'Comam tapioca': alta no preço do pão no Brasil deve continuar mesmo sem conflito na Ucrânia
10:00 17.03.2022 (atualizado: 12:14 17.03.2022)
© Folhapress / Gabriel Cabral Pães da padaria Saint Germain, em São Paulo, Brasil (foto de arquivo)
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A crise na Ucrânia escancarou a dependência do Brasil de trigo importado. Até quando o brasileiro dependerá do mercado internacional para garantir seu pão na chapa?
Nesta quarta-feira (16), o economista-chefe da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês), Maximo Torero, disse que a segurança alimentar mundial está sob forte pressão em função do conflito na Ucrânia.
De acordo com ele, o aumento no preço dos alimentos deve ser sentido principalmente nos países mais vulneráveis.
Rússia e Ucrânia respondem juntos por cerca de 30% da produção mundial de trigo. O preço desse bem essencial fechou o mês de fevereiro com alta acumulada de 22%. Em março, os preços já se elevaram em 15,2%, atingindo níveis recordes.
Os efeitos deste aumento já são sentidos no Brasil. O pão francês está sendo vendido a até R$ 20 o quilo no Rio de Janeiro. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Panificação e Confeitaria, o pão francês deve subir entre 10% e 20% nas principais capitais brasileiras.
"O pão tem valor simbólico", disse Nilson de Paula, professor do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da Universidade Federal do Paraná e membro da coordenação executiva da Rede Penssan (Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional), à Sputnik Brasil. "Definitivamente, o processo inflacionário dos alimentos será um elemento forte para as eleições [presidenciais] de 2022, porque atingimos níveis que não víamos há muito tempo."
Segundo ele, o aumento dos preços é anterior à crise no Leste Europeu: "O conflito só colocou água no moinho da inflação".
Nesta segunda-feira (14), a Associação Brasileira das Indústrias de Biscoitos, Massas Alimentícias e Pães & Bolos Industrializados (Abimapi) disse que o consumidor deve se preparar para aumentos no preço de produtos como massas, bolos e biscoitos.
© Folhapress / Alessandro Shinoda/FolhapressPadaria na cidade de São Paulo, Brasil (foto de arquivo)
Padaria na cidade de São Paulo, Brasil (foto de arquivo)
"Haverá reajustes de preços nas próximas semanas, mas com o horizonte indefinido. O consumidor brasileiro deve começar a sentir os efeitos em breve", alertou a entidade em nota.
Mercado mundial
A Rússia é o maior exportador de trigo do mundo e segue liberando cargas para alguns mercados, apesar da imposição de restrições às exportações para países considerados hostis.
As sanções econômicas e as rotas mais complexas de navegação, no entanto, aumentam o custo do frete e do seguro das embarcações, o que recai no bolso do consumidor final.
Já na Ucrânia, o governo de Kiev interrompeu as exportações de trigo e demais bens alimentícios. O ministro da Agricultura ucraniano, no entanto, garantiu que a safra de trigo deste ano segue intacta.
"A safra de inverno está de fato em boas condições em todo o território do país. E, apesar das dificuldades para o trabalho no campo, a Ucrânia terá pão", disse o ministro ucraniano Taras Dzoba nesta quarta-feira (16), relatou a Reuters.
Outro país relevante para a manutenção dos preços internacionais do trigo são os EUA. Mas, desde o ano passado, a safra de trigo sofre com grave seca na região oeste do país.
© Folhapress / Igor do ValePadaria em Franca, São Paulo: o trigo é ingrediente fundamental para a produção do pão
Padaria em Franca, São Paulo: o trigo é ingrediente fundamental para a produção do pão
© Folhapress / Igor do Vale
O solo norte-americano ainda não foi capaz de recuperar a umidade necessária, o que pode diminuir a produtividade da produção dos EUA para 2022, informou a CBS.
Impacto no Brasil
O Brasil produz menos da metade do trigo que demanda e recorre à importação para abastecer seu mercado. Compras de países como Rússia e Ucrânia são pequenas, quando comparadas às importações de trigo da Argentina, Canadá e EUA.
O governo do principal fornecedor brasileiro, a Argentina, declarou no dia 3 de março que vai limitar as exportações de trigo e adotar mecanismos de controle dos preços domésticos para evitar uma disparada da inflação, informou a Reuters.
"Os agentes econômicos vão se readaptando e redefinindo suas expectativas", disse Nilson. "E quem ganha com isso são aqueles que têm munição para se defender e controlam os preços."
© AP Photo / Marcelo ManeraAgricultor argentino trabalha em campo de trigo em Pergamino, noroeste de Buenos Aires (foto de arquivo)
Agricultor argentino trabalha em campo de trigo em Pergamino, noroeste de Buenos Aires (foto de arquivo)
© AP Photo / Marcelo Manera
A Abimapi alertou que o aumento dos preços do trigo começará a ter impacto nos fabricantes brasileiros a partir de abril. Por ora, o país tem estoque de trigo e contratos firmados a preços anteriores à crise.
Não tem pão, comam tapioca
De acordo com a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), o consumo de trigo no Brasil mais do que dobrou nos últimos 40 anos, chegando a uma média de 40,62 kg de trigo por ano por habitante.
O alto consumo de massas, bolos e bolachas, no entanto, não era uma característica histórica do país.
"Nas décadas de 60 e 70, com a difusão da chamada Revolução Verde, capitaneada por grandes corporações, o Brasil abandona uma dieta baseada no milho e passa a consumir mais trigo", explica Nilson de Paula. "O trigo não é um produto da cultura alimentar original do brasileiro. Houve uma aculturação intencional."
© REUTERS / Ueslei MarcelinoRepresentantes das tribos Yawalapiti, Kalapalo e Mehinako tocam flautas uruá enquanto dançam durante ritual fúnebre Kuarup para homenagear a memória do cacique Aritana no Parque Indígena do Xingu
Representantes das tribos Yawalapiti, Kalapalo e Mehinako tocam flautas uruá enquanto dançam durante ritual fúnebre Kuarup para homenagear a memória do cacique Aritana no Parque Indígena do Xingu
© REUTERS / Ueslei Marcelino
Apesar do alto consumo e da capacidade técnica de órgãos como a Embrapa de desenvolver tecnologias para o campo, o Brasil nunca atingiu a autossuficiência na produção de trigo.
Nilson relata que nas décadas de 70 e 80 o Brasil capitaneava programas de incentivo à produção de trigo através do Banco do Brasil.
"Quando o Brasil passa a fechar acordos com o Fundo Monetário Internacional (FMI) nas décadas de 80 e 90, uma das condicionalidades era que abandonássemos programas de subsídios agrícolas. Por isso o financiamento à produção de trigo no Brasil ficou praticamente inexistente."
Para o especialista, poucos países são capazes de desenvolver novas culturas agrícolas sem algum tipo de apoio público.
"A princípio, em nenhum país do mundo a agricultura consegue sobreviver sem apoio do Estado. Os EUA são pioneiros nisso. Eles dizem para os demais [países] não usarem subsídios, mas eles mesmos não submetem a sua agricultura aos sabores do mercado", notou o especialista.
No curto prazo, no entanto, o Brasil não terá como aumentar a sua produção de trigo. O fim do conflito no Leste Europeu tampouco resolveria o problema da alta dos preços de maneira imediata, acredita Nilson.
"Mesmo que tivéssemos o fim do conflito neste momento, teremos consequências de longo prazo em relação ao preço dos alimentos. Teremos um processo de rearranjo da casa", garante o especialista.
© AP Photo / Andre PennerHomem olha para monitores com preços das ações na sede da bolsa B3 em São Paulo, 21 de outubro de 2021
Homem olha para monitores com preços das ações na sede da bolsa B3 em São Paulo, 21 de outubro de 2021
© AP Photo / Andre Penner
O otimismo em relação às negociações de um cessar-fogo na Ucrânia, porém, tiveram reflexo no preço do trigo. Na noite desta quarta-feira (16), o custo do trigo na bolsa de valores de Chicago, nos EUA, caiu mais de 7%.
A queda foi registrada após o líder da delegação de negociadores russa, o assessor presidencial Vladimir Medinsky, dizer que Kiev estaria pronta para adotar o status de Estado desmilitarizado, a exemplo de países como Áustria e Suécia.