Exército quer se alinhar a Lula ao convidar latino-americanos para exercício militar, diz analista
09:38 21.07.2023 (atualizado: 12:40 21.07.2023)
© Foto / Marcelo Camargo/Agência BrasilO comandante do Exército, general Tomás Paiva, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante cerimônia comemorativa do Dia do Exército, no Quartel-General do Exército, em Brasília, 19 de abril de 2023
© Foto / Marcelo Camargo/Agência Brasil
Nos siga no
Especiais
Exército Brasileiro anuncia a realização de exercícios militares no Paraná com a presença de EUA, Nicarágua e Venezuela. A Sputnik Brasil conversou com especialistas para saber por que o Brasil quer aglutinar países com características tão diferentes sob um único guarda-chuva dentro do seu território nacional.
No início de agosto, o Exército Brasileiro comandará exercícios militares conjuntos com países do continente americano, incluindo Estados Unidos, Nicarágua e Venezuela. A chamada Operação Paraná III será realizada no âmbito da Conferência dos Exércitos Americanos (CEA), que está sob a presidência brasileira no biênio 2022-2023.
Os exercícios serão realizados em Foz do Iguaçu, no Paraná, e consistirão em simulação viva de realização de ajuda humanitária, informou o Exército Brasileiro por meio de seu Centro de Comunicação Social.
O evento contará com a participação de especialistas de 16 países das três Américas, mas somente sete deles realizarão envio de tropas: Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Uruguai e EUA.
A realização dos exercícios é resultado de uma iniciativa do Brasil, que busca retomar papel relevante nos assuntos hemisféricos.
"Este é um gesto importante por parte do comandante do Exército Brasileiro Tomás Ribeiro Paiva, que busca se alinhar a agenda internacional do governo", disse a professora do curso de Defesa e Gestão Estratégica Internacional da UFRJ, Adriana Marques, à Sputnik Brasil.
Segundo ela, as Forças Armadas buscam reconstruir as relações com o governo, esgarçadas desde os ocorridos de 8 de janeiro.
© AP Photo / Eraldo PeresManifestantes bolsonaristas sentam em frente a agentes do Exército no Palácio do Planalto em meio à invasão de prédios públicos na capital brasileira, Brasília, 8 de janeiro de 2023
Manifestantes bolsonaristas sentam em frente a agentes do Exército no Palácio do Planalto em meio à invasão de prédios públicos na capital brasileira, Brasília, 8 de janeiro de 2023
© AP Photo / Eraldo Peres
"As Forças Armadas são bastante capazes de se adaptar, então a relação com o governo tem tudo para ser reconstruída no curto a médio prazo", considerou a professora.
A especialista lembra que, desde a presidência de Michel Temer (2016-2018), as Forças Armadas brasileiras receberam carta branca para conduzir uma política externa própria, que difere daquela proposta pelo presidente Lula e seu assessor internacional, Celso Amorim.
"Os militares brasileiros sempre terão como foco a cooperação com os EUA e Europa Ocidental, considerados os países do 'Arco do Conhecimento'", explicou Marques. "Os militares precisam de um incentivo político para cooperar com a América Latina, como é o caso agora."
O fato da Operação Paraná III reunir países com orientações ideológicas distintas não interfere na sua eficácia, acredita a especialista.
"Os países participam desses exercícios até para colher dados sobre seus vizinhos. É necessário compreender como os cenários [de guerra] estão sendo construídos. Se o país fica de fora, vai abrir mão destas informações preciosas", considerou Marques.
A Conferência dos Exércitos Americanos
A Conferência dos Exércitos Americanos (CEA) é uma organização militar que reúne todos os países soberanos do continente americano, à exceção de Cuba. Criada em 1960, no âmbito da Guerra Fria, a instituição tinha como objetivo repelir grupos comunistas da política hemisférica.
"Historicamente, a CEA sempre teve duas faces, assim como o médico e o monstro", disse o analista e consultor militar Pedro Paulo Resende à Sputnik Brasil. "O lado médico é de troca de informações sobre tática e estratégia. O lado monstro era conter o comunismo na América Latina, a partir de iniciativas como a Operação Condor."
Implementada em 1975 pelas ditaduras militares então no poder na América do Sul, a Operação Condor consistiu em uma série de operações de inteligência comandadas pelos EUA para eliminar opositores, dissidentes, líderes sindicais e camponeses no Cone Sul.
© Foto / Schumaker, Byron E. / Arquivos Nacionais dos EUAO ex-presidente Emílio Garrastazu Médici ao lado do ex-presidente norte-americano Richard Nixon, em visita à Casa Branca, em 7 de dezembro de 1971, em Washington, EUA
O ex-presidente Emílio Garrastazu Médici ao lado do ex-presidente norte-americano Richard Nixon, em visita à Casa Branca, em 7 de dezembro de 1971, em Washington, EUA
Atualmente, a CEA centra seus esforços em preparar os exércitos do continente para operações de combate ao narcotráfico e reagir a cenários de forte instabilidade política. Durante a Operação Paraná III, o cenário será um país fictício localizado na América do Sul, sujeito a turbulências político-econômicas e catástrofes naturais.
"Há risco sério de anomia política na América Latina, em função do crime organizado, que são derivados dos esquadrões da morte financiados pelos EUA na nossa região", explicou Resende.
Segundo o analista, o poder instituído de países como o Haiti já vem sendo ameaçado pelo crime organizado, o que seria equivalente às organizações criminosas "Primeiro Comando da Capital (PCC) ou Comando Vermelho resolvessem tomar o poder no Brasil".
© FolhapressAtaque do PCC (Primeiro Comando da Capital): marca de bala disparada contra agência bancária no Morumbi, em São Paulo, em 9 de agosto de 2006
Ataque do PCC (Primeiro Comando da Capital): marca de bala disparada contra agência bancária no Morumbi, em São Paulo, em 9 de agosto de 2006
Apesar dos exercícios coordenados pelo Brasil utilizarem a América do Sul como palco, os países da América Central são os mais vulneráveis a esse tipo de ameaça.
"Esse tipo de cenário é de fato relevante para a América Central. Mas os EUA ainda não perceberam que a única solução para esse problema é o desenvolvimento econômico regional", avaliou Resende.
Os EUA têm interesse em controlar o abundante fluxo migratório advindo de países da região, com destaque para Honduras, El Salvador e Guatemala, segundo dados coletados pelo Instituto para Política Migratória, sediado em Washington.
No entanto, Nicarágua é o país que tem dominado as manchetes em função de sua participação na Operação Paraná III. Em materiais como o publicado pela revista Veja, há questionamento sobre a legitimidade de realizar exercícios com um país cujas credenciais democráticas são questionadas por grupos políticos regionais.
© AP Photo / Andres NunesUm homem passa por um mural do presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, durante as eleições gerais em Manágua, no dia 7 de novembro de 2021
Um homem passa por um mural do presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, durante as eleições gerais em Manágua, no dia 7 de novembro de 2021
© AP Photo / Andres Nunes
"Apesar do foco midiático na Nicarágua, esse país não é o maior problema quando o assunto é migração para os EUA, muito pelo contrário", relatou Resende. "Podemos criticar algumas decisões da liderança nicaraguense, mas esse é um dos poucos países com uma situação um pouco mais estável na América Central, ao lado de Panamá e Costa Rica."
Segundo os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil, a participação da Nicarágua nos exercícios não é inédita, tampouco deveria surpreender os analistas mais atentos.
"Por incrível que pareça, a cooperação de defesa entre as Forças Armadas do nosso continente muitas vezes se dá de forma mais amigável do que quando o assunto é política ou economia", concluiu a professora da UFRJ, Adriana Marques.
A Operação Paraná III está prevista para ser realizada no início de agosto, no município de Foz do Iguaçu (PR). Esta será a segunda fase dos exercícios, realizados pela primeira vez em 2022 no município de Cascavel (PR), que contou com a presença de 12 exércitos latino-americanos.