Analista: EUA se dividem entre direitos humanos e pressão do lobby bélico diante da Arábia Saudita
17:01 10.11.2021 (atualizado: 10:56 27.11.2021)
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Parceiros de longa data, EUA e Arábia Saudita tiveram relações abaladas após assassinato de jornalista saudita durante governo Trump. A Sputnik Brasil entrevistou analista para saber como está essa conexão no governo Biden.
Estados Unidos e Arábia Saudita começaram a estreitar laços já durante a Segunda Guerra Mundial, e tiveram como ponto inicial dessa relação, que vigora até hoje, o ano de 1954.
Neste ano, o então presidente norte-americano, Dwight D. Eisenhower, realizou um acordo com o governo saudita para que tropas estadunidenses protegessem o país, em troca disso, os EUA teriam acesso privilegiado às reservas de petróleo sauditas.
Com o tempo, essa ligação começou a passar, cada vez mais, por questões bélicas, envolvendo intenso fluxo de venda de armas de Washington para Riad. Em fevereiro desse ano, a administração Biden anunciou que deixaria de apoiar as operações ofensivas da Arábia Saudita na guerra no Iêmen, incluindo a venda de armas.
Entretanto, em outubro, o governo norte-americano vendeu US$ 500 milhões (R$ 2,7 bilhões) em armas para o país saudita, incluindo neste acordo, a permissão para que helicópteros dos EUA continuassem a ser usados em ataques ofensivos sauditas contra os houthis.
A Sputnik Brasil entrevistou Thiago Babo, professor do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (NUPRI-USP), para saber como está a união entre os dois países, os interesses externos e internos dos EUA na região e se a guerra do Iêmen, um dia, pode ter fim.
© AP Photo / Lolita BaldorO general da marinha Frank McKenzie, principal comandante dos EUA para o Oriente Médio, à esquerda, chega a Riad, Arábia Saudita, no domingo, 23 de maio de 2021
O general da marinha Frank McKenzie, principal comandante dos EUA para o Oriente Médio, à esquerda, chega a Riad, Arábia Saudita, no domingo, 23 de maio de 2021
© AP Photo / Lolita Baldor
Segundo Babo, os laços entre a Arábia Saudita e os EUA sofreram uma mudança com a chegada da administração Biden, uma vez que, durante o governo antecessor de Donald Trump, "essas relações ganharam uma atenção especial, não somente através das lideranças políticas, mas também da mídia nacional e internacional, após o assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi".
"Quando os relatórios da CIA sobre o assassinato do jornalista saíram, os quais apontavam para o envolvimento da família real saudita no caso, Trump afirmou que não havia evidências […]. Vale lembrar que Riad possuí a segunda maior reserva de petróleo do mundo […]", explicou o professor.
A postura de Trump não foi bem-recebida pelos congressistas norte-americanos, uma vez que a Arábia Saudita é conhecida "pelo seu desrespeito sistemático aos direitos humanos e à democracia", e o assassinato de Khashoggi "acabou sendo um marco fundamental no questionamento sobre a relação entre os dois países, especialmente do lado norte-americano", esclareceu Babo.
"A temática da política externa baseada em valores democráticos, a crítica ao governo saudita e a relação passiva de Trump com o mesmo estiveram muito presentes no debate eleitoral [de 2020], mas mesmo assim, mesmo com o ímpeto de Biden de retomar esses discursos valorativos na política internacional o pragmatismo geopolítico prevaleceu."
Após a eleição, Biden fez sua primeira ligação oficial para monarquia saudita, e enfatizou na conversa que os EUA prezam muito pelos direitos humanos e democráticos, entretanto, também pontuou "que a parceria estratégica entre os dois países continuava firme", diz o professor.
"Os interesses geopolíticos farão com que a parceira norte-americana e saudita continue no mesmo caminho, e não só os interesses geopolíticos, mas também os comerciais, afinal, os sauditas são praticamente os principais consumidores da indústria bélica dos EUA."
Portanto, na visão do especialista, "não houve nenhuma mudança concreta na política externa de Washington em relação a Riad após a entrada de Biden, apesar da preocupação com os direitos humanos, na prática, não houve consequência nesta parceria".
Agradando a opinião pública e o lobby bélico
Em fevereiro deste ano, o governo Biden anunciou que cessaria seu apoio às operações ofensivas na guerra no Iêmen, incluindo a venda de armas.
Conforme mencionado, a bandeira dos direitos humanos é uma das mais levantadas pela atual administração estadunidense, e hoje, "a guerra no Iêmen é uma das maiores crises humanitárias dos últimos tempos", afirmou Babo.
"Essa guerra é financiada pelos sauditas e pelos iranianos. Do lado saudita, as armas vêm justamente da indústria bélica norte-americana, e nesse sentido, o envolvimento dos EUA nesta guerra é muito próximo."
Ao mesmo tempo, o professor elucida que "é de extremo interesse estratégico para Washington o fortalecimento da Arábia Saudita na região para conter o avanço da Síria e do Irã".
"Por isso se coloca o debate de venda de armas não ofensivas, cujo uso estaria muito mais ligado à defesa do território saudita, e quando se anuncia que são defensivas, tira-se a responsabilidade dos EUA do conflito no Iêmen."
Entretanto, em outubro, o governo norte-americano decidiu vender US$ 500 milhões (R$ 2,7 bilhões) em armas para Riad, e neste acordo, "o defensivo enquanto característica desses armamentos se tornou algo muito relativo, já que dentro do pacto há a permissão da continuação do uso de helicópteros norte-americanos ofensivos".
"Inicialmente, há uma resposta do Biden às demandas da política interna referentes aos direitos humanos […], mas existe todo um lobby bélico norte-americano que vai realizar uma pressão política para que haja a continuidade de vendas de armas", explicou o analista.
Babo também ressalta que "há um entendimento muito claro na política norte-americana de que a posição da Arábia Saudita no Oriente Médio diz respeito aos interesses estadunidenses, diz respeito à segurança dos EUA".
© REUTERS / Mídia AssociadaMenino sentado nas pedras ao lado de uma tenda em um campo de deslocados pela guerra em Marib, Iêmen, 3 de novembro de 2021
Menino sentado nas pedras ao lado de uma tenda em um campo de deslocados pela guerra em Marib, Iêmen, 3 de novembro de 2021
© REUTERS / Mídia Associada
Guerra do Iêmen pode ter fim?
Neste ano, completaram-se sete anos da guerra civil no Iêmen, e, até agora, não é vislumbrado um cessar-fogo por ambas as partes: tanto do lado dos houthis, apoiados pelo Irã, quanto do lado das forças do governo, apoiadas pela Arábia Saudita.
Questionado se o conflito pode um dia chegar ao fim, Babo considera que não, visto que "essa guerra não é passível de tratado de paz, uma vez que nenhum dos atores parecem estar dispostos a isso".
"O que pode haver é uma intensificação bélica, até porque os EUA não têm interesse algum de ter várias frentes geopolíticas em tensão ao mesmo tempo, e a preocupação norte-americana agora vai em direção ao Pacífico, no que diz respeito à China e à Rússia, então não é algo que eles queiram resolver de imediato."
O professor complementa que, possivelmente, o conflito não será resolvido através de um acordo de paz, mas sim "quando um dos lados sair vitorioso".
"Se os houthis saírem vitoriosos dessa guerra, uma nova configuração política vai se estabelecer na região, uma vez que fortalecerá a presença da Síria e do Irã no território e, consequentemente, um enfraquecimento da Arábia Saudita, e precisamos lembrar que o país saudita e Israel são os maiores parceiros dos EUA no Oriente Médio."
Na visão do analista, "é de vital importância para Washington a resolução desse conflito dentro de seus interesses", e essa resolução seria a retomada do controle do governo anteriormente vigente no Iêmen.
"O governo do Iêmen é totalmente ligado aos sauditas, e, desde a Segunda Guerra Mundial, a Arábia Saudita tem uma relação histórica muito próxima aos norte-americanos. Se a guerra civil em Sanaa terminar com a derrota dos houthis os EUA conseguem manter seu predomínio em uma região geográfica de extrema importância no Oriente Médio", conclui o analista.
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