Acordo do teto da dívida não significa que a economia dos EUA está fora de perigo, diz especialista
© AP Photo / Mark LennihanNotas de dólar são depositadas em uma caixa de depósito em Nova York, 24 de maio de 2021
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Após acalorados debates, o presidente dos EUA, Joe Biden, e o presidente da Câmara, o republicano Kevin McCarthy, chegaram a um acordo final para suspender o limite de dívida de US$ 31,4 trilhões (cerca de R$ 157,6 trilhões) até 1º de janeiro de 2025. O que está no acordo e como isso vai afetar a economia dos EUA?
"Este acordo não me surpreende, pois um calote da dívida do governo dos EUA daria origem a uma grande crise financeira em toda a economia global", disse o professor de macroeconomia e economia monetária da Universidade de Friburgo, na Suíça, Sergio Rossi, à Sputnik. "Nem os democratas nem os republicanos nos Estados Unidos poderiam permitir que tal situação ocorresse. Portanto, era certo que um acordo entre eles seria anunciado em breve, de modo que o teto da dívida seria suspenso ou aumentado novamente."
Rossi explicou que suspender o teto da dívida por dois anos nos Estados Unidos significa que o governo federal norte-americano não deve respeitar esse teto durante esse período, embora isso não signifique que não haja restrição orçamentária para a Casa Branca.
"Significa simplesmente que o Federal Reserve [Fed] dos EUA, ou seja, o banco central nacional, financiará qualquer dívida pública futura com intervenções de política monetária, continuando a comprar títulos do governo americano no mercado primário, onde esses títulos são emitidos pelo governo federal dos EUA com diferentes vencimentos, para financiar seus déficits fiscais em 2023 e 2024", afirmou. "Essa monetização da dívida pública é possível pelo fato de o dólar americano ser uma das principais moedas de referência na economia global, onde uma parte importante do comércio exterior e das transações financeiras é denominada nessa moeda."
O que há no acordo?
O acordo atende a uma série de exigências dos republicanos. Primeiro, os gastos não relacionados à defesa foram limitados a cerca de US$ 637 bilhões (cerca de R$ 4 trilhões), o que significa que vão permanecer no mesmo nível do ano anterior.
Em segundo lugar, uma parcela de US$ 1,39 bilhão (cerca de R$ 7 bilhões) de um pacote impressionante de US$ 80 bilhões (aproximadamente R$ 401,5 bilhões) para a Receita Federal dos EUA (IRS, na sigla em inglês) sob a Lei de Redução da Inflação também vai ser cortada; um adicional de US$ 20 bilhões (mais de R$ 100,3 bilhões) em dotações de financiamento para a agência vai ser reaproveitado durante 2024 e 2025.
Em terceiro lugar, cerca de US$ 35 bilhões (cerca de R$ 175,7 bilhões) em fundos de ajuda ao combate à COVID-19 não gastos vão ser rescindidos, enquanto US$ 400 milhões (aproximadamente R$ 2 bilhões) vão ser cortados do fundo global de saúde dos Centros de Controle de Doenças (CDC, na sigla em inglês). O seguro de saúde Medicaid não deve sofrer alterações.
Quarto, o programa de cancelamento de empréstimos estudantis de Biden vai permanecer intacto, mas, mesmo assim, vai ser levado à Suprema Corte para exame mais aprofundado.
Quinto, o acordo restringe os requisitos para receber o Programa de Assistência Nutricional Suplementar (SNAP, na sigla em inglês), comumente conhecido como "vale-refeição" e Assistência Temporária para Famílias Necessitadas (TANF, na sigla em inglês). Enquanto famílias com filhos, moradores de rua e veteranos não vão ter mudanças nos programas, solteiros sem filhos até 54 anos vão ter que cumprir requisitos mais rígidos para continuar recebendo o auxílio e prazos mais curtos para obtê-lo.
Em sexto lugar, os gastos com defesa da nação vão ter um aumento de aproximadamente 3,5%, no entanto. Assim, o Pentágono deve receber US$ 886 bilhões (aproximadamente R$ 4,4 trilhões) no ano fiscal de 2024.
O acordo recebeu críticas bipartidárias. Os republicanos argumentaram que o acordo Biden-McCarthy não atendeu aos requisitos da Lei Limite, Economize, Cresça, aprovada pelo Partido Republicano da Câmara no início deste ano. Os democratas e o Caucus da Câmara Progressista, de 100 membros, se irritaram com os cortes de gastos sociais.
"Ninguém conseguiu tudo o que desejava. Mas essa é a responsabilidade de governar", disse Biden a repórteres no domingo (28). "Isso tira a ameaça de calote catastrófico da mesa." O acordo segue agora para a Câmara e para o Senado.
Equipe Biden ainda não conseguiu evitar a recessão
Apesar de o acordo do teto da dívida descartar um cenário de calote iminente para os EUA, isso não significa que a economia norte-americana esteja fora de perigo, continuou o professor.
"As perspectivas para a economia dos EUA não são animadoras para empresas e investidores, por causa de uma série de questões em aberto que ainda precisam ser abordadas e resolvidas, tanto em termos econômicos quanto geopolíticos", disse Rossi. "A economia doméstica vem sofrendo desde a crise de crédito de 2006, que se tornou uma crise financeira global em 2008 após o colapso do banco de investimentos americano Lehman Brothers. Além disso, a crise da pandemia de COVID-19 também afetou negativamente a economia doméstica e global, ambos estão sofrendo atualmente com uma crise de energia."
O economista considera que "o sistema financeiro norte-americano é altamente frágil e instável, sobretudo no que se refere aos bancos de médio porte que têm um volume crescente de crédito não performado, fruto da falência recente de alguns bancos regionais". Ele se referiu à última aquisição de três bancos regionais dos EUA pelo governo. O colapso dos bancos gerou preocupações sobre um potencial efeito dominó, com estudos afirmando que pelo menos 200 credores dos EUA estão agora sob risco.
Rossi projeta que tanto a economia real quanto o setor financeiro dos EUA vão poder, em breve, experimentar um "período de estagflação, senão recessão, associado a diferentes aumentos no nível de preços ao consumidor". Essa situação é exacerbada pelas tensões geopolíticas na Europa e uma disputa EUA-China sobre Taiwan, alimentada pelo governo Biden.
Outro fator preocupante é a desdolarização, que está ganhando ritmo gradativamente. Mesmo que isso não signifique um colapso iminente do dólar, a tendência mostra que o papel do dólar americano como moeda de reserva dominante está diminuindo. Isso limitará consideravelmente o espaço de manobra de Washington.
"O governo Biden ainda não conseguiu evitar uma recessão", alertou Rossi. "Ele conseguiu até agora evitar que uma grande crise bancária ocorra nos Estados Unidos, afetando também a economia global, mas o pior ainda está por vir, principalmente no que diz respeito às famílias que vão perder seus subsídios por causa de decisões do governo dos EUA de cortar vários benefícios sociais e créditos fiscais para energias limpas. Com isso, a espiral negativa que já existe como resultado de diferentes questões econômicas e financeiras vai se agravar. Há também uma questão importante em relação ao comércio exterior e finanças fluxos, que serão muito reduzidos pela desdolarização em curso por um número crescente de países, tanto na Ásia quanto na América Latina."