Forças Armadas poderão voltar a se engajar em missões da ONU no exterior, diz analista
11:40 17.11.2022 (atualizado: 13:04 17.11.2022)
© AFP 2023 / Hector Retamal Soldado brasileiro durante da MINUSTAH faz patrulha na comunidade Cité Soleil, em Porto Príncipe, Haiti, 11 de março de 2014
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Governo Bolsonaro reduziu a participação em missões de paz da ONU a pedido de aliados, como Israel. Analistas ouvidos pela Sputnik Brasil avaliam se o governo Lula 3 terá coragem de reengajar as Forças Armadas em missões no exterior.
Nesta quinta-feira (17), o coordenador de grupos técnicos, Aloísio Mercadante, confirmou o adiamento da divulgação dos nomes para o núcleo de Defesa e Inteligência do gabinete de transição de governo, reportou o jornal O Globo. O núcleo que reunirá membros do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) é o único ainda não confirmado.
O atraso revela a cautela do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, em tratar de assuntos militares. Dentre os desafios colocados ao governo Lula 3 está o grande número de fardados da reserva e da ativa ocupando cargos civis na máquina estatal.
Um dos instrumentos possíveis para garantir o prestígio das Forças Armadas, ainda que longe das atividades civis, é a retomada da participação brasileira em missões de paz da ONU. Essas operações não só garantem experiência aos militares brasileiros, mas projetam o Brasil internacionalmente.
"O envio de missões de paz correspondia ao interesse de maior presença no jogo internacional, em particular a conquista de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU", disse o doutor em história pela Universidade de Paris Manuel Domingos Neto à Sputnik Brasil.
O número de tropas brasileiras em missões da ONU aumentou exponencialmente a partir de 2004. De lá para cá, o Brasil assumiu o comando da Missão de Paz para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH) e da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL).
© AFP 2023 / Junior Kanaah General Carlos Alberto Dos Santos durante participação na Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO), 5 de novembro de 2013
General Carlos Alberto Dos Santos durante participação na Missão das Nações Unidas na República Democrática do Congo (MONUSCO), 5 de novembro de 2013
© AFP 2023 / Junior Kanaah
As missões de paz ganham caráter cada vez mais ostensivo, com a autorização do uso da força não só para a autodefesa de seus contingentes, mas também para combate a grupos insurgentes.
No entanto, de acordo com o livre docente em segurança internacional da UNESP Sérgio Luiz Cruz Aguilar, o Brasil não vê problemas em participar de operações ostensivas da ONU.
"Participamos em Timor, no Haiti, onde usamos a força sem problemas a nível tático nas operações nas favelas [da capital haitiana] Porto Príncipe", disse Aguilar à Sputnik Brasil.
Segundo ele, o uso da força no Haiti "permitiu uma certa pacificação" das comunidades locais, mas "não foram seguidas de ações mais profundas e de longo prazo e hoje a situação está completamente deteriorada novamente".
© AFP 2023 / Vanderlei AlmeidaSoldada brasileira da MINUSTAH providencia comida a criança em orfanato no Haiti, 3 de março de 2013
Soldada brasileira da MINUSTAH providencia comida a criança em orfanato no Haiti, 3 de março de 2013
© AFP 2023 / Vanderlei Almeida
Críticos à participação em missões de paz apontam que a ação brasileira no Haiti teria servido de treinamento para operações em território nacional, como a Intervenção Federal no Rio de Janeiro de 2018, que gerou 1,5 mil mortes por agentes do Estado na capital fluminense, de acordo com dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESEC) da Universidade Candido Mendes.
"Há, sim, alguma aproximação entre as operações de paz e o que foi convencionado chamar de operações de garantia da lei e da ordem", destacou Manuel Domingos Neto. "Os participantes não se envolvem, em princípio, em missões guerreiras, mas sim em atividades de segurança pública."
A atuação política dos militares que participam de missões de paz também preocupa os analistas. A projeção política de figuras-chave do bolsonarismo, como o general Augusto Heleno, se deu às custas da participação do Brasil no Haiti. O atual ministro-chefe de Segurança Institucional do Brasil foi force commander da MINUSTAH entre 2004 e 2005, período marcado por combates nas comunidades de Bel Air, Cité Militaire e Cité Soleil.
© AFP 2023 / Vanderlei Almeida Haitianos recebem a seleção brasileira de futebol em Porto Príncipe, Haiti, 18 de agosto de 2004
Haitianos recebem a seleção brasileira de futebol em Porto Príncipe, Haiti, 18 de agosto de 2004
© AFP 2023 / Vanderlei Almeida
"Não há dúvidas de que os oficiais que conduzem operações no exterior tendem a se projetar profissionalmente. E está evidente que um oficial como o general mencionado buscou protagonismo político antes e depois de atuar no Haiti", disse Domingues Neto, cujo livro "Comentários a um Delírio Militarista", publicado pela editora Gabinete de Leitura, será lançado nesta quinta-feira (17), em São Paulo.
Retirada do Brasil das missões de paz
Apesar da ênfase militar do governo Bolsonaro, durante o seu governo a participação do Brasil em missões de paz foi reduzida substancialmente pela primeira vez desde o governo FHC, revelou Aguilar.
"Atualmente não podemos dizer que o Brasil participa ativamente das operações", declarou Aguilar. "A política externa de retração de Bolsonaro pode explicar isso."
Durante a gestão Bolsonaro, o Brasil retirou seu último contingente em operação no âmbito da ONU, abrindo mão do comando da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL). Criada em 1978 para garantir a retirada de tropas israelenses do sudeste do Líbano, a missão passou a contar com o comando brasileiro em 2011.
Em dezembro de 2020, o Brasil se despediu da missão na qual contribuía com uma fragata, que atuava como navio-capitânia, um helicóptero e cerca de 250 militares mobilizados.
© AFP 2023 / Mahmoud ZayyatSoldados da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL) durante treinamento em Naqura, Líbano (foto de arquivo)
Soldados da Força Interina das Nações Unidas no Líbano (UNIFIL) durante treinamento em Naqura, Líbano (foto de arquivo)
© AFP 2023 / Mahmoud Zayyat
De acordo com o jornalista Nelson During, editor-chefe do portal Defesanet, a retirada do Brasil da UNIFIL atendeu ao pedido do então primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, realizado durante conversa telefônica com o presidente Bolsonaro em agosto de 2019.
Aguilar lembra, no entanto, que a retração brasileira começou ainda no governo Temer, quando o Brasil recusou convite da ONU para participar da Missão Multidimensional das Nações Unidas para a Estabilização da República Centro-Africana (MINUSCA).
© AFP 2023 / MARCO LONGARISoldados burundianos da MINUSCA na República Centro-Africana em dezembro de 2015
Soldados burundianos da MINUSCA na República Centro-Africana em dezembro de 2015
© AFP 2023 / MARCO LONGARI
A Secretaria-Geral da ONU oficializou o convite ao Brasil em dezembro de 2017, solicitando o envio de cerca de 750 militares. De acordo com relatório do IPEA, os principais motivos para declinar a participação foram a intervenção federal das Forças Armadas no Rio de Janeiro e o envio de militares a Roraima, para lidar com a chegada de refugiados da Venezuela.
Governo Lula 3 e operações de paz
Apesar de ter capitaneado o maior aumento na participação de brasileiros em missões de paz na ONU, ainda não está claro se o governo Lula 3 apoiará esse tipo de iniciativa.
"Sim, podemos novamente engajar o país em questões-chave da política internacional, o que envolve também participar com tropas em operações de paz", acredita Aguilar.
O analista lembra que a volta dependerá em grande parte do orçamento federal, do apoio do Congresso Nacional e de "como o novo governo vai lidar com os militares, por conta do que ocorreu no país nos últimos quatro anos".
© AP Photo / Ariana CubillosAugusto Heleno participa evento no Haiti, em 2005.
Augusto Heleno participa evento no Haiti, em 2005.
© AP Photo / Ariana Cubillos
Já Manuel Domingues discorda, alertando que o novo contexto geopolítico trouxe desafios inéditos, que colocaram a participação em operações de paz da ONU em segundo plano.
"Há outras prioridades. As Forças Armadas têm que se preocupar com os anúncios de conflagração decorrentes das disputas pela hegemonia na ordem internacional", concluiu Domingues.
O atraso na nomeação da equipe de Defesa e Inteligência para o gabinete de transição aponta que as decisões do governo Lula 3 nesta seara serão diligentes. O mesmo deve ocorrer com o processo de retorno do Brasil às missões de paz da ONU.