Questão migratória e desacordo sobre pesca: o que esperar da escalada de tensões França-Reino Unido?
19:04 03.12.2021 (atualizado: 07:11 04.12.2021)
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Com rivalidades históricas, mas cooperações atuais na área da segurança e economia, Paris e Londres vêm divergindo em uma série de assuntos, principalmente os ligados à crise migratória no Canal da Mancha e à área de pesca pós-Brexit.
Na última semana, as tensões entre França e Reino Unido reacenderam após a morte de 27 migrantes afogados depois que um barco com destino ao Reino Unido virou no Canal da Mancha, no dia 24 de novembro.
Entre os 27 mortos, havia pelo menos sete mulheres e três crianças. Foi a pior tragédia envolvendo migrantes já registrada no canal, desde que dados desse tipo começaram a ser coletados, em 2014, segundo a BBC.
Além da questão migratória, a separação das áreas de pesca depois que Londres se retirou da União Europeia (UE) revelou ser um dos contratempos mais emblemáticos do "divórcio" europeu.
Talvez o conjunto de problemáticas tenha levado o presidente francês, Emmanuel Macron, a chamar o governo de Boris Johnson de "circo" e o primeiro-ministro britânico de "palhaço" na semana passada.
A Sputnik Brasil entrevistou Demetrius Pereira, especialista em questões de Europa e UE e professor de ReIações Internacionais da ESPM-SP, para entender melhor sobre as divergências entre as duas nações e se os problemas em voga podem ser solucionados.
Pereira relata que a relação entre franceses e britânicos sempre foi historicamente complexa, até mesmo estabelecendo uma dinâmica de "amor e ódio", e que recentemente, essa dinâmica foi amplificada com o Brexit, uma vez que a França foi um dos países mais prejudicados com a saída do Reino Unido da União Europeia.
Outro ponto de tensão é o Canal da Mancha, via marítima que permite a ligação entre o Reino Unido e a França, a qual sempre foi uma rota de migração. Entretanto, o analista ressalta que o Canal da Mancha era "uma rota intraeuropeia" e agora "passa a ser uma rota da UE para o Reino Unido".
"As tensões acontecem justamente para saber como resolver a questão já que é um assunto que diz respeito a ambos os países. [...] Os britânicos não querem receber os migrantes em geral, ao mesmo tempo, o problema não pode ficar só com a França – que também não acha que tem o dever de aceitar os migrantes – então, assim se configura o principal conflito entre as duas nações", elucida Pereira.
Segundo o especialista, quando o Reino Unido ainda estava no bloco europeu havia mais diálogo "por meio das instituições europeias, o que não ocorre agora, uma vez que os britânicos têm muito mais autonomia para elaborarem suas próprias políticas".
No entanto, na visão francesa, o governo de Boris Johnson acaba "instigando" o movimento de migração a partir do momento que as pessoas sabem que vão chegar ao Reino Unido e conseguir empregos ilegais.
"Para os franceses, os britânicos deveriam criar regras e fiscalização para que esses migrantes não consigam trabalho e percam a vontade de migrar. [...] Por outro lado, os britânicos querem que os franceses parem a migração na própria França, ou seja, que as pessoas sejam interditadas antes de começarem a sair", explica Pereira.
© REUTERS / Pascal RossignolPessoas se reúnem perto de velas e flores para homenagear os 27 migrantes que morreram quando seu bote esvaziou enquanto tentavam cruzar o Canal da Mancha, no Richelieu Parc em Calais, França, 25 de novembro de 2021
Pessoas se reúnem perto de velas e flores para homenagear os 27 migrantes que morreram quando seu bote esvaziou enquanto tentavam cruzar o Canal da Mancha, no Richelieu Parc em Calais, França, 25 de novembro de 2021
© REUTERS / Pascal Rossignol
Pesca, outro problema entre águas
Mas não é só a problemática dos migrantes que acontece no Canal da Mancha, a questão da pesca é outro tópico de discussão entre os dois países, visto que por ser uma fronteira marítima, fica difícil dizer onde começa o território britânico e onde fica o francês em meio às águas.
"Dentro dessa temática da pesca, existe a complexidade para se estabelecer fronteiras, ou seja, até onde os pescadores britânicos podem ir e até onde podem ir os franceses."
Pereira ressalta que também é preciso uma maior investigação sobre o suposto fato de que pescadores poderiam estar camuflando, através da pesca, a prática do tráfico humano, como os coiotes na fronteira México-EUA.
O impasse é tão profundo, que no final de outubro, a França ameaçou sancionar o Reino Unido caso a disputa entre os dois países quanto à pesca não melhorasse, conforme noticiado.
© AP Photo / Jeremias GonzalezBarcos de pesca franceses bloqueiam a entrada do porto de Saint-Malo para interromper o fluxo de mercadorias para o Reino Unido, 26 de novembro de 2021
Barcos de pesca franceses bloqueiam a entrada do porto de Saint-Malo para interromper o fluxo de mercadorias para o Reino Unido, 26 de novembro de 2021
© AP Photo / Jeremias Gonzalez
Patrulhamento da Frontex
No dia 28 de novembro, o ministro do Interior francês, Gérald Darmanin, anunciou que a partir de 1º de dezembro um avião da agência europeia Frontex será mobilizado para detectar e interceptar travessias marítimas ilegais com o Reino Unido no Canal da Mancha.
"Dia e noite, o avião poderá ajudar as polícias francesa, holandesa e belga, porque os barcos não saem apenas da França, para observar as redes de traficantes e as travessias e evitá-las com a maior antecedência possível", disse Darmanin citado pelo Público.
Com o Brexit, o Canal da Mancha se tornou uma fronteira externa do bloco europeu, no entanto, mesmo assim, Pereira elucida que a agência acaba atuando para "tentar controlar o fluxo de migrantes".
"Essa agência também atua em outras fronteiras, como a da Grécia com a Turquia, principalmente. [...] Diante do fato da UE ser um mercado comum, onde há livre circulação de pessoas, o controle fronteiriço fica dispensado nas fronteiras internas, como Espanha, França, etc, mas nas fronteiras externas surge a necessidade de controle por um órgão da própria UE através da Frontex."
© AP Photo / Francois Lo PrestiA ministra do Interior da Bélgica, Annelies Verlinden (à esquerda) e o ministro do Interior francês Gerald Darmanin (segundo a partir da esquerda) participaram de reunião de emergência para combater melhor o contrabando de migrantes no Canal da Mancha, 28 de novembro de 2021
A ministra do Interior da Bélgica, Annelies Verlinden (à esquerda) e o ministro do Interior francês Gerald Darmanin (segundo a partir da esquerda) participaram de reunião de emergência para combater melhor o contrabando de migrantes no Canal da Mancha, 28 de novembro de 2021
© AP Photo / Francois Lo Presti
Motivação britânica ao Brexit
Na interpretação de Pereira, a maior motivação para os britânicos votarem no Brexit foi mesmo a questão da migração, em meio a assuntos que dizem respeito à retomada da soberania e pautas econômicas.
"Segundo as pesquisas de opinião realizadas, o tópico relacionado à migração foi fundamental para decisão britânica, mas não necessariamente associado ao Canal da Mancha, e sim, à imigração intra-europeia, especialmente com receio de que a Turquia entrasse na UE e os turcos munidos do passaporte europeu automaticamente teriam a chance de residir e trabalhar no Reino Unido."
Portanto, o "medo" britânico é que, com o passaporte europeu, uma forte onda de migração aconteceria, mesmo sendo legal.
© REUTERS / Peter NichollsOs barcos infláveis usados por migrantes que cruzaram o Canal da Mancha vindos da França, são protegidos por funcionários do Porto de Dover na marina em Dover, Reino Unido, 29 de novembro de 2021
Os barcos infláveis usados por migrantes que cruzaram o Canal da Mancha vindos da França, são protegidos por funcionários do Porto de Dover na marina em Dover, Reino Unido, 29 de novembro de 2021
© REUTERS / Peter Nicholls
Contudo, o analista acredita que a questão pode ter resolução, porque mesmo com a troca de hostilidades, "os dois países têm cooperações em muitas outras áreas, na área de segurança, econômica, e essa interação é muito mais forte do que o conflito".
"Apesar da velha rivalidade, são duas nações que têm muito em comum, então acho que a parceria entre elas vai continuar mesmo com o Brexit e com esses incidentes no Canal da Mancha", complementa.
"Apesar da velha rivalidade, são duas nações que têm muito em comum, então acho que a parceria entre elas vai continuar mesmo com o Brexit e com esses incidentes no Canal da Mancha", complementa.
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