo primeiro-ministro iraquiano Mustafa Al-Kadhimi para promover uma região mais integrada.
© AP Photo / Gabinete do Líder Supremo IranianoLíder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, fala com primeiro-ministro iraquiano Mustafa al-Kadhimi em reunião em Teerã, Irã, 21 de julho de 2020
Líder supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, fala com primeiro-ministro iraquiano Mustafa al-Kadhimi em reunião em Teerã, Irã, 21 de julho de 2020
© AP Photo / Gabinete do Líder Supremo Iraniano
"O Iraque está utilizando esse momento político de maneira muito habilidosa e coerente para tentar se apresentar como mediador. Iraque passou por eleições parlamentares há pouco tempo, está ainda em um processo de muita instabilidade política, e tenta agora se apresentar como um possível mediador diplomático", explica Fernando Brancoli.
O professor da UFRJ afirma que o Iraque tem muito a ganhar com esse papel, principalmente porque a agenda do país nos últimos anos não tem sido muito favorável: conflitos, violência, presença do Daesh (organização terrorista proibida na Rússia e em vários outros países). "O Iraque ressurgindo como mediador diplomático é muito interessante para o país e pode incentivar inclusive outros processos."
O que está em jogo
Fernando Brancoli comenta que a saída dos EUA do Afeganistão e a retomada das negociações entre Washington e Teerã do Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA, na sigla em inglês), também conhecido como acordo nuclear, foram importantes para essa reaproximação entre Irã e Arábia Saudita.
"Apesar de estarem reagindo principalmente [aos movimentos] dos EUA, o grande cálculo no fim das contas é interno, das lideranças dos dois países. Isso não significa que outros países não estão interessados nesse processo [...]. Temos o papel dos EUA, que incentiva esse processo, que acha interessante que ele ocorra. Temos o papel da Rússia, como potência regional, que tem interesse em uma região mais pacífica."
O especialista destaca que os dois países possuem interesse em sair de guerras na região, uma vez que ambos estão envolvidos direta ou indiretamente em conflitos no Iêmen e na Síria.
"Temos a guerra do Iêmen, onde a Arábia Saudita está envolvida há algum tempo e onde os rebeldes houthis enfrentam os sauditas com apoio indireto iraniano. A Arábia Saudita está bastante preocupada em como sair desse conflito [...] quase um Vietnã da Arábia Saudita e, obviamente, uma ação mais enérgica por parte do Irã, retirando apoio, poderia beneficiar nesse sentido".
Também na Síria, Teerã e Riad apoiam diferentes atores. O conflito ali já dura dez anos e nada indica que vá se solucionar tão cedo, avalia Brancoli. "Os dois países buscam encontrar uma saída para de alguma maneira conseguir colocar energia, dinheiro e capital político em outros esforços".
Empecilhos
O professor da UFRJ salienta que ainda é muito cedo para saber exatamente quais as chances de sucesso nesse processo de restabelecer as relações entre as duas potências do Oriente Médio, principalmente porque a maioria das informações que vieram a público foram divulgadas por Bagdá, que tem todo interesse no sucesso das negociações.
"Temos que lembrar que a disputa é política, mas tem um tempero [...] que envolve práticas religiosas. O Irã como representante de ramo do xiismo e a Arábia Saudita do sunismo. Não são rivais por causa disso, mas empregam essa narrativa religiosa em alguns contextos para influenciar a disputa política [...]. O sucesso necessariamente vai envolver um debate interno entre grupos importantes nos dois países que acreditam que nenhum tipo de mediação é possível, que se trata de um rival inegociável, o que facilita linha-dura em cada um desses países."
Brancoli recorda que em política internacional ter um inimigo é muito importante porque é alguém em que as autoridades podem colocar a culpa por problemas internos e para mobilizar a população. "Apaziguar esses grupos mais linha-dura será um desafio para que tenham sucesso no futuro", pondera.
© REUTERS / Thaier Al-SudaniPeregrinos xiitas batem no peito antes de Ashura, o dia mais sagrado do calendário muçulmano xiita em Bagdá, Iraque, 17 de agosto de 2021
Peregrinos xiitas batem no peito antes de Ashura, o dia mais sagrado do calendário muçulmano xiita em Bagdá, Iraque, 17 de agosto de 2021
© REUTERS / Thaier Al-Sudani
Repercussões internacionais
Ainda que haja muitas incertezas, uma reconciliação entre Irã e Arábia Saudita teria repercussões em todo o mundo, a começar, evidentemente, pelo Oriente Médio.
"Estamos falando não só de um caráter geopolítico, mas humanitário. Guerras [no Iêmen e na Síria] são desastrosas para a população civil, com o aumento do fluxo de refugiados, aumento da fome, de morte de civis. De maneira direta que [um acordo] pode levar a uma mudança benéfica para toda a região", assinala o especialista.
Mas são os impactos indiretos que possuem o potencial de impactar todo mundo, já que Irã e Riad são dois dos grandes produtores de petróleo e derivados do mundo.
"O preço do barril do petróleo cresce desde o início da pandemia de COVID-19. Imaginando um cenário mais tranquilo, em que a produção possa aumentar, um acordo entre Arábia Saudita e Irã facilitaria um descongelamento das relações entre EUA e Irã, o que pode fazer com que o preço do petróleo diminua. Teríamos aumento de produção e um descongelamento das relações do Irã com o resto do Ocidente. Teria sim a possibilidade de mudanças muito profundas dentro no Oriente Médio e no cenário global", considera.
O Brasil também seria impactado, principalmente pelo preço do combustível, mas não só.
© Folhapress / Danilo VerpaFrentista abastece automóvel em posto de gasolina de São Paulo. Só esse ano, a gasolina já subiu 73,4% (foto de arquivo)
Frentista abastece automóvel em posto de gasolina de São Paulo. Só esse ano, a gasolina já subiu 73,4% (foto de arquivo)
© Folhapress / Danilo Verpa
"A inflação no Brasil está relacionada com o aumento do preço dos combustíveis nos últimos meses. Há ainda itens de exportação que, apesar de terem menos destaque, são muito importantes."
Um desses itens é a carne halal, que precisa ser abatida seguindo os preceitos religiosos islâmicos. Brancoli recorda que o Brasil é o maior exportador de carne halal do mundo e que a Arábia Saudita é um grande comprador de carne de frango halal do Brasil.
"Imagine que o país [Arábia Saudita] passe a gastar menos energia e dinheiro em crises militares. É um país que acaba se desenvolvendo mais economicamente e poderia ser interessante" para os dois países estreitar esses laços, conclui o especialista.