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Quanto custará para o Brasil negligenciar a FAO, a ONU e o multilateralismo?
Quanto custará para o Brasil negligenciar a FAO, a ONU e o multilateralismo?
Sputnik Brasil
Dar o calote na FAO ou não, eis a questão. Qual é a importância de fazer parte das discussões e ter poder de voto na entidade? Para professor de política... 06.01.2022, Sputnik Brasil
2022-01-06T17:43-0300
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Com a ascensão de Donald Trump à presidência dos EUA em 2016, virou moda entre alguns líderes populistas no Ocidente negligenciar as organizações multilaterais e a cooperação internacional. O governo de Jair Bolsonaro, declarado admirador do norte-americano, decidiu, por exemplo, desde 2019, parar de contribuir com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO. A estratégia pode acarretar na perda do direito a voto. Embora se saiba que algumas potências mundiais, como a Rússia, a China e os EUA, possam se dar ao luxo de agir em bases unilaterais, o Brasil não goza desse prestígio, e, por essa razão, pode colher problemas no futuro. A avaliação é do analista de política internacional Paulo Velasco, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).Em conversa com a Sputnik Brasil, Velasco falou sobre o atual cenário da política externa do Brasil, analisando em especial a decisão do governo brasileiro de deixar de pagar integralmente sua contribuição para diversas organizações internacionais. Isto é, o país poderia ser prejudicado caso perca seu poder de voto na FAO?À mesa com os grandesNão é de hoje que o Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo. O agronegócio nacional representa praticamente 30% do PIB, uma força que alimenta 10% da população mundial, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O Brasil ainda é responsável por cerca de 10% da produção mundial de trigo, soja, milho, cevada, arroz e carne bovina.Diante desses números, é natural supor que o país deveria investir em meios para garantir sua proeminência no segmento, evitando, por exemplo, que concorrentes comerciais, como os Estados Unidos, imponham tarifas e sobretaxas ao nossos produtos, ou adotem medidas de protecionismo que ferem os acordos comerciais previamente estabelecidos.Porém, não é isso que a política externa do Brasil está fazendo. O país iniciou 2022 com mais de dois anos completos sem fazer os depósitos necessários para a ONU, e corre o risco de perder o seu direito ao voto na FAO. A estratégia por trás disso, embora se saiba que o presidente trata o tema como uma questão de afrontar "globalistas", não parece clara.Paulo Velasco interpreta que algumas atitudes do Itamaraty, desde 2019 sob o comando de Jair Bolsonaro, revelam apenas uma política externa pouco afeita ao multilateralismo. O problema, apontou, é que "o Brasil não tem o cacife para bancar isso. Portanto, precisamos ter um zelo maior na hora de lidar com o direito internacional", comentou. Zelar pelo multilateralismo, no caso de países como o Brasil, é importante porque são nesses espaços, por via de regra, que as assimetrias de poder são atenuadas. Nações organizadas em blocos de interesse, segundo Velasco, têm maior poder de barganha nas discussões contra as grandes potências.Retrocesso no ItamaratyEnquanto o governo brasileiro insiste na hipótese de garantir bons acordos a despeito das organizações internacionais, as dívidas do Itamaraty acumulam. O saldo devedor para a FAO atingiu em janeiro de 2022 a quantia de US$ 23 milhões (R$ 130,7 milhões). Para o professor da UERJ, "é bom reconhecermos que não é primeira vez que o país atrasa as contribuições". Ele lembra que o governo Luiz Inácio Lula da Silva se esforçou "para colocar em dia as contribuições que estavam atrasadas". De um dos maiores produtores agrícolas do mundo e, até pouco tempo, líder na luta contra a fome, o Brasil vive hoje uma situação constrangedora na FAO, analisa Velasco. "É vergonhoso e diz muito sobre o desleixo da política externa, sobretudo no que tange às relações com o multilateralismo", afirmou.Ainda assim, segundo o especialista, é improvável que o calote à FAO atrapalhe o ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um dos principais objetivos do governo de Jair Bolsonaro no âmbito da política externa. E é também por essa razão que o calote pode se confirmar.O tamanho do prejuízoPara um país como o Brasil, a perda do poder de barganha político-comercial junto aos outros países é apenas a ponta do iceberg sobre o qual se escondem outros problemas. Com o calote à FAO, o país poderia participar das conferências anuais, mas não poderia opinar. Especificamente com relação à FAO, a dívida brasileira só é inferior à dos EUA, que, segundo o professor, "é um notório caloteiro". Ele explicou, entretanto, que há uma clara diferença entre a postura do governo brasileiro e a dos presidentes norte-americanos mais recentes, Trump e Joe Biden. Diferentemente das grandes potências, explicou Velasco, o Brasil não tem excedente de poder. Grandes potências globais, como a Rússia, a China e os EUA, "esses podem se dar ao luxo de agir em bases unilaterais. A China age às margens do multilateralismo, principalmente com relação a Taiwan. E os EUA periodicamente fazem o mesmo, como no caso da invasão do Iraque, ao arrepio do direito internacional".Gigante pela própria naturezaNo estudo das relações internacionais, o Brasil sempre teve uma projeção neutra e de protagonista na defesa dos interesses da América Latina. O Barão do Rio Branco, por exemplo, foi responsável por negociar pacificamente e anexar mais de 900 mil quilômetros quadrados ao território nacional. O Brasil faz fronteira com dez países e é uma das poucas nações que têm seus limites fixados há mais de um século sem que nenhuma guerra tenha sido declarada.Do BRICS ao Mercosul, o Itamaraty acostumou-se a ser "um modelo para os vizinhos do Brasil", e mesmo para outras potências internacionais. Para Paulo Velasco, a FAO foi mais uma das instituições internacionais onde o Brasil exerceu seus interesses, "justamente por sermos uma potencia agrícola da maior importância". Nesse sentido, ele relembrou os esforços da diplomacia brasileira nas campanhas da ONU para erradicar a fome, apresentando programas e fomentando iniciativas. A FAO foi comandada pelo brasileiro José Graziano da Silva entre 2012 e meados de 2019. Graziano foi ministro do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e considerado o pai do programa Fome Zero.A crise diplomática na entidade ocorre no mesmo momento em que a instituição revela um salto sem precedentes da fome no Brasil. De acordo com a informação coletada pela instituição, 24% dos brasileiros vivem um estágio de fome moderada, enquanto 8% atravessam uma situação de fome severa.Ao fugir da dívida, o Brasil apresenta ao mundo um país incapaz de se reconhecer no espelho da história. Negligenciar a FAO, a ONU e o multilateralismo terá muitos custos no futuro, e um deles já está sobre a mesa: quanto tempo será necessário para recuperarmos o prestígio do Itamaraty?
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Com a ascensão de Donald Trump à presidência dos EUA em 2016, virou moda entre alguns líderes populistas no Ocidente negligenciar as organizações multilaterais e a cooperação internacional.
O governo de Jair Bolsonaro, declarado admirador do norte-americano, decidiu, por exemplo, desde 2019, parar de contribuir com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, a FAO. A estratégia pode acarretar na perda do direito a voto.
Embora se saiba que algumas potências mundiais, como a Rússia, a China e os EUA, possam se dar ao luxo de agir em bases unilaterais, o Brasil não goza desse prestígio, e, por essa razão, pode colher problemas no futuro. A avaliação é do analista de política internacional Paulo Velasco, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
Em conversa com a Sputnik Brasil, Velasco falou sobre o atual cenário da política externa do Brasil, analisando em especial a decisão do governo brasileiro de
deixar de pagar integralmente sua contribuição para diversas organizações internacionais. Isto é, o país poderia ser prejudicado caso perca seu poder de voto na FAO?
Não é de hoje que o Brasil é um dos maiores produtores agrícolas do mundo. O agronegócio nacional representa praticamente 30% do PIB, uma força que alimenta 10% da população mundial, segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). O Brasil ainda é responsável por cerca de 10% da produção mundial de trigo, soja, milho, cevada, arroz e carne bovina.
Diante desses números, é natural supor que o país deveria investir em meios para garantir sua proeminência no segmento, evitando, por exemplo, que concorrentes comerciais, como os Estados Unidos,
imponham tarifas e sobretaxas ao nossos produtos, ou adotem medidas de protecionismo que ferem os
acordos comerciais previamente estabelecidos.
Porém, não é isso que a política externa do Brasil está fazendo. O país iniciou 2022 com mais de dois anos completos sem fazer os depósitos necessários para a ONU, e corre o risco de perder o seu direito ao voto na FAO. A estratégia por trás disso, embora se saiba que o presidente trata o tema como uma questão de afrontar "globalistas", não parece clara.
Paulo Velasco interpreta que algumas atitudes do Itamaraty, desde 2019 sob o comando de Jair Bolsonaro, revelam apenas uma política externa pouco afeita ao multilateralismo. O problema, apontou, é que "o Brasil não tem o cacife para bancar isso. Portanto, precisamos ter um zelo maior na hora de lidar com o direito internacional", comentou.
"Ter uma postura atuante nas organizações internacionais é uma condição para legitimação internacional do Brasil. Agir na contramão disso prejudicará a nossa projeção e nossa capacidade de sentar à mesa com os grandes países para tomar quaisquer decisões", assinalou.
Zelar pelo multilateralismo, no caso de países como o Brasil, é importante porque são nesses espaços, por via de regra, que as
assimetrias de poder são atenuadas. Nações organizadas em blocos de interesse, segundo Velasco,
têm maior poder de barganha nas discussões contra as grandes potências.
Enquanto o governo brasileiro insiste na hipótese de garantir bons acordos a despeito das organizações internacionais, as dívidas do Itamaraty acumulam. O saldo devedor para a FAO atingiu em janeiro de 2022 a quantia de US$ 23 milhões (R$ 130,7 milhões).
Para o professor da UERJ, "é bom reconhecermos que não é primeira vez que o país atrasa as contribuições". Ele lembra que o governo Luiz Inácio Lula da Silva se esforçou "para colocar em dia as contribuições que estavam atrasadas".
"Em 2003 e 2004, havia uma ênfase à reforma do conselho de segurança. O mínimo que poderíamos fazer para pleitear um assento permanente era colocar as contribuições em dia. Em 2010, o Brasil decidiu aumentar as contribuições, mas começaram os problemas. Veio a crise e deixamos de pagar em dia. E isso foi agravado no governo de Jair Bolsonaro", explicou.
De um dos maiores produtores agrícolas do mundo e, até pouco tempo, líder na luta contra a fome, o
Brasil vive hoje uma situação constrangedora na FAO, analisa Velasco. "É vergonhoso e diz muito sobre o desleixo da política externa, sobretudo no que tange às relações com o multilateralismo", afirmou.
29 de setembro 2021, 18:37
Ainda assim, segundo o especialista, é improvável que o calote à FAO
atrapalhe o ingresso do Brasil na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um dos
principais objetivos do governo de Jair Bolsonaro no âmbito da política externa. E é também por essa razão que o calote pode se confirmar.
Para um país como o Brasil, a perda do poder de barganha político-comercial junto aos outros países é apenas a ponta do iceberg sobre o qual se escondem outros problemas. Com o calote à FAO, o país poderia participar das conferências anuais, mas não poderia opinar.
"Isso significa um enorme constrangimento para o Brasil. Ser impedido de expressar sua posição é muito constrangedor, principalmente porque o país tem uma diplomacia e um corpo de diplomatas muito reconhecido", avaliou.
Especificamente com relação à FAO, a dívida brasileira só é inferior à dos EUA, que, segundo o professor, "é um notório caloteiro". Ele explicou, entretanto, que há uma clara
diferença entre a postura do governo brasileiro e a dos presidentes norte-americanos mais recentes, Trump e Joe Biden.
Diferentemente das grandes potências, explicou Velasco, o Brasil não tem excedente de poder. Grandes potências globais, como a Rússia, a China e os EUA, "esses podem se dar ao luxo de agir em bases unilaterais. A China age às margens do multilateralismo, principalmente com relação a Taiwan. E os EUA periodicamente fazem o mesmo, como no caso da invasão do Iraque, ao arrepio do direito internacional".
"Os EUA fazem isso como forma de pressão. Como eles são os maiores contribuintes das organizações internacionais, eles atrasam suas contribuições para os organismos atenderem seus caprichos. No caso do Brasil, não há pressão, é simplesmente porque não pagamos recursos que sequer são tão voluptuosos", disse.
Gigante pela própria natureza
No estudo das relações internacionais, o Brasil sempre teve uma projeção neutra e de protagonista na defesa dos interesses da América Latina.
O Barão do Rio Branco, por exemplo, foi responsável por negociar pacificamente e anexar mais de 900 mil quilômetros quadrados ao território nacional. O Brasil faz fronteira com dez países e é uma das poucas nações que têm seus limites fixados há mais de um século sem que nenhuma guerra tenha sido declarada.
Do BRICS ao Mercosul, o Itamaraty acostumou-se a ser "um modelo para os vizinhos do Brasil", e mesmo para outras potências internacionais. Para Paulo Velasco, a FAO foi mais uma das instituições internacionais onde o Brasil exerceu seus interesses, "justamente por sermos uma potencia agrícola da maior importância".
"Sermos banidos tem um impacto pernicioso para o nosso desempenho no exterior. É uma perda de prestígio, caso o valor que devemos não seja pago", comentou.
Nesse sentido, ele relembrou os esforços da diplomacia brasileira nas campanhas da ONU para erradicar a fome, apresentando programas e fomentando iniciativas. A FAO foi comandada pelo brasileiro José Graziano da Silva entre 2012 e meados de 2019. Graziano foi ministro do governo de Luiz Inácio Lula da Silva e considerado o pai do programa Fome Zero.
A crise diplomática na entidade ocorre no mesmo momento em que a instituição revela um salto sem precedentes da fome no Brasil. De acordo com a informação coletada pela instituição, 24% dos
brasileiros vivem um estágio de fome moderada, enquanto
8% atravessam uma situação de fome severa.
Ao fugir da dívida, o Brasil apresenta ao mundo um país incapaz de se reconhecer no espelho da história. Negligenciar a FAO, a ONU e o multilateralismo terá muitos custos no futuro, e um deles já está sobre a mesa: quanto tempo será necessário para recuperarmos o prestígio do Itamaraty?
13 de dezembro 2021, 20:07