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La Casa de Papel brasileira: crime subjuga Estado e rouba R$ 500 milhões com 'domínio de cidades'
La Casa de Papel brasileira: crime subjuga Estado e rouba R$ 500 milhões com 'domínio de cidades'
Sputnik Brasil
Em franca expansão no país, a tática de assalto a bancos chamada de "domínio de cidades" está hoje no topo da pirâmide dos crimes contra o patrimônio público... 24.05.2022, Sputnik Brasil
2022-05-24T09:00-0300
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Era quase meia-noite quando 30 encapuzados adentraram a cidade em carros de luxo blindados. Em menos de duas horas, a quadrilha fortemente armada sitiou o centro do município, bloqueou ruas para impedir a chegada da polícia, fez reféns de escudo humano, assaltou um banco e deixou o local com R$ 125 milhões sem grandes infortúnios.Enquanto muitos brasileiros se divertiam com o sucesso da série espanhola sobre mega-assaltos "La Casa de Papel", da Netflix, moradores de Criciúma, em Santa Catarina, vivenciavam uma noite de terror naquela madrugada de 1º de dezembro de 2020.Longe de ser ficção, a situação é apenas um dos mais de 20 casos já registrados do chamado "domínio de cidades", em flagrante crescimento pelo país.À época, a analista de recursos humanos, hoje com 26 anos, morava próximo a uma agência bancária do Banco do Brasil, alvo do ataque. Todos os dias ela saía tarde do trabalho e, de carro, precisava cruzar o centro da cidade para chegar em casa. Mas dessa vez havia um assalto em andamento no seu trajeto rotineiro.Nesse meio-tempo, a quadrilha havia lançado um caminhão contra o 9º Batalhão de Polícia Militar e ateado fogo no veículo, a quatro quilômetros do banco. O som de tiros e explosivos ressoou durante quase todo o assalto pela cidade. Durante a ação, os criminosos só entraram em confronto com a polícia ao cruzar com duas patrulhas. Um PM e um vigilante ficaram feridos. Ninguém morreu.Diferentemente de "La Casa de Papel", o crime de domínio de cidades não foi importado. Surgiu no Brasil, em 2015, na cidade de Campinas, quando um grupo roubou quase R$ 28 milhões da base da transportadora de valores Prosegur em 40 minutos, no mesmo formato da ação de Criciúma.Segundo os especialistas em segurança ouvidos pela reportagem, a tática de assalto é fruto da expansão de facções criminosas — como o Primeiro Comando da Capital (PCC) —, que evoluíram suas estratégias e modernizaram seus arsenais.Ao todo, já foram realizadas 26 ações enquadradas na modalidade, sendo 25 em território nacional e uma no Paraguai, em Ciudad del Este, em abril de 2017. Em sete anos da nova prática, a soma dos valores roubados já ultrapassou a marca de R$ 558,2 milhões. Desses, apenas R$ 93 milhões foram recuperados.O levantamento ao qual a Sputnik Brasil teve acesso é do grupo Alpha Bravo Brasil, formado por especialistas que realizam pesquisas e publicações sobre segurança pública.Crédito: Ribas, Grupo Alpha Bravo BrasilCrédito: Ribas, Grupo Alpha Bravo BrasilO último ataque da categoria ocorreu em Guarapuava, no Paraná, no dia 17 de abril deste ano. Nessa ação, que envolveu mais de 30 pessoas, os criminosos não conseguiram acessar os cofres da transportadora de valores Protege devido a medidas de segurança da empresa e fugiram sem dinheiro.Mas não sem deixar vítimas. No ataque, um PM morreu, outro ficou ferido e um civil foi atingido no braço dentro de sua casa — ele morava perto do local da ação.A Sputnik Brasil teve acesso a um áudio do cabo José Douglas Bonato, o agente ferido no episódio, que segue se recuperando de um tiro na perna. Segundo seu relato, os PMs foram surpreendidos pela quadrilha na saída do quartel e não tiveram tempo de reação.Na sequência, ele conseguiu se jogar da viatura, usou um torniquete (dispositivo de contenção de hemorragias) e chamou por socorro. Já seu colega, o cabo Ricieri Chagas, foi atingido na cabeça e teve morte cerebral confirmada alguns dias depois. O civil, que não teve a identidade revelada, recebeu atendimento médico e foi liberado mais tarde.Domínio de cidades X 'novo cangaço'Alocado por especialistas em segurança no topo da pirâmide dos crimes contra o patrimônio público, o domínio de cidades é uma evolução da tática de assalto que se popularizou com o nome "novo cangaço".Para quem vivencia a situação, não há muita diferença. Segundo Leandro de Paula, morador de Piumhi, no centro-oeste mineiro, foi um momento de "choque" quando se viu refém em um assalto de "novo cangaço", em abril de 2018.Ele conseguiu escapar na hora da fuga da quadrilha, que explodiu duas agências bancárias, uma do Banco do Brasil e outra da Caixa Econômica Federal. Antes de deixar a cidade em três carros, os criminosos bloquearam uma via incendiando um veículo.Por ser palatável, o termo "novo cangaço" acabou muito difundido pela imprensa brasileira, mas não é o mais adequado, segundo especialistas. A professora Jânia Perla Aquino, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência, da Universidade Federal do Ceará (UFC), aponta que a denominação é um "anacronismo" — ou seja, faz uso de uma classificação do passado para explicar de forma equivocada o presente.Ela explica que o verdadeiro cangaço foi um "fenômeno social" em um mundo rural, marcadamente do sertão nordestino, ocorrido entre o fim do século XIX e meados do XX.Já o modelo de crime atual é urbano, planejado e executado por quadrilhas interestaduais, com integrantes de facções do crime organizado, sem fronteiras regionais. Geralmente é promovido por grupos de dez a 15 pessoas, tanto de dia como à noite.Nesse tipo de ataque, além de usar a tática de escudos humanos, os criminosos levam pistolas e fuzis 7.62 e 5.56, que custam pelo menos R$ 12 mil e R$ 16 mil, respectivamente.Porém se nesta modalidade os assaltantes prezam a celeridade, em ações de até 30 minutos, com tentativas de obstrução de vias durante a fuga, no domínio de cidades o ataque é articulado, com contenções premeditadas enquanto o roubo é efetuado, com uso de explosivos em cofres e em pontos de bloqueio.A diferença mais gritante entre os dois tipos de crime está nos valores. De até R$ 1,5 milhão no "novo cangaço", as quadrilhas que atacam por domínio de cidades miram quantias superiores a R$ 20 milhões.Se no primeiro caso os municípios-alvo têm no máximo 70 mil habitantes, no segundo qualquer cidade brasileira está suscetível a sofrer o ataque, até mesmo as grandes capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, segundo disseram especialistas à Sputnik Brasil.Eles apontam que, além do montante financeiro visado pela quadrilha, o domínio de cidades se caracteriza como nova modalidade criminosa devido a dois aspectos: o poderoso aparato de combate, com pistolas e fuzis .50 — que custam até R$ 250 mil —, explosivos, drones e veículos de luxo blindados; e o nível minucioso de planejamento estratégico para executar a ação, que envolve grupos de 20 a 50 indivíduos (ou mais).Segundo Carvalho, na tática do domínio de cidades há uma divisão do trabalho nos moldes do fordismo. Ou seja, são grupos articulados divididos de acordo com suas expertises. Há os explosivistas, os que cercam o local do assalto, a equipe de contenção — que impede a chegada das forças policiais —, atiradores escondidos e até olheiros e informantes.Segundo ele, a obra, escrita por dez especialistas em segurança pública e lançada em agosto de 2020, caracteriza e "dá o diagnóstico da gravidade da situação".Além dos assaltos, a tática já foi empregada no resgate de detentos em duas ocasiões. Com diferença de pouco mais de 24 horas, em 10 e 11 de setembro de 2018, dois presídios, em João Pessoa (PB) e em Piraquara (PR), foram atacados por domínio de cidades.Na Paraíba, ao menos 20 pessoas, fortemente armadas e com explosivos, resgataram quatro detentos e possibilitaram a fuga de outros 101.No Paraná, a quadrilha explodiu o muro da penitenciária, e 29 presos fugiram. Houve troca de tiros com a Polícia Militar, mas ninguém ficou ferido na ação.O modelo também seria usado em tentativas de resgate de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, apontado como líder do PCC.Condenado a 232 anos e 11 meses de prisão por formação de quadrilha, roubo, tráfico de drogas e homicídio, Marcola estava preso na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, em 2018, quando a polícia descobriu distintos planos com uso de caminhão blindado, helicópteros, granadas, metralhadoras de calibre .50 e até supostos mercenários de forças paramilitares iranianas, nigerianas e das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).Na ocasião, em 13 de fevereiro de 2019, Marcola foi transferido para a Penitenciária Federal em Porto Velho (PFPV), em Rondônia. Depois ele passou pela Penitenciária Federal em Brasília (Pfbra) e, em março deste ano, voltou para o presídio de segurança máxima de Rondônia, onde está preso atualmente.Em nota à Sputnik Brasil, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) afirmou que as instituições financeiras têm atuado em duas frentes para enfrentar o problema, com "investimento relevante no aprimoramento da segurança bancária, da ordem de R$ 9 bilhões ao ano, o triplo do que era gasto dez anos atrás, e cooperação intensa com as autoridades encarregadas da segurança pública".A assessoria do Banco do Brasil se limitou a dizer que essa é uma "situação que afeta a segurança pública" em todo o setor financeiro e preferiu não responder às perguntas.Procurada, a empresa de segurança Prosegur disse que não se pronunciaria sobre o assunto.'Enfrentamento é inviável até para o BOPE'De 2015 para cá, as quadrilhas tiveram sucesso em 20 das 26 ações executadas — uma taxa de 77% de aproveitamento. Nas outras seis ocasiões, os criminosos não conseguiram concluir o roubo, por dificuldades de operação ou por maior efetividade das forças de segurança.Segundo o tenente-coronel Lucélio França, presidente da Associação Mato-Grossense para o Fomento e Desenvolvimento da Segurança, as ações do poder público ainda são "tímidas" para encarar um "problema tão complexo".Ele explica que o Mato Grosso, assim como outros estados, tem buscado desenvolver estratégias para se preparar para um ataque de domínio de cidades. Com atores treinados, a polícia vem simulando as ações criminosas para engajar e capacitar os agentes para o cenário mais adverso.Ele diz que enviar agentes para o banco é "mandar o policial para a morte". Após detectar os problemas nas ofensivas da polícia contra ações do "novo cangaço", o especialista afirma que "o erro se repete em escala bem maior nos casos de domínio de cidades".O tenente-coronel ressalta ainda que com os criminosos fortemente armados, impedir roubos que já estejam em andamento não é a melhor alternativa tendo um centro urbano como arena de combate. A solução, segundo ele, é surpreender a quadrilha no momento da fuga.Hélio de Carvalho, da Polícia Federal, explica que os planos de defesa estabelecidos visam a preservação de vidas, não apenas da população e dos policiais envolvidos na ação, mas também dos assaltantes.Há ainda ocasiões em que o trabalho de inteligência da polícia consegue se antecipar aos criminosos e impedir o ataque. Foi o que ocorreu em Varginha, no sul de Minas Gerais, em outubro de 2021.O plano foi descoberto pela Polícia Militar, com o apoio da Polícia Rodoviária Federal (PRF), antes do assalto à cidade. Na operação, contra dois sítios onde a quadrilha se dividiu para se preparar, todos os 26 suspeitos morreram e nenhum policial ficou ferido.Segundo a PRF, ambos os locais foram palcos de confrontos e intensa troca de tiros. A PM de Minas Gerais relatou que a intenção era prender a quadrilha, mas houve reação, e as forças de segurança ocupavam posição privilegiada.Lucélio França, tenente-coronel de Mato Grosso, afirma que "eventuais erros ou excessos praticados por agentes" são esclarecidos no curso da investigação, com devidas punições caso necessário.Projeto de lei propõe prisão de até 40 anosUm projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados visa tratar com mais rigor, no âmbito judicial, o crime de domínio de cidades. O objetivo do PL 5365/2020, de autoria dos deputados Ubiratan Sanderson (PSL-RS) e Major Fabiana (PSL-RJ), é tipificar o ataque como crime hediondo.De acordo com o texto da proposta, cuja redação tem como base pesquisas e dissertações do grupo Alpha Bravo Brasil, o crime seria punido com reclusão entre 15 e 30 anos, sendo estendida para 20 a 40 anos em caso de vítimas fatais. Se a acusação for de lesão corporal grave, a pena variaria de 20 a 30 anos.Atualmente o projeto está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, na Câmara dos Deputados.Outro PL (882/2021) sobre a questão, também de Sanderson e de Major Fabiana, faz ajustes quanto ao texto anterior e também aguarda para avançar na Casa legislativa.O promotor de Justiça de Minas Gerais André Silvares Vasconcelos afirma que os crimes violentos contra o patrimônio "precisam ser melhor definidos, entendidos e combatidos". Segundo ele, essa denominação é usada para abarcar modalidades ainda carentes de tipificação penal específica.Além da evolução da legislação e do próprio combate ao domínio de cidades, Vasconcelos aponta a necessidade real de entendimento jurídico dos operadores do direito penal quanto aos planos de defesa do Estado contra os ataques.Para Hélio de Carvalho, da Polícia Federal, as autoridades brasileiras ainda não estão dando a devida atenção ao fenômeno. Entre diversos aspectos ele cita a vaidade dos gestores, que teriam dificuldade de reconhecer a subjugação das forças de segurança para buscar evoluir no combate ao crime.
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Era quase meia-noite quando 30 encapuzados adentraram a cidade em carros de luxo blindados. Em menos de duas horas, a quadrilha fortemente armada sitiou o centro do município, bloqueou ruas para impedir a chegada da polícia, fez reféns de escudo humano, assaltou um banco e deixou o local com R$ 125 milhões sem grandes infortúnios.
Enquanto muitos brasileiros se divertiam com o sucesso da série espanhola sobre mega-assaltos "La Casa de Papel", da Netflix, moradores de Criciúma, em Santa Catarina, vivenciavam uma noite de terror naquela madrugada de 1º de dezembro de 2020.
Longe de ser ficção, a situação é apenas um dos mais de 20 casos já registrados do chamado "domínio de cidades", em flagrante crescimento pelo país.
"Achei que eram fogos, mas não parava e estava estranho. Quando subi a ladeira, vi faíscas e duas pessoas atirando, uma em cada esquina", relatou à Sputnik Brasil Franciele Mazzuquelu, moradora de Criciúma.
À época, a analista de recursos humanos, hoje com 26 anos, morava próximo a uma agência bancária do Banco do Brasil, alvo do ataque. Todos os dias ela saía tarde do trabalho e, de carro, precisava cruzar o centro da cidade para chegar em casa. Mas dessa vez havia um assalto em andamento no seu trajeto rotineiro.
"Meu corpo entrou em estado de alerta. Parei o carro a não sei qual distância e dei ré, sem entender o que estava acontecendo. Em um caminho alternativo, não dava para ir de carro. Então deixei o carro nessa rua e consegui ir para casa", explicou.
Nesse meio-tempo, a quadrilha havia lançado um caminhão contra o 9º Batalhão de Polícia Militar e ateado fogo no veículo, a quatro quilômetros do banco. O som de tiros e explosivos ressoou durante quase todo o
assalto pela cidade. Durante a ação, os criminosos só entraram em confronto com a polícia ao cruzar com duas patrulhas. Um PM e um vigilante ficaram feridos. Ninguém morreu.
Diferentemente de "La Casa de Papel", o crime de domínio de cidades não foi importado. Surgiu no Brasil, em 2015, na cidade de Campinas, quando um grupo roubou quase R$ 28 milhões da base da transportadora de valores Prosegur em 40 minutos, no mesmo formato da ação de Criciúma.
Segundo os especialistas em segurança ouvidos pela reportagem, a tática de assalto é fruto da expansão de facções criminosas — como o Primeiro Comando da Capital (PCC) —, que evoluíram suas estratégias e modernizaram seus arsenais.
Ao todo, já foram realizadas 26 ações enquadradas na modalidade, sendo 25 em território nacional e uma no Paraguai, em Ciudad del Este, em abril de 2017. Em sete anos da nova prática, a soma dos valores roubados já ultrapassou a marca de R$ 558,2 milhões. Desses, apenas R$ 93 milhões foram recuperados.
O levantamento ao qual a Sputnik Brasil teve acesso é do grupo Alpha Bravo Brasil, formado por especialistas que realizam pesquisas e publicações sobre segurança pública.
Assaltos por domínio de cidades (parte 1)
| Data | Cidade | Valor roubado | Valor recuperado |
1º | 6 de novembro de 2015 | Campinas (SP) | R$ 27.961.255,56 | - |
2º | 9 de fevereiro de 2016 | Jacobina (BA) | R$ 3.141.063 | R$ 2.981.036 |
3º | 14 de março de 2016 | Campinas (SP) | R$ 48.372.833,13 | - |
4º | 4 de abril de 2016 | Santos (SP) | R$ 12.167.591,38 | R$ 8.799.408,57 |
5º | 22 de abril de 2016 | Barreiras (BA) | R$ 10.244.862,71 | - |
6º | 5 de julho de 2016 | Ribeirão Preto (SP) | R$ 51.255.957,21 | - |
7º | 17 de agosto de 2016 | Santo André (SP) | - | - |
8º | 5 de setembro de 2016 | Marabá (PA) | R$ 17.901.544,99 | - |
9º | 30 de novembro de 2016 | Redenção (PA) | - | - |
10º | 21 de fevereiro de 2017 | Recife (PE) | R$ 11.859.839,35 | - |
11º | 20 de março de 2017 | Irecê (BA) | - | - |
12º | 24 de abril de 2017 | Ciudad del Leste (PAR) | R$ 47.200.000 | R$ 4.500.000 |
13º | 11 de abril de 2017 | Gurupi (TO) | R$ 6.403.126 | R$ 6.286.137 |
14º | 16 de outubro de 2017 | Araçatuba (SP) | R$ 8.108.061,92 | - |
Crédito: Ribas, Grupo Alpha Bravo Brasil
Assaltos por domínio de cidades (parte 2)
| Data | Cidade | Valor roubado | Valor recuperado |
15º | 6 de novembro de 2017 | Uberaba (MG) | R$ 48.517.081,72 | - |
16º | 6 de março de 2018 | Eunápolis (BA) | - | - |
17º | 11 de abril de 2018 | Passos (MG) | R$ 27.387.555 | R$ 27.137.407 |
18º | 29 de outubro de 2018 | Ribeirão Preto (SP) | - | - |
19º | 25 de novembro de 2018 | Bacabal (MA) | R$ 74.950.776 | R$ 43.321.492 |
20º | 27 de junho de 2019 | Uberaba (MG) | R$ 25.200.000 | - |
21º | 2 de maio de 2020 | Ourinhos (SP) | - | - |
22º | 30 de julho de 2020 | Botucatu (SP) | R$ 3.827.262 | - |
23º | 24 de novembro de 2020 | Araraquara (SP) | R$ 4.443.430 | - |
24º | 1º de dezembro de 2020 | Criciúma (SC) | R$ 125.432.729 | - |
25º | 30 de agosto de 2021 | Araçatuba (SP) | R$ 3.827.262 | - |
26º | 17 de abril de 2022 | Guarapuava (PR) | - | - |
Crédito: Ribas, Grupo Alpha Bravo Brasil
O
último ataque da categoria
ocorreu em Guarapuava, no Paraná, no dia 17 de abril deste ano. Nessa ação, que envolveu mais de 30 pessoas, os criminosos não conseguiram acessar os cofres da transportadora de valores Protege devido a medidas de segurança da empresa e fugiram sem dinheiro.
Mas não sem deixar vítimas. No ataque, um PM morreu, outro ficou ferido e um civil foi atingido no braço dentro de sua casa — ele morava perto do local da ação.
A Sputnik Brasil teve acesso a um áudio do cabo José Douglas Bonato, o agente ferido no episódio, que segue se recuperando de um tiro na perna. Segundo seu relato, os PMs foram surpreendidos pela quadrilha na saída do quartel e não tiveram tempo de reação.
"Fomos fuzilados, senti o tiro na perna esquerda, na direita não sei se foi o mesmo disparo. Eles não paravam de atirar na viatura, não têm perdão mesmo. Os caras atiram para matar e não param. Pensei que nos matariam de vez", contou Bonato.
Na sequência, ele conseguiu se jogar da viatura, usou um torniquete (dispositivo de contenção de hemorragias) e chamou por socorro. Já seu colega, o cabo Ricieri Chagas, foi atingido na cabeça e teve morte cerebral confirmada alguns dias depois. O civil, que não teve a identidade revelada, recebeu atendimento médico e foi liberado mais tarde.
Domínio de cidades X 'novo cangaço'
Alocado por especialistas em segurança no topo da pirâmide dos crimes contra o patrimônio público, o domínio de cidades é uma evolução da tática de assalto que se popularizou com o nome "novo cangaço".
Para quem vivencia a situação, não há muita diferença. Segundo Leandro de Paula, morador de Piumhi, no centro-oeste mineiro, foi um momento de "choque" quando se viu refém em um assalto de "novo cangaço", em abril de 2018.
"De repente, em um cruzamento, fui abordado por um sujeito todo coberto, com arma longa, que disparou no sentido do motor do veículo, pegou no para-choque e estourou um pneu. Eu desci do carro, e ele me conduziu para uma esquina com três ou quatro pessoas. Tiramos a camisa e ficamos com as mãos para o alto, fazendo um cordão humano", contou De Paula, que na época era advogado e hoje é policial civil.
Ele conseguiu escapar na hora da fuga da quadrilha, que explodiu duas agências bancárias, uma do Banco do Brasil e outra da Caixa Econômica Federal. Antes de deixar a cidade em três carros, os criminosos bloquearam uma via incendiando um veículo.
Por ser palatável, o termo "novo cangaço" acabou muito difundido pela imprensa brasileira, mas não é o mais adequado, segundo especialistas. A professora Jânia Perla Aquino, pesquisadora do Laboratório de Estudos da Violência, da Universidade Federal do Ceará (UFC), aponta que a denominação é um "anacronismo" — ou seja, faz uso de uma classificação do passado para explicar de forma equivocada o presente.
Ela explica que o verdadeiro cangaço foi um "fenômeno social" em um mundo rural, marcadamente do sertão nordestino, ocorrido entre o fim do século XIX e meados do XX.
"O cangaço foi um movimento de levante de grupos camponeses armados contra latifundiários. Indignados com a dominação e a opressão, formavam bandos e saqueavam fazendas, vilas e cidades, confrontando a polícia local. O caso mais famoso é o de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, que teve o pai assassinado e se revoltou", explica a pesquisadora.
Já o modelo de crime atual é urbano, planejado e executado por quadrilhas interestaduais, com integrantes de facções do crime organizado, sem fronteiras regionais. Geralmente é promovido por grupos de dez a 15 pessoas, tanto de dia como à noite.
Nesse tipo de ataque, além de usar a tática de escudos humanos, os criminosos levam pistolas e fuzis 7.62 e 5.56, que custam pelo menos R$ 12 mil e R$ 16 mil, respectivamente.
Porém se nesta modalidade os assaltantes prezam a celeridade, em ações de até 30 minutos, com tentativas de obstrução de vias durante a fuga, no domínio de cidades o ataque é articulado, com contenções premeditadas enquanto o roubo é efetuado, com uso de explosivos em cofres e em pontos de bloqueio.
A diferença mais gritante entre os dois tipos de crime está nos valores. De até R$ 1,5 milhão no "novo cangaço", as quadrilhas que atacam por domínio de cidades miram quantias superiores a R$ 20 milhões.
Se no primeiro caso os municípios-alvo têm no máximo 70 mil habitantes, no segundo qualquer cidade brasileira
está suscetível a sofrer o ataque, até mesmo as grandes capitais, como Rio de Janeiro e São Paulo, segundo disseram especialistas à Sputnik Brasil.
Eles apontam que, além do montante financeiro visado pela quadrilha, o domínio de cidades se caracteriza como nova modalidade criminosa devido a dois aspectos: o poderoso aparato de combate, com pistolas e fuzis .50 — que custam até R$ 250 mil —, explosivos, drones e veículos de luxo blindados; e o nível minucioso de planejamento estratégico para executar a ação, que envolve grupos de 20 a 50 indivíduos (ou mais).
"Em 2015, houve uma mudança de paradigmas a partir da ação em Campinas. Além da maior duração, a quadrilha rechaçou qualquer aproximação das forças de segurança, em uma cidade que é a 14ª mais populosa do Brasil e com grande efetivo policial", explica Hélio de Carvalho, agente da Polícia Federal e vice-presidente do Sindicato dos Policiais Federais do Espírito Santo (Sinpef-ES).
Segundo Carvalho, na tática do domínio de cidades há uma divisão do trabalho nos moldes do fordismo. Ou seja, são grupos articulados divididos de acordo com suas expertises. Há os explosivistas, os que cercam o local do assalto, a equipe de contenção — que impede a chegada das forças policiais —, atiradores escondidos e até olheiros e informantes.
"No transcorrer da ação, a polícia local não consegue se aproximar do cenário de operações. Assim, momentaneamente, de acordo com a duração do domínio, há a subjugação da polícia", diz Carvalho, um dos autores do livro "Alpha Bravo Brasil — Crimes Violentos contra o Patrimônio".
Segundo ele, a obra, escrita por dez especialistas em segurança pública e lançada em agosto de 2020, caracteriza e "dá o diagnóstico da gravidade da situação".
Além dos assaltos, a tática já foi empregada no resgate de detentos em duas ocasiões. Com diferença de pouco mais de 24 horas, em 10 e 11 de setembro de 2018, dois presídios, em João Pessoa (PB) e em Piraquara (PR), foram atacados por domínio de cidades.
Na Paraíba, ao menos 20 pessoas, fortemente armadas e com explosivos, resgataram quatro detentos e possibilitaram a fuga de outros 101.
No Paraná, a quadrilha explodiu o muro da penitenciária, e 29 presos fugiram. Houve troca de tiros com a Polícia Militar, mas ninguém ficou ferido na ação.
O modelo também seria usado em tentativas de resgate de Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola, apontado como líder do PCC.
Condenado a 232 anos e 11 meses de prisão por formação de quadrilha, roubo, tráfico de drogas e homicídio, Marcola estava preso na Penitenciária 2 de Presidente Venceslau, no interior de São Paulo, em 2018, quando a polícia descobriu distintos planos com uso de caminhão blindado, helicópteros, granadas, metralhadoras de calibre .50 e até supostos mercenários de forças paramilitares iranianas, nigerianas e das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC).
Na ocasião, em 13 de fevereiro de 2019, Marcola foi transferido para a Penitenciária Federal em Porto Velho (PFPV), em Rondônia. Depois ele passou pela Penitenciária Federal em Brasília (Pfbra) e, em março deste ano, voltou para o presídio de segurança máxima de Rondônia, onde está preso atualmente.
Em nota à Sputnik Brasil, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) afirmou que as instituições financeiras têm atuado em duas frentes para enfrentar o problema, com "investimento relevante no aprimoramento da segurança bancária, da ordem de R$ 9 bilhões ao ano, o triplo do que era gasto dez anos atrás, e cooperação intensa com as autoridades encarregadas da segurança pública".
A assessoria do Banco do Brasil se limitou a dizer que essa é uma "situação que afeta a segurança pública" em todo o setor financeiro e preferiu não responder às perguntas.
Procurada, a empresa de segurança Prosegur disse que não se pronunciaria sobre o assunto.
'Enfrentamento é inviável até para o BOPE'
De 2015 para cá, as quadrilhas tiveram sucesso em 20 das 26 ações executadas — uma taxa de 77% de aproveitamento. Nas outras seis ocasiões, os criminosos não conseguiram concluir o roubo, por dificuldades de operação ou por maior efetividade das forças de segurança.
Segundo o tenente-coronel Lucélio França, presidente da Associação Mato-Grossense para o Fomento e Desenvolvimento da Segurança, as ações do poder público ainda são "tímidas" para encarar um "problema tão complexo".
Ele explica que o Mato Grosso, assim como outros estados, tem buscado desenvolver estratégias para se preparar para um ataque de domínio de cidades. Com atores treinados, a polícia vem simulando as ações criminosas para engajar e capacitar os agentes para o cenário mais adverso.
"A intenção dessas ações não é o confronto, mas sim a desarticulação do planejamento da quadrilha. Uma espécie de contragolpe", aponta França, que também é organizador do livro "Alpha Bravo Brasil".
Ele diz que enviar agentes para o banco é "mandar o policial para a morte". Após detectar os problemas nas ofensivas da polícia contra ações do "novo cangaço", o especialista afirma que "o erro se repete em escala bem maior nos casos de domínio de cidades".
"O enfrentamento é inviável até para o BOPE [Batalhão de Operações Policiais Especiais] ou tropas especializadas, como Rotam [Rondas Ostensivas Táticas Metropolitanas], BAEP [Batalhão de Ações Especiais de Polícia], Força Tática etc.", alerta.
O tenente-coronel ressalta ainda que com os criminosos fortemente armados, impedir roubos que já estejam em andamento não é a melhor alternativa tendo um centro urbano como arena de combate. A solução, segundo ele, é surpreender a quadrilha no momento da fuga.
"Após a ação, há uma rota de fuga, que é previsível, e a polícia deve usar isso a seu favor, como eles fazem [ao bloquear vias previsíveis de acesso ao centro]. Quem quiser se preparar deverá ter um plano de defesa com foco na quebra do planejamento dos criminosos quanto às suas rotas de fuga", indica.
Hélio de Carvalho, da Polícia Federal, explica que os planos de defesa estabelecidos visam a preservação de vidas, não apenas da população e dos policiais envolvidos na ação, mas também dos assaltantes.
"Os criminosos estão evitando atacar locais onde estão sendo confeccionados esses planos de defesa, com verificação de falhas na operacionalização e, naturalmente, sua publicização, com divulgação da mídia", disse Carvalho.
Há ainda ocasiões em que o trabalho de inteligência da polícia consegue se antecipar aos criminosos e impedir o ataque. Foi o que ocorreu em Varginha, no sul de Minas Gerais, em outubro de 2021.
O plano foi descoberto pela Polícia Militar, com o apoio da Polícia Rodoviária Federal (PRF), antes do assalto à cidade. Na operação, contra dois sítios onde a quadrilha se dividiu para se preparar, todos os 26 suspeitos morreram e nenhum policial ficou ferido.
Segundo a PRF, ambos os locais foram palcos de confrontos e intensa troca de tiros. A PM de Minas Gerais relatou que a intenção era prender a quadrilha, mas houve reação, e as forças de segurança ocupavam posição privilegiada.
Lucélio França, tenente-coronel de Mato Grosso, afirma que "eventuais erros ou excessos praticados por agentes" são esclarecidos no curso da investigação, com devidas punições caso necessário.
"Este é o cenário onde devemos encontrar um ponto razoável de moderação para abordar e prender 26 criminosos treinados, bem armados, experientes e que não querem ser presos. Infelizmente esse ponto de equilíbrio só existe após o confronto e a neutralização dos criminosos", afirma.
Projeto de lei propõe prisão de até 40 anos
Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados visa tratar com mais rigor, no âmbito judicial, o crime de domínio de cidades. O objetivo do
PL 5365/2020, de autoria dos deputados Ubiratan Sanderson (PSL-RS) e Major Fabiana (PSL-RJ), é
tipificar o ataque como crime hediondo.
De acordo com o texto da proposta, cuja redação tem como base pesquisas e dissertações do grupo Alpha Bravo Brasil, o crime seria punido com reclusão entre 15 e 30 anos, sendo estendida para 20 a 40 anos em caso de vítimas fatais. Se a acusação for de lesão corporal grave, a pena variaria de 20 a 30 anos.
Atualmente o projeto está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, na Câmara dos Deputados.
Outro PL (
882/2021) sobre a questão, também de Sanderson e de Major Fabiana, faz ajustes quanto ao texto anterior e também aguarda para avançar na Casa legislativa.
O promotor de Justiça de Minas Gerais André Silvares Vasconcelos afirma que os crimes violentos contra o patrimônio "precisam ser melhor definidos, entendidos e combatidos". Segundo ele, essa denominação é usada para abarcar modalidades ainda carentes de tipificação penal específica.
Além da evolução da legislação e do próprio combate ao domínio de cidades, Vasconcelos aponta a necessidade real de entendimento jurídico dos operadores do direito penal quanto aos planos de defesa do Estado contra os ataques.
"O Estado deve agir sem excessos e, simultaneamente, de forma que a proteção da segurança não seja insuficiente. Deve ser evitado o excesso, bem como a insuficiência na promoção da segurança pública", afirmou o promotor.
Para Hélio de Carvalho, da Polícia Federal, as autoridades brasileiras ainda não estão dando a devida atenção ao fenômeno. Entre diversos aspectos ele cita a vaidade dos gestores, que teriam dificuldade de reconhecer a subjugação das forças de segurança para buscar evoluir no combate ao crime.
"É admitir a falha, e o ser humano não lida bem com isso", analisa, alertando para a urgência de uma mudança radical na percepção da gravidade da situação. "A nata criminal não vai deixar de executar seus planos. Então temos que nos prevenir e mitigar os riscos."