'Brasil precisa da multipolaridade': como Dugin influencia ideias do grupo Nova Resistência
10:35 16.10.2022 (atualizado: 10:57 16.10.2022)
© Sputnik / Ruslan Krivobok Filósofo russo Aleksandr Dugin, durante conferência de imprensa em Moscou, Rússia (foto de arquivo)
© Sputnik / Ruslan Krivobok
Nos siga no
Especiais
Filósofo russo Aleksandr Dugin ganha espaço em movimentos políticos, militares e acadêmicos no Brasil. Conheça o polêmico movimento Nova Resistência, que se inspira em Dugin para promover uma nova ideologia nacional.
Em um processo eleitoral marcado pela polarização política, o movimento político Nova Resistência (NR) inova ao se declarar não de “terceira via”, mas sim de quarta. Fundado em 2015, o movimento usa a quarta teoria política de Aleksandr Dugin para unir pautas anti-imperialistas, sindicalistas, críticas ao movimento LGBTQIA+ e ao feminismo contemporâneo.
Apesar de ter sido fundado em meio à crise que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, o estopim para a criação do grupo foi o golpe de Estado de 2014 na Ucrânia.
"Nós percebemos que os acontecimentos na Eurásia eram uma transição geopolítica, na qual o Brasil precisava se inserir", disse o jornalista e membro fundador da Nova Resistência, Lucas Leiroz, à Sputnik Brasil.
Com cerca de 250 membros ativos “que passaram pela prospecção e fizeram nosso juramento”, o Nova Resistência defende ideias tradicionalistas e a quarta teoria política, formulada pelo filósofo russo Alexandr Dugin.
"Em 2015, o nacionalismo e patriotismo no Brasil estavam muito vinculados ao anticomunismo americanista, o que não nos agradava", disse o líder do grupo, Raphael Machado, à Sputnik Brasil. "Como não éramos nem comunistas, nem liberais ou fascistas, vimos que a única alternativa era construir o nosso próprio movimento."
O líder do grupo divulga suas ideias através de um blog chamado Legio Victrix e da editora ARS Regia, que traduziu obras de Dugin como "Geopolítica do Mundo Multipolar" e "A Quarta Teoria Política".
"Decidimos trazer o conteúdo de Dugin e formar uma plataforma política para criar uma ideologia brasileira com base na quarta teoria política", resume Leiroz.
Influência de Dugin
O filósofo russo Aleksandr Dugin ganhou as manchetes brasileiras após sua filha ter sido assassinada por ataque organizado pelos serviços de inteligência ucranianos nas proximidades de Moscou, em 20 de agosto passado. O interesse de Dugin pelo Brasil, no entanto, é muito anterior a este episódio trágico de sua vida pessoal.
"Dugin gosta muito de cultura brasileira e língua portuguesa. O estilo musical favorito dele é a Bossa Nova, e suas obras estão cheias de referências a Fernando Pessoa, Ariano Suassuna e Celso Furtado", relata Machado, que conheceu o filósofo pessoalmente em 2012.
Apesar do interesse pelo Brasil, o filósofo russo dedica sua obra à formulação de uma geopolítica para a Eurásia, região distante da realidade latino-americana.
© Sputnik / Grigory SysoevFilósofo russa Aleksandr Dugin, durante o funeral de sua filha, Dária Dugina, em Moscou, 23 de agosto de 2022
Filósofo russa Aleksandr Dugin, durante o funeral de sua filha, Dária Dugina, em Moscou, 23 de agosto de 2022
© Sputnik / Grigory Sysoev
"Apesar do enforque imediato de Dugin ser o entorno geoestratégico russo, para que sua ideia de ordem multipolar se concretize são necessários movimentos na América Latina, África, Mundo Islâmico e Extremo Oriente", explica Machado.
Aleksandr Dugin defende a construção de um mundo multipolar, no qual diferentes civilizações e culturas viveriam de forma independente e igualitária.
"Cada civilização possui sua identidade e cosmovisão, por isso deveria atuar como um espaço geoestratégico autônomo, seguindo seus próprios princípios, ainda que preferencialmente em diálogo com outras civilizações", diz Machado.
© Foto / Lucas Leiroz Militantes do Movimento Nova Resistência, em foto disponibilizada por membro do grupo
Militantes do Movimento Nova Resistência, em foto disponibilizada por membro do grupo
© Foto / Lucas Leiroz
O projeto multipolar de Dugin rejeita o "mundo unipolar que vivemos desde o final da Guerra Fria" e almeja a construção de "uma série de polos equivalentes", nos quais os "povos possam traçar seus caminhos de forma autônoma, livres da tentativa de nivelar todo mundo por um padrão ocidental", resume o líder do Nova Resistência.
O Brasil se beneficiaria da multipolaridade de Dugin, uma vez que "deixaria de ser tutelado pelos EUA" e poderia exercer sua soberania, acredita Machado.
Esquerda ou Direita?
No Brasil, o discurso anti-imperialista, favorável à criação de um polo de poder na América Latina independente dos EUA, é normalmente associado à esquerda do espectro político. Os líderes do Nova Resistência, no entanto, afirmam não se encaixar nessa categoria.
"Não somos de direita nem de esquerda. Essa dicotomia não consegue descrever a Nova Resistência. Por isso somos atacados pelos dois lados", diz Leiroz.
Segundo ele, o grupo rejeita as candidaturas tanto de Jair Bolsonaro (PL), quanto de Lula (PT), e recomenda a seus militantes que optem pelo voto nulo.
"Na nossa visão, Bolsonaro é provavelmente o pior presidente da história do Brasil. Entreguista, privatista, promoveu uma agenda de alinhamento aos EUA, que foi modificada por iniciativa dos próprios americanos", disse Leiroz. "Já o Lula foi simplesmente um político neoliberal com viés assistencialista, mas nada revolucionário."
Enquanto o grupo é tachado de comunista pelos bolsonaristas, é acusado pela esquerda de possuir tendências fascistas e antidemocráticas.
© AP Photo / Eraldo PeresO presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, à esquerda, e o empresário Luciano Hang
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, à esquerda, e o empresário Luciano Hang
© AP Photo / Eraldo Peres
"Temos compromisso com a democracia, mas criticamos o modelo brasileiro. O parlamentarismo de coalizão, que obriga a formação de grandes coalizões heterogêneas, enfraquece qualquer projeto de poder", asseverou Machado.
Projeto Eleitoral
O Nova Resistência possui ambições eleitorais e já elegeu seu primeiro vereador, Ivanzinho de Joventino, pelo partido Cidadania, na cidade de Cuité, na Paraíba.
"Hoje a legislação eleitoral no Brasil praticamente não permite a formação de um novo partido. Por isso, temos outra estratégia: a de nos filiar a partidos políticos que têm alguma afinidade programática com a NR", explicou Leiroz.
Segundo ele, membros do grupo podem se filiar a qualquer partido "que não seja totalmente liberal". Parte da militância do NR se filiou ao PDT, enquanto grupos cariocas preferiram apoiar candidaturas ligadas ao União Brasil.
A participação no PDT de Ciro Gomes é ligada ao projeto da NR de "reformular o trabalhismo histórico através da quarta teoria política".
"Nossa afinidade com o trabalhismo não exclui outras influências nacionais, como a leitura do legado do [político conservador] Enéas Carneiro", relata Leiroz.
Membros históricos do PDT, no entanto, se incomodaram com a presença do NR em suas fileiras. O presidente do partido, Carlos Lupi, chegou a prometer a expulsão dos militantes do partido, conforme reportou o portal Congresso em Foco.
© Foto / Twitter / Ciro GomesO presidenciável Ciro Gomes (PDT) faz ato de campanha na praia de Copacabana
O presidenciável Ciro Gomes (PDT) faz ato de campanha na praia de Copacabana
© Foto / Twitter / Ciro Gomes
Leiroz nega que a estratégia partidária do grupo configure infiltração e busque dominar os partidos com os quais trabalha.
"Nossa filiação é pública, não temos nada a esconder. Damos liberdade para os membros do NR entrarem em partidos e disputamos espaços políticos como qualquer outra organização", disse Leiroz. "O mesmo em relação a sindicatos: os membros são incentivados a entrar em sindicatos e buscar melhorias para a classe trabalhadora."
Essa intensa atividade política é, segundo ele, financiada pelos próprios membros, "através de um sistema de mensalidades". O membro fundador do grupo assevera que "não possuímos nenhuma forma de financiamento externo".
Esquerda no trabalho, direita nos costumes
A pauta econômica da NR, que prevê um Estado dirigista, pode ser facilmente confundida com propostas alinhadas à esquerda.
"A intervenção estatal na economia é algo que defendemos, uma economia cujos rumos estratégicos sejam definidos pelo Estado, não de forma planificada, mas através de parcerias público-privadas", disse Leiroz.
Na pauta de costumes, no entanto, as ideias do grupo se distanciam claramente da agenda da esquerda brasileira.
Em suas redes sociais, o Nova Resistência faz uso ostensivo de polêmicas anti-pedofilia, inclusive manifestando apoio às recentes declarações controversas da ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves. Além disso, postagens do grupo sugerem que o suposto "Deep State" brasileiro estaria desumanizando a sociedade com o apoio do capital financeiro internacional e do Supremo Tribunal Federal.
© FolhapressA ex-ministra Damares Alves participa de convenção do Republicanos
A ex-ministra Damares Alves participa de convenção do Republicanos
A secretária geral do NR, Amarílis Rezende, coordena o grupo Mátria, que debate a pauta feminina do grupo.
"Para que seja genuína, a luta feminina precisa ser anti-liberal. Ao invés de focarmos em uma igualdade que não existe, ou num conceito de liberdade muito abstrato [...] os critérios têm que ser tradicionais: a justiça e o bem comum", disse Rezende à Spuntik Brasil.
Para Rezende, o movimento feminino do NR se distingue por não rejeitar o patriarcado, nem a ideia de gênero.
"Toda teoria feminista traz a ideia de patriarcado, de que existe uma estrutura masculina pensada para dominar e oprimir as mulheres", explicou Rezende. "Não vemos sentido nisso. Uma sociedade pode ser patriarcal ou matriarcal [...] e isso não fazer tanta diferença na qualidade de vida das mulheres."
© Foto / Lucas LeirozMilitantes do grupo Nova Resistência reunidos, em foto disponibilizada por membro do grupo
Militantes do grupo Nova Resistência reunidos, em foto disponibilizada por membro do grupo
© Foto / Lucas Leiroz
Segundo ela, sociedades patriarcais sempre tiveram "figuras femininas que se destacaram" e contaram com o "poder feminino".
"A participação não precisa ser exatamente igual à dos homens para que seja válida e ativa", diz Rezende. "As pautas femininas têm que valorizar o poder e a força da mulher, e não a vitimização."
Amarílis diz conhecer pesquisas que provariam diferenças "no funcionamento do cérebro" de homens e mulheres, que determinariam que certas "preferências das mulheres" seriam "inatas", mesmo "em sociedades mais igualitárias".
© AP Photo / Natacha PisarenkoUma mulher usa uma mensagem no peito que diz em espanhol: "A revolução será feminista".
Uma mulher usa uma mensagem no peito que diz em espanhol: "A revolução será feminista".
© AP Photo / Natacha Pisarenko
Segundo ela, as diferenças de gênero, ainda que socialmente construídas, não seriam a fonte de opressão para as mulheres: "o que oprime as mulheres é a modernidade", resumiu Rezende.
Pauta LGBTQIA+
Artigos publicados no site do NR também apontam para uma profunda discordância com a pauta LGBTQIA+. Um artigo publicado no site do grupo, "A essência nefasta do movimento LGBTQ+", afirma que a agenda teria sido criada por "mentes demoníacas".
"A nossa discordância com o movimento LGBT é que uma prática sexual não é suficiente para conformar a identidade de alguém. Isso […] diz respeito à vida privada", declarou Rezende. "Nunca existiu uma cultura gay, isso é uma invenção [dos movimentos] de maio de 1968."
Segundo ela, o liberalismo instrumentaliza as pautas em defesa dos direitos de indivíduos LGBTQIA+ para minar os valores religiosos e atingir a hegemonia cultural,
© Foto / Lucas LeirozMilitante do grupo Nova Resistência posa para foto ao lado de Dária Dugina, em Sochi, Rússia, em 2017
Militante do grupo Nova Resistência posa para foto ao lado de Dária Dugina, em Sochi, Rússia, em 2017
© Foto / Lucas Leiroz
"É dessa forma que o liberalismo mina o seu último inimigo no Ocidente: o comunismo. É uma arma do liberalismo para transformar a esquerda ocidental [...] em uma esquerda liberal", declarou a secretária geral do NR.
Racismo
O grupo já sofreu críticas por alegadas práticas racistas. Em 16 de agosto, durante entrevista ao presidenciável Ciro Gomes (PDT) no programa Roda Viva, o jornalista Flávio Costa acusou o NR de abarcar membros "negacionistas do holocausto, das vacinas, gente que critica a militância LGBT e do movimento negro".
"Não sei até agora ao que ele estava se referindo, não tivemos nenhum episódio de racismo [entre a militância]", disse Leiroz sobre a intervenção do jornalista Flávio Costa.
Artigos publicados no site do grupo argumentam que a pauta de defesa dos direitos das populações negras e pardas seriam alheias à realidade brasileira.
"Acreditamos em um Brasil muito distante dessa polarização racial pregada pela esquerda hoje, que é uma importação do racialismo norte-americano", diz Leiroz.
O membro fundador do movimento manifesta adesão às ideias de Gilberto Freyre, que defendia o conceito de “democracia racial”, amplamente criticado por movimentos em defesa das populações negras e periféricas no Brasil.
© Foto / Lucas Leiroz Militantes do grupo Nova Resistência realizam ato na estátua do Borba Gato, em São Paulo (foto de arquivo)
Militantes do grupo Nova Resistência realizam ato na estátua do Borba Gato, em São Paulo (foto de arquivo)
© Foto / Lucas Leiroz
Entre interesses de classe, agenda de gênero e pauta cultural, as contradições e o debate acalorado do movimento parecem refletir o estágio ainda incipiente e em formação de uma alternativa ideológica para o Brasil.
Fundado em 2015, o grupo Nova Resistência abarca cerca de 250 membros juramentados e divulga suas ideias a partir de blogs e redes sociais. O canal do Telegram do grupo conta com cerca de 4.800 membros.