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O que significa o julgamento de professor de Harvard na disputa pela hegemonia entre China e EUA?

© REUTERS / BRIAN SNYDERO professor de nanotecnologia da Universidade de Harvard Charles Lieber, acusado de mentir às autoridades norte-americanas sobre seus vínculos com um programa de recrutamento administrado pela China e o financiamento que supostamente recebeu do governo chinês para pesquisas, chega ao tribunal federal em Boston, Massachusetts, EUA, em dezembro 14 de 2021
O professor de nanotecnologia da Universidade de Harvard Charles Lieber, acusado de mentir às autoridades norte-americanas sobre seus vínculos com um programa de recrutamento administrado pela China e o financiamento que supostamente recebeu do governo chinês para pesquisas, chega ao tribunal federal em Boston, Massachusetts, EUA, em dezembro 14 de 2021 - Sputnik Brasil, 1920, 22.12.2021
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A Sputnik Brasil conversou com o professor visitante da Universidade de Relações Exteriores da China, Marcus Vinícius De Freitas sobre o caso de Charles Lieber, professor de Harvard considerado culpado de mentir sobre sua relação com a China.
Na semana passada (14), um professor de Harvard foi acusado de mentir às autoridades dos EUA sobre sua relação com um programa de recrutamento acadêmico da China.
Nesta segunda-feira (21), o renomado pesquisador de nanotecnologia e ex-chefe do departamento de Química da Universidade de Harvard, Charles Lieber, foi considerado culpado por um júri em Boston por mentir às autoridades norte-americanas sobre seus vínculos com a China, apresentar declarações fiscais falsas e deixar de relatar uma conta bancária chinesa, bem como eventualmente concordar – em seu requerimento de inscrição para o Prêmio Nobel – fazer parte de um programa de recrutamento chinês de talentos.
O fato, per se, não deveria ser relevante o suficiente para nos chamar a atenção. Talvez nem mesmo tão grave que justificasse incriminar o pesquisador, não fossem China e EUA os novos protagonistas da corrida pelo primeiro lugar do mundo nesta "Guerra Fria" reeditada.
Para compreendermos melhor a importância do caso, a Sputnik Brasil conversou com o professor visitante da Universidade de Relações Exteriores da China, em Pequim, e membro sênior do Centro de Políticas para o Novo Sul, em Rabat, Marrocos, Marcus Vinícius De Freitas.

A relação China-EUA

Para o professor não há dúvidas de que a relação entre China e EUA anda muito conturbada.
"Nós observamos uma retomada de atitudes muito semelhantes àquilo que aconteceu nos EUA com relação à União Soviética no período da Guerra Fria. Parece ser a fórmula que os americanos têm encontrado para aplicar à situação chinesa", afirmou Marcus.
Com a escalada de tensões entre os Estados Unidos e a China, as mais diversas áreas nas relações bilaterais sofrem o impacto da desconfiança. Para Marcus, todas as situações envolvendo a China serão tratadas com extremo rigor pelo governo norte-americano, uma vez que, ao assumirem a postura de disputa pela posição de hegemonia no mundo, qualquer atitude poderá ser interpretada como uma atitude de guerra.
Os dois países já vêm acusando-se mutuamente de espionagem há algum tempo. A situação envolvendo o professor Lieber foi a constatação de uma narrativa que vem sendo construída por Washington no esgarçamento dessas relações.
"Observamos que isto é uma crescente, que de alguma forma os EUA têm utilizado deste tipo de retórica também para criar uma determinada impressão de uma espionagem rampante da China nos EUA. Isso vem dentro de todo um conceito de narrativa de uma quase guerra total no estilo da Guerra Fria que vimos no passado. Este quadro é preocupante", salientou o professor.
Para Marcus, qualquer pessoa que passe um tempo mais prolongado na China já é entendida pelo governo norte-americano como um possível agente que pode vir a atuar em favor do gigante asiático.
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Espiões ou estudantes?

Em grande parte, a desconfiança estadunidense tem a ver com os saltos impressionantes que o "império chinês" deu nos últimos anos nas mais diversas áreas, especialmente na econômica e tecnológica. Marcus observa que "durante muito tempo os chineses partiram de algumas premissas no sentido de aprender com os EUA, copiar e acompanhar o desenvolvimento americano para, como dizem os chineses, eventualmente liderar muitos desses processos no futuro".
A pesquisa científica de ponta nos EUA acontece principalmente nas universidades, onde a participação chinesa pode ser considerada grande em função da quantidade de estudantes chineses em solo norte-americano. Mas o excesso de preocupação com este dado não deveria ser alarmante, uma vez que este tipo de comportamento é identificado há muito tempo e em diversos países.
Sendo um polo de referência na produção do conhecimento, os EUA acabam desejados pelos estudantes como destino para o desenvolvimento acadêmico. Mas não apenas isso, governos de todas as partes do mundo identificam o investimento em massa crítica ao enviar seus estudantes para lá.
"Historicamente, já há muitos anos, desde a época de Deng Xiaoping [1978 a 1990], a China envia muitos estudantes para os EUA no sentido de aprender aquilo que de mais moderno exista e então retornar à China para aplicar aquilo que aprenderam", disse Marcus.
A espionagem, no entanto, não é teoria da conspiração. Ela existe. Mas não é exclusividade dos chineses. Para o professor, basta lembrar, "por exemplo, do caso brasileiro da espionagem industrial que os EUA promoveram em relação à Petrobras durante o governo Dilma [2011 a 2016]".
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Táticas narrativas

A tática de espionagem existe e os EUA vêm lançando mão dela com alguma frequência, mas, no caso específico da China, o professor Marcus explica que existem duas razões principais para a criação desta narrativa ao acusar a China de espionagem. "Em primeiro lugar, desqualificar o conhecimento produzido na China e, em segundo lugar, criar um temor coletivo para impedir qualquer tipo de possível associação entre alguns acadêmicos e departamentos chineses justamente para evitar que haja aí um aumento na circulação de informação."
Em última análise, para Marcus, as ações norte-americanas visam reduzir as parcerias acadêmicas no sentido de transferência de conhecimento para que haja maior controle daquilo que se produz ou se divulga no campo para a manutenção do protagonismo dos EUA.

Economia e tecnologia chinesas

Tecnologia e conhecimento acadêmico são forças motrizes no desenvolvimento econômico dos Estados. Para a China não foi diferente. As mudanças nas bases econômicas permitiram vultuosos investimentos em tecnologia que, consequentemente, elevaram a condição chinesa interna e externamente.
"Os chineses levam muito a sério aquela velha frase de [Albert] Einstein que afirma que se forem utilizados os mesmos ingredientes, os resultados serão sempre os mesmos. A partir desta compreensão, está muito claro que se a China conseguir, se continuar produzindo aquilo que ela produz atualmente da maneira como faz, os incrementos de ganho e de possibilidade de crescimento econômico e também da renda per capita vão ser mais marginais do que aquilo que o país precisa efetivamente para chegar a 2049, quando a República Popular da China completa 100 anos, com uma renda per capita elevada acima de 20 mil dólares [aproximadamente R$114 mil]."
De acordo com o professor, para a China ter chegado aos patamares de hoje foi necessário alterar a base econômica, para só então entender a importância da questão tecnológica, na produção de itens menores, com maior valor agregado. "Neste sentido, a China não tem economizado esforços para conseguir amealhar o conhecimento necessário que lhe permita produzir coisas de ponta", disse.
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Disputa pela hegemonia

Desde a Segunda Guerra Mundial, os EUA têm sido a maior referência internacional em tecnologia. O desenvolvimento chinês, no entanto, preocupa os EUA justamente porque começa a se evidenciar um deslocamento de foco internacional para a China. O domínio global norte-americano se deu fundamentalmente sob sua hegemonia militar, econômica e tecnológica. A perda de um dos elementos deste tripé pode desequilibrar a geopolítica estabelecida até aqui.
"É preocupante porque, ao perder sua posição de primazia, os EUA basearão seu domínio global somente na questão militar e econômica. A questão econômica nós vemos que vem se deteriorando à medida que os anos passam, e mesmo no aspecto militar o surgimento de novas tecnologias, como a guerra cibernética, por exemplo, tem alterado o eixo do tabuleiro. Obviamente, os EUA não querem perder a primazia e, por esta razão, temem e tentam combater o máximo possível este tipo de influência", afirma Marcus.
Atualmente, inúmeros programas universitários utilizam-se da ferramenta de cooperação para produção de conhecimento. É nas universidades que muitas inovações tecnológicas tomam lugar e acabam por promover avanços significativos na medida em que o conhecimento produzido é viabilizado. A Internet é um exemplo bastante claro do resultado da importância do desenvolvimento de pesquisas no campo acadêmico.
Neste sentido, é importante enfatizar que o conhecimento científico ou acadêmico não é um monopólio e acaba sendo divulgado, porque quanto mais laboratórios e esforços científicos são desprendidos acerca de um determinado objetivo mais chances a humanidade tem de usufruir de seus resultados.
Para Marcus, há "certa arrogância intelectual acreditar que, ao se manter fechado o acesso a um determinado conhecimento, de alguma forma este conhecimento não vai poder ser reproduzido em outros lugares". O que se pode constatar é que, independentemente das estratégias utilizadas pelos EUA para impedir a difusão do conhecimento por medo de perder a centralidade do mundo para a China, o movimento será em vão.
"Não podemos esquecer que a China tem investido substancialmente na qualificação universitária, atingindo patamares de excelência internacional, tendo entre as 20 e 30 principais universidades do mundo. Trata-se de uma tentativa de frear uma situação que me parece irreversível neste aspecto da continuidade do processo do desenvolvimento intelectual", lembrou o professor.
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A estratégia norte-americana

Mas se o conhecimento é impossível de se controlar, em outro campo do jogo geopolítico os EUA ainda parecem ter peças suficientes para mover.
A região do Indo-Pacífico tem sido alvo da gestão Biden para uma expansão estratégica com vistas a barrar a movimentação chinesa na região. Com a saída norte-americana do Afeganistão, a retirada das tropas do Iraque, o aumento do teto da dívida pública atingindo US$ 2,5 trilhões (cerca de R$ 14,1 trilhões) o governo norte-americano parece estar lançando mão de todas as estratégias possíveis para evitar que China ocupe seu lugar na relevância internacional.
"Os EUA não estenderão o tapete vermelho para que a China assuma esta posição de potência global, inclusive criarão todas as barreiras possíveis e imagináveis," disse Marcus analisando as dificuldades postas neste conflito. "Armadilhas têm sido plantadas em várias partes, uma delas é a questão de Taiwan e Hong Kong, que são consideradas pela China continental como assuntos domésticos em uma intervenção externa; vemos também a questão do mar do Sul da China, em que os EUA tentam conter qualquer tentativa de expansão chinesa na região."
Marcus observou ainda que as viagens oficiais da vice-presidente norte-americana Kamala Harris e do secretário de Estado Antony Blinken são fortes evidências da preocupação de Washington em aprofundar a presença dos EUA na região, pontuada já na gestão Obama (2009 a 2017).
"Esta briga que se reflete em várias áreas e, sem dúvida, eventualmente até mesmo na questão acadêmica, na produção do conhecimento, também vai ser afetada, e nós vamos ver a influência deste debate acontecendo também em nível universitário, mas principalmente as tentativas de impedir qualquer manifestação ou processo de maior influência da China no mundo", contou.
Quando questionado sobre o que se pode esperar da postura americana em uma eventual perda de posição, o professor Marcus devolveu: "Não há dúvida que a principal preocupação que existe nesta corrida por maior relevância internacional entre EUA e China é justamente como será o comportamento dos EUA ao se tornarem a segunda potência global. Mas esta situação, esta mudança de posicionamento, não será algo fácil".
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