Analista: política do Brasil para Cuba é 'bastante agressiva' e define ilha como 'inimiga'
12:12 29.10.2021 (atualizado: 06:25 21.11.2021)
© AP Photo / Jacquelyn MartinPessoas protestam contra o governo cubano em Washington, 26 de julho de 2021
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Há alguns dias, Cuba acusou os Estados Unidos de organizar o movimento antigovernamental no país. A Sputnik Brasil conversou com um especialista sobre os fatores que estão por trás das tensões entre os dois países.
Em 26 de outubro, o presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel, culpou os Estados Unidos por incentivar as manifestações por dissidentes na ilha contra o governo comunista marcadas para o dia 15 de novembro.
Em vista disso, a Sputnik Brasil teve uma conversa com Roberto Moll Neto, professor do Departamento de História do ESR/UFF e do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos da Defesa e da Segurança do INEST/UFF, que opinou sobre o possível papel de Washington nos protestos na ilha caribenha e também se o Brasil pode servir ou não de mediador no conflito entre os dois Estados.
Manifestações em Cuba: insatisfação popular e papel dos EUA
Os protestos da população cubana ocorrem com frequência na ilha de Cuba. Na opinião de Roberto Moll Neto, as manifestações marcadas para 15 de novembro "muito possivelmente têm a participação indireta dos Estados Unidos", embora agora seja bem difícil precisar que tipo de participação é essa. Porém, aponta o professor, os EUA historicamente têm com frequência alimentado esse tipo de manifestações em Cuba.
Mas, por outro lado, ele frisa que há uma crise de expectativa de satisfação em Cuba, sobretudo da juventude cubana, decorrente de problemas estruturais históricos que se acentuaram recentemente.
© AP Photo / Ariel Ley RoyeroPresidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel
Presidente de Cuba, Miguel Díaz-Canel
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Essa insatisfação foi gerada por vários elementos, entre esses estão as restrições nos canais de participação política, conforme o especialista.
O segundo elemento são problemas econômicos, que desapontaram as expectativas dos cubanos geradas a partir dos anos de 2005-2007, quando a economia cubana voltou a se acelerar muito. Essa esperança tem alguns fatores que se deterioraram no último ano, aponta ele.
Primeiramente, foi alimentada pela abertura e pela atração de capital europeu, driblando o bloqueio econômico que os EUA impuseram sobre Cuba. Entretanto, mais recentemente, a crise econômica global e também a crise sanitária diminuíram e alavancaram os entraves a essa atração de capital europeu para Cuba.
Outra questão é a relação de Cuba com a Venezuela. De acordo com o professor, a troca de serviços médicos por petróleo venezuelano ao final ajudou muito a aquecer a economia da ilha. "Só que, com a crise econômica na Venezuela, o papel do país na economia cubana passou a se deteriorar", constatou.
Mais um fator por trás do descontentamento dos cubanos é a chegada, em vez de uma onda rosa com governos latino-americanos simpatizantes de Cuba, de uma onda conservadora na América Latina, que afastou a região de Cuba e também trouxe consequências negativas para a economia cubana.
"É claro que os Estados Unidos se aproveitam disso de certa maneira para jogar mais gasolina nessa fogueira", resumiu o professor.
Intervenção na soberania cubana?
O assessor do governo Biden para a América Latina, Juan González, prometeu que os EUA vão "reagir" se as autoridades cubanas tentarem impedir as manifestações em Cuba.
O professor concorda que essa declaração pode ser classificada como "uma ameaça de intervenção estadunidense na soberania cubana".
Ao mesmo tempo, do ponto de vista dele, essa ameaça é muito mais retórica e efetivamente não vai resultar em novas sanções contra Cuba. O professor acha que muito provavelmente o governo Biden manterá a política de pressão em relação a Cuba como na era Trump e não retomará a política do governo Obama de reaproximação com Cuba.
Embora Joe Biden tenha prometido retomar o processo de aproximação com Cuba durante a campanha eleitoral, o especialista não vê perspectiva disso.
Impacto do bloqueio econômico
O bloqueio econômico imposto pelos EUA a Cuba tem impacto significativo sobre a ilha, principalmente dificulta, na verdade, que Cuba tenha acesso a petróleo, proteína animal e produtos industrializados, esclarece o professor.
"Obviamente, é um impacto sobre a economia enorme", aponta ele, acrescentando que o bloqueio tem impactos negativos de longa duração, não só sobre a qualidade de vida dos cubanos, mas também sobre o desenvolvimento econômico do país.
© AP Photo / Alexandre MeneghiniCarro antigo passa pela embaixada dos EUA carregando uma bandeira cubana durante carreata de protesto contra o embargo contra Cuba pelos EUA, Havana, 28 de março de 2021
Carro antigo passa pela embaixada dos EUA carregando uma bandeira cubana durante carreata de protesto contra o embargo contra Cuba pelos EUA, Havana, 28 de março de 2021
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Nesse sentido, as sanções norte-americanas geram uma insatisfação popular que se manifesta muitas vezes contra o governo. O professor ainda ressalta que essa insatisfação "tem fundamento nessa política completamente controversa, e eu diria até covarde, dos Estados Unidos sobre a ilha".
Para quê prestar tanta atenção a uma pequena ilha como Cuba?
Com tantas potências mundiais no foco dos interesses norte-americanos, como a China e a Rússia, é curioso saber o que gera tanta atenção a partir dos EUA sobre a ilha de Cuba.
Ao responder a essa pergunta, o professor enumera três elementos de perspectiva geoestratégica.
O primeiro é a posição do mercado cubano, que para os EUA é muito pequeno: embora seja um mercado pequeno, é um mercado importante para determinados setores da economia dos EUA, principalmente o setor agrícola, relembra o professor, até que o setor agrícola americano algumas vezes faz pressão contra o bloqueio econômico, porque quer entrar no mercado cubano fornecendo proteína animal e outros produtos alimentícios.
O segundo fator é o seguinte: a posição de Cuba na região, na bacia do Caribe, é uma posição extremamente importante do ponto de vista geoestratégico. O fluxo de mercadorias dos Estados Unidos na bacia do Caribe é bastante grande.
Quando a gente fala da Ásia, há um fluxo na bacia do Caribe que margeia Cuba de certa maneira ultrapassando o canal do Panamá, atingindo o Leste Asiático. Então, "Cuba está em uma posição estratégica importante no meio desse fluxo comercial, que tanto pode ameaçar os Estados Unidos quanto pode ser um ponto de ajuda e de suporte aos EUA", ressalta o especialista.
© AP Photo / Jacquelyn MartinHomem com bandeira cubana durante um protesto contra o governo cubano em Washington, 26 de julho de 2021
Homem com bandeira cubana durante um protesto contra o governo cubano em Washington, 26 de julho de 2021
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A estratégia dos EUA, sobretudo no governo Obama, chamada Pivot to Asia (Virada para Ásia), impõe uma necessidade muito maior dos EUA controlarem a bacia do Caribe, em função do canal do Panamá e da importância econômica e militar e também no deslocamento de tropas através do canal. Nesse sentido, Cuba se torna ainda mais importante.
O terceiro elemento foi o crescimento da presença chinesa e russa na América Latina, e sobretudo em Cuba, o que causou uma certa pressão nos EUA na era Obama, servindo de fator impulsionador da reaproximação entre o governo Obama e o governo cubano.
"A preocupação dos Estados Unidos com a Ásia não está só no continente asiático, mas também no avanço sobretudo de parcerias econômicas de países asiáticos, sobretudo a China, na América Latina."
Poderá Brasil servir de mediador na pacificação de tensões EUA-Cuba?
Durante os governos do Partido dos Trabalhadores, relembra o especialista, a importância das relações com Cuba no Brasil foi enorme. O Brasil, de certa maneira, "capitaneou" os países latino-americanos, junto com a Venezuela e Argentina, no processo de aproximação política e econômica em relação a Cuba.
Entretanto, a virada conservadora na América Latina e no Brasil afastou o Brasil de Cuba. "A política brasileira para Cuba é nenhuma, é uma política de retórica bastante agressiva definindo Cuba como o inimigo", avalia o professor.
Recentemente, o governo Bolsonaro tem tido o menor interesse em transformar as relações entre os EUA e Cuba em relações pacíficas. Muito pelo contrário, acredita o especialista, Bolsonaro tem interesse em ver essas relações entre Havana e Washington "bastante conflituosas e estressadas, justamente porque o governo vocaliza uma imagem de Cuba como grande vilã da América Latina".
No final das contas, conclui ele, a responsabilidade de alcançar uma resolução pacífica desse conflito cabe muito mais aos Estados Unidos do que a Cuba, porque a tensão entre os dois países em grande parte é causada pelo bloqueio econômico americano.