América do Sul vai resistir às pressões para abandonar neutralidade na Ucrânia? Analistas debatem
07:22 03.02.2023 (atualizado: 07:27 03.02.2023)
© AP Photo / Gustavo GarelloPresidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, ao centro, e o presidente da Argentina, Alberto Fernandez, posam para fotos durante a Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) em Buenos Aires, Argentina, 24 de janeiro de 2023
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Brasil, Argentina, México e Colômbia recusaram o envio de equipamento militar à Ucrânia, marcando a posição latino-americana em relação ao conflito. A Sputnik Brasil conversou com especialistas para saber se a região vai conseguir resistir às pressões do Ocidente para abandonar a neutralidade.
Na última semana, Brasil e Argentina reafirmaram suas decisões de não fornecer equipamentos bélicos que sejam destinados a uso no conflito ucraniano para países parceiros.
Durante visita do chanceler alemão, Olaf Scholz, o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, declarou que o Brasil é um país de paz, que não tem a intenção de se envolver no conflito na Ucrânia.
"O Brasil é um país de paz e não quer ter nenhuma participação, ainda que seja indireta", disse o presidente brasileiro durante conferência de imprensa com seu colega alemão.
Poucos dias antes, o chanceler alemão esteve em Buenos Aires, onde também ouviu uma negativa do colega argentino sobre o fornecimento de materiais bélicos para a Ucrânia.
© Foto / Palácio do Planalto / Ricardo Stuckert / CC BY 2.0Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se encontra com chanceler alemão Olaf Scholz em Brasília. 30 de janeiro de 2022
Presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se encontra com chanceler alemão Olaf Scholz em Brasília. 30 de janeiro de 2022
© Foto / Palácio do Planalto / Ricardo Stuckert / CC BY 2.0
"A Argentina e a América Latina não estão pensando em mandar armamentos, nem pra Ucrânia, nem para nenhum outro local em conflito", disse o presidente argentino, Alberto Fernández, após reunião com Olaf Scholz.
De fato, além de Brasil e Argentina, México e Colômbia também rejeitaram pedidos de fornecimentos de armamentos para o teatro de guerra ucraniano. No final de janeiro, a chefe do Comando Sul, Laura Richardson, solicitou que países da região transferissem armamentos de origem russa ou soviética para seu aliado em Kiev.
© AP Photo / Jose Luis MaganaA general norte-americana Laura Richardson, chefe do Comando Sul do Exército dos EUA, fala diante de um comitê Senado, em Washington, 24 de março de 2022
A general norte-americana Laura Richardson, chefe do Comando Sul do Exército dos EUA, fala diante de um comitê Senado, em Washington, 24 de março de 2022
© AP Photo / Jose Luis Magana
"Eu disse a ela que nossa Constituição tem a paz como ordem no cenário internacional", disse o presidente colombiano, Gustavo Petro, sobre a proposta da chefe do Comando Sul dos EUA. "A Colômbia não entregará armas russas para que sejam enviadas para a Ucrânia a fim de dar seguimento a uma guerra."
De acordo com o professor de Relações Internacionais da UERJ, Paulo Velasco, nem todos os países latino-americanos adotam a mesma posição sobre o conflito ucraniano.
"O Chile tem uma posição completamente diferente da brasileira, e noto que estamos falando de dois governos de esquerda", disse Velasco à Sputnik Brasil. "O [presidente chileno Gabriel] Boric se permite críticas muito mais enfáticas à Rússia, seguindo as posições do Ocidente de maneira mais ampla."
Apesar do caso chileno, o posicionamento brasileiro sobre o conflito pode servir como diretriz e exemplo para os demais países da região.
"A Argentina está adotando uma posição de maior coerência com o seu principal vizinho, que é o Brasil", acredita Velasco. "Se o grande vizinho da Argentina entende que o caminho é de equilíbrio e de tentar manter uma postura de maior ponderação e equidistância, a Argentina deveria seguir algo semelhante."
© AP Photo / Natacha PisarenkoO chanceler alemão, Olaf Scholz, e o presidente da Argentina, Alberto Fernández, em coletiva de imprensa em Buenos Aires. Argentina, 28 de janeiro de 2023
O chanceler alemão, Olaf Scholz, e o presidente da Argentina, Alberto Fernández, em coletiva de imprensa em Buenos Aires. Argentina, 28 de janeiro de 2023
© AP Photo / Natacha Pisarenko
O especialista lembra que, ao contrário do Brasil, a posição de neutralidade em relação a conflitos internacionais não é um traço da tradição diplomática da Argentina.
"A Argentina já se envolveu mais diretamente em conflitos internacionais no passado recente, principalmente em casos como o da Guerra do Golfo, quando ela enviou um navio de guerra para o golfo Pérsico, o que o BR não fez", disse Velasco, lembrando que essa operação tinha o amparo das Nações Unidas.
Posição unificada da América do Sul?
A posição de neutralidade dos países da região não é bem vista por parceiros ocidentais, que devem exercer pressão para modificá-la.
"Existe muita pressão para que os governos mudem a sua posição. Recentemente, a África do Sul precisou reafirmar sua posição de neutralidade reiteradamente, diante da pressão para não realizar exercícios militares com Rússia e China", disse a pós-doutoranda da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Isabela Gama, à Sputnik Brasil.
Nesse cenário, os países sul-americanos poderiam defender seu posicionamento de maneira mais eficiente, caso estivessem unidos. No entanto, atualmente a região não conta com um mecanismo de diálogo regional robusto sobre segurança internacional.
"O que temos atualmente é um mecanismo muito frágil, que é o Grupo de Trabalho em Defesa no âmbito do PROSUL, uma iniciativa [...] criada para substituir a UNASUL, que era vista pelos governos de direita como um espaço contaminado ideologicamente", explicou Velasco.
© Foto / Marcos Corrêa/PRO presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e mais 6 presidentes sul-americanos assinam a Declaração de Santiago, que marca o início do processo de criação do Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul).
O presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, e mais 6 presidentes sul-americanos assinam a Declaração de Santiago, que marca o início do processo de criação do Fórum para o Progresso da América do Sul (Prosul).
© Foto / Marcos Corrêa/PR
Segundo ele, o mecanismo não se reúne com frequência, tem "pouca capacidade de ação efetiva", e não cumpriu a sua função de substituir o Conselho de Defesa da UNASUL "que tinha robustez institucional significativa".
A região ainda poderia contar com mecanismos continentais, como o Tratado Interamericano de Assistência Recíproca e a Junta Interamericana da Defesa, no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA).
"Esses mecanismos foram criados na década de 40, mas ainda estão em vigor", considerou Velasco. "O problema é que os EUA sentam na cabeceira da mesa, o que cria constrangimento para as partes."
Nesse caso, os países da América do Sul poderiam utilizar o Mercosul como uma plataforma para debater temas de segurança internacional.
"Podemos reconhecer que hoje em dia o Mercosul alcança toda a América do Sul, seja em membros sócios e membros associados", considerou Velasco. "Então é um espaço adequando para debater temas vinculados à segurança regional e defesa, como crimes transnacionais, cooperação policial, controle migratório e de fronteiras."
Apesar do Mercosul oferecer uma solução temporária, Velasco acredita que o ideal seria retomar o diálogo em mecanismos mais consistentes, como o Conselho de Defesa da UNASUL.
"O problema é que não será tão simples assim resgatar a UNASUL", declarou Velasco. "Precisaremos negociar um novo tratado constitutivo […] e reconhecer que lançar uma organização internacional não é algo trivial."
Para o especialista, "não está claro se teremos fôlego para tanto em tão pouco tempo. Mas empenho do governo brasileiro terá, e acho que Lula vai correr atrás disso sim", concluiu Velasco.
© Folhapress / Johis AlarcónSede da UNASUL, em Quito: países da região não puderam chegar a um consenso em relação à participação da Venezuela na organização, levando a sua paralisação
Sede da UNASUL, em Quito: países da região não puderam chegar a um consenso em relação à participação da Venezuela na organização, levando a sua paralisação
© Folhapress / Johis Alarcón
Nas últimas semanas, Brasil, Argentina, Colômbia e México refutaram publicamente pedidos de países da Organização do Tratado do Atlântico Norte para a realização de transferência de material bélico para apoiar o esforço de guerra da Ucrânia. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu a posição de neutralidade brasileira e recusou o pedido de envio de munição do tanque Leopard 1 à Alemanha.