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'Não sei de onde ele tirou isso': especialistas derrubam mitos de influenciador pró-Kiev no Brasil

© AP Photo / Efrem LukatskyO presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, durante conferência de imprensa com o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg
O presidente da Ucrânia, Vladimir Zelensky, durante conferência de imprensa com o secretário-geral da OTAN, Jens Stoltenberg - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
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As derrotas das Forças Armadas da Ucrânia no campo de batalha não impedem uma nova ofensiva no campo informacional. A Sputnik Brasil conversou com especialistas para derrubar mitos propagados por combatentes informacionais pró-Kiev atuando na podosfera brasileira.
Nesta quarta-feira (26), o jornal The New York Times anunciou o início de mais uma fase da contraofensiva ucraniana, focada na região de Zaporozhie. Os ataques, perpetrados por unidades treinadas pela OTAN, não surtiram os efeitos desejados, conforme informou o Ministério da Defesa da Rússia e a redação do jornal norte-americano.
Os revezes das Forças Armadas da Ucrânia no terreno, no entanto, não impedem novas ofensivas no front da guerra informacional. Nas últimas semanas, novos influenciadores e autoproclamados especialistas militares pró-Kiev fizeram investidas na podosfera brasileira, a fim de impulsionar narrativa anti-Rússia no país.
Um dos combatentes informacionais a serviço de Kiev é o instrutor de tiro João Bercle Gonçalves, que coleciona participação em canais do YouTube para relatar sua suposta experiência como combatente no front ucraniano.
Durante suas longas exposições, que chegam a durar sete horas, o instrutor de tiro – que se considera um "operador militar internacional" – passa informações duvidosas, cai em contradições e comete erros crassos de análise e geografia.

Zelensky ligou para Putin para evitar o início da operação russa em fevereiro de 2022?

O combatente informacional João Bercle Gonçalves alegou em uma de suas exposições que o líder ucraniano, Vladimir Zelensky, tentou negociar com seu homólogo russo, Vladimir Putin, para evitar o início da operação russa em fevereiro de 2022.
© AP Photo / Ian LangsdonVladimir Zelensky (à esquerda), presidente da Ucrânia, e Vladimir Putin (à direita), presidente da Rússia, chegam a sessão de trabalho no Palácio do Eliseu, em Paris, em 9 de dezembro de 2019
Vladimir Zelensky (à esquerda), presidente da Ucrânia, e Vladimir Putin (à direita), presidente da Rússia, chegam a sessão de trabalho no Palácio do Eliseu, em Paris, em 9 de dezembro de 2019 - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
Vladimir Zelensky (à esquerda), presidente da Ucrânia, e Vladimir Putin (à direita), presidente da Rússia, chegam a sessão de trabalho no Palácio do Eliseu, em Paris, em 9 de dezembro de 2019
No entanto, as negociações que antecederam o agravamento do conflito datam de dezembro de 2021, e foram conduzidas entre a Rússia, EUA e potências europeias, e não diretamente com a Ucrânia.
"É possível que o conflito pudesse ter sido evitado por vias diplomáticas. No entanto, não foi isso que ocorreu, graças à atuação do bloco atlântico e da própria Ucrânia em recusar o diálogo e um compromisso com a Rússia", disse o especialista em Rússia do Núcleo Avançado de Avaliação de Conjuntura (NAC) da Escola de Guerra Naval (ESG) Pérsio Glória de Paula à Sputnik Brasil.
As propostas colocadas pela Rússia em 2021 para evitar o confronto "abarcavam questões de natureza política, geopolítica e geoestratégica", como a garantia de não expansão da OTAN e a proibição da alocação de mísseis estratégicos de curto e médio alcance na Europa.
© Sputnik / Serviço de imprensa do Ministério das Relações Exteriores da RússiaSergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, durante encontro com Miguel Díaz-Canel, presidente de Cuba, em Havana. Cuba, 20 de abril de 2023
Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, durante encontro com Miguel Díaz-Canel, presidente de Cuba, em Havana. Cuba, 20 de abril de 2023 - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
Sergei Lavrov, ministro das Relações Exteriores da Rússia, durante encontro com Miguel Díaz-Canel, presidente de Cuba, em Havana. Cuba, 20 de abril de 2023
"Ou seja, as propostas russas envolviam um compromisso com o Ocidente, entendido pelos russos como o patrono do regime ucraniano, e não com a Ucrânia em si", esclareceu Glória de Paula. "Os EUA e oficiais da OTAN afirmaram que as demandas russas eram inaceitáveis e que pretendiam fornecer a Kiev os meios necessários para resistir."
Além disso, "os russos já haviam manifestado desconfiança em relação às autoridades ucranianas, que violaram tratados anteriores", como os Acordos de Minsk, assinados para solucionar o impasse em relação à administração da região do Donbass.
© AP Photo / Alexnder ZemlianichenkoLíderes da Rússia, Alemanha, França e Ucrânia se reuniram em Minsk
Líderes da Rússia, Alemanha, França e Ucrânia se reuniram em Minsk  - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
Líderes da Rússia, Alemanha, França e Ucrânia se reuniram em Minsk
"A Ucrânia e o próprio Zelensky poderiam ter promovido políticas concretas e sinais diplomáticos como uma proposta de emenda constitucional para garantir a neutralidade do país, a criação de uma zona desmilitarizada nas antigas linhas de contato no Donbass", considerou Glória de Paula. "O governo ucraniano não só não tomou nenhuma medida desse tipo, como também o próprio Zelensky antes do dia 24 de fevereiro havia afirmado que as demandas russas eram um blefe e que continuaria a buscar uma adesão à OTAN."

A expansão da OTAN é uma desculpa usada pela Rússia para realizar a operação?

O combatente informacional João Bercle Gonçalves também expõe o argumento de que a expansão da OTAN não é uma real preocupação da Rússia, mas sim uma desculpa utilizada por Moscou para legitimar o início da operação na Ucrânia. Segundo Gonçalves, "se fosse verdade eles teriam reagido militarmente à entrada de dois novos países na OTAN, que fazem fronteira com a Rússia", ou seja, à adesão da Finlândia e da Suécia.
"Primeiro, sobre as disposições geográficas e históricas: a Suécia não detém fronteiras terrestres com a Rússia, somente marítimas", esclareceu Glória de Paula.
© AP Photo / Olivier MatthysO ministro das Relações Exteriores da Finlândia, Pekka Haavisto (à esquerda), o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Jens Stoltenberg, e a ministra das Relações Exteriores da Suécia, Ann Linde, participam de entrevista coletiva após assinatura de protocolos de adesão à OTAN, na sede da aliança, em Bruxelas, em 5 de julho de 2022
O ministro das Relações Exteriores da Finlândia, Pekka Haavisto (à esquerda), o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Jens Stoltenberg, e a ministra das Relações Exteriores da Suécia, Ann Linde, participam de entrevista coletiva após assinatura de protocolos de adesão à OTAN, na sede da aliança, em Bruxelas, em 5 de julho de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
O ministro das Relações Exteriores da Finlândia, Pekka Haavisto (à esquerda), o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Jens Stoltenberg, e a ministra das Relações Exteriores da Suécia, Ann Linde, participam de entrevista coletiva após assinatura de protocolos de adesão à OTAN, na sede da aliança, em Bruxelas, em 5 de julho de 2022
Para o especialista, essa argumentação "ignora as diferenças básicas nos campos da geopolítica, geoestratégia, e até mesmo as distinções nas relações históricas, sociais e culturais, entre a Ucrânia, a Finlândia e a Suécia".
"A Finlândia e a Suécia eram países neutros durante a Guerra Fria, mas, no decorrer da década de 1990 e até hoje, ambos os países engendraram uma série de programas de cooperação com a OTAN", notou Glória de Paula. "Portanto, na perspectiva russa, Finlândia e Suécia já eram membros de fato do bloco ocidental."
As condições climáticas, geográficas e populacionais da Finlândia reduzem sua capacidade de constituir uma ameaça real a Moscou. Caso a Finlândia seja utilizada pela OTAN como ponta de lança para um ataque, "seria necessária uma extensa operação anfíbia no mar Báltico".
© Sputnik / Sergei Guneev / Acessar o banco de imagensExercícios das frotas do Báltico e do Norte, da Marinha russa
Exercícios das frotas do Báltico e do Norte, da Marinha russa - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
Exercícios das frotas do Báltico e do Norte, da Marinha russa
"Já a Ucrânia é um país com mais de 40 milhões de habitantes [...] atravessado pelas estepes eurasiáticas, que foram utilizadas diversas vezes em incursões militares contra a Rússia", lembrou Glória de Paula. "Essa foi a principal rota de incursão não só do Exército nazista na Segunda Guerra Mundial, mas também das tropas napoleônicas e até mesmo das hordas mongóis."
Além disso, "as fronteiras ucranianas são adjacentes ao núcleo geopolítico russo: a região que abriga a maior parte da população, as indústrias e os centros de decisão do país".
© Sputnik / Vitaly Timkiv / Acessar o banco de imagensPetroleiros atracados no terminal de petróleo na região de Krasnodar
Petroleiros atracados no terminal de petróleo na região de Krasnodar - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
Petroleiros atracados no terminal de petróleo na região de Krasnodar
"Com a Ucrânia em uma aliança hostil, esse núcleo estaria vulnerável não só a ataques convencionais, mas também à possível alocação de armamentos estratégicos no território ucraniano, que mudariam drasticamente a estabilidade nuclear entre Rússia e EUA, por exemplo", disse o especialista.

A Rússia precisa da Transnístria para ter capacidade de dissuasão contra a Europa?

Outra suposição geopolítica feita por João Gonçalves em suas exposições on-line é a de que o real objetivo da Rússia no conflito é ocupar diretamente o território da Transnístria, localizado entre a Ucrânia e a Moldávia. A posse definitiva desse território garantiria a capacidade russa de atacar "qualquer país da Europa".
De acordo com Glória de Paula, esse argumento é incorreto, uma vez que o arsenal de mísseis de curto, médio e longo alcance da Rússia já garante ao país euroasiático "um alcance praticamente global".
© Sputnik / Ministério da Defesa da Federação da Rússia / Acessar o banco de imagensO momento em que os militares russos se preparam para o lançamento do novíssimo míssil Avangard
O momento em que os militares russos se preparam para o lançamento do novíssimo míssil Avangard - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
O momento em que os militares russos se preparam para o lançamento do novíssimo míssil Avangard
"Além disso, se fosse necessário alvejar a Europa com mísseis de curto alcance ou mísseis intermediários, isso poderia ser feito com o posicionamento dessas armas em Kaliningrado, um 'exclave russo' que faz fronteira com a Polônia, excluindo qualquer necessidade de ocupação da Transnístria para essa tarefa", notou Glória de Paula.

A Ucrânia abateu mísseis hipersônicos russos Kinzhal, que já não constituem uma ameaça?

O instrutor de tiro João Gonçalves também afirmou que as Forças Armadas ucranianas foram capazes de "abater oito mísseis [hipersônicos russos] Kinzhal ao mesmo tempo", supostamente provando que essas armas seriam ineficazes no campo de batalha. A cifra citada por Gonçalves, por sua vez, não condiz nem com as estimativas da Ucrânia, que citou seis unidades, nem com as do Pentágono, que citou a derrubada de uma unidade.
A verdade, no entanto, é que nenhum míssil Kinzhal foi abatido pelas Forças Armadas ucranianas, cujo sistema de vigilância tem dificuldade em detectar os seus lançamentos. Em 10 de maio de 2023, a Ucrânia apresentou destroços de um míssil à imprensa internacional, alegando serem partes do suposto Kinzhal abatido. De acordo com especialistas militares e combatentes ouvidos pelo jornal russo Izvestia, os destroços são realmente de mísseis russos, mas não de Kinzhals.
© Sputnik / Yevgeny BiyatovCaça russo MiG-31 armado com o míssil hipersônico Kinzhal
Caça russo MiG-31 armado com o míssil hipersônico Kinzhal - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
Caça russo MiG-31 armado com o míssil hipersônico Kinzhal
De acordo com o ministro da Defesa da Rússia, Sergei Shoigu, a Ucrânia "confunde o tipo de mísseis o tempo todo, e é por isso que eles erram" as tentativas de interceptação.
"Eu já disse isso antes e vou repetir novamente: não lançamos tantos mísseis Kinzhal quanto eles 'supostamente' derrubam em suas declarações todas as vezes", afirmou Shoigu.

Ucranianos lutam contra a Rússia para evitar um novo Holodomor?

Outro argumento que o instrutor de tiro pró-Kiev propaga nas redes sociais brasileiras é que a Ucrânia estaria lutando contra a Rússia para evitar um novo Holodomor. O Holodomor é um termo que se refere à grave fome ocorrida entre 1932 e 1933 na antiga União Soviética.

"O tema do Holodomor se tornou central na mitologia nacional ucraniana. A ideia é que a fome de 1932-1933 teria sido uma tentativa deliberada, planejada e implementada pelo governo soviético para matar a população ucraniana", disse o historiador especialista no período soviético Rodrigo Ianhez à Sputnik Brasil.

Segundo ele, "não há nenhuma evidência de que a fome de 32-33 tenha sido planejada, tampouco materialidade sobre os motivos que levariam os bolcheviques a empreender uma política de genocídio contra a Ucrânia".
Além disso, os ucranianos não foram o único povo afetado por esse terrível período de seca e fome. A crise atingiu também a região do norte do Cáucaso, as margens do rio Volga e territórios atualmente localizados na Polônia, Romênia e Cazaquistão.
© SputnikFoto de arquivo tirada em novembro de 1932 retrata a fome que assolou a Europa do Leste
Foto de arquivo tirada em novembro de 1932 retrata a fome que assolou a Europa do Leste  - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
Foto de arquivo tirada em novembro de 1932 retrata a fome que assolou a Europa do Leste
"Se essa fome foi planejada propositalmente, como é possível que ela tenha extrapolado as fronteiras do governo que supostamente a planejou? Se foi planejada para exterminar ucranianos, por que tantos outros povos também foram atingidos?", indagou Ianhez. "De acordo com os números mais recentes, os cazaques sofreram proporcionalmente ainda mais do que os ucranianos."
Além disso, a cadeia de comando soviética responsável pelo trato da crise não era majoritariamente formada por russos étnicos.

"Estamos aqui falando de autoridades soviéticas como Josef Stalin, que era georgiano, Lazar Kaganovich, que era judeu ucraniano e Nikita Khruschev, que era ucraniano russo", notou Ianhez. "E a liderança do governo soviético em Kiev da época era composta basicamente por ucranianos."

A disseminação da ideia do Holodomor como uma política deliberada foi particularmente explorada no período da Guerra Fria, para opor as diásporas ucranianas em países como o Canadá ao regime soviético.
© Sputnik / RIA Novosti / Acessar o banco de imagensJosef Stalin em seu escritório
Josef Stalin em seu escritório - Sputnik Brasil, 1920, 28.07.2023
Josef Stalin em seu escritório
"Um dos principais pesquisadores que patrocinou essa ideia foi Robert Conquest, que havia sido membro da inteligência britânica e assessor do presidente norte-americano Ronald Reagan. Ele lançou o primeiro livro de alcance mundial, tratando o Holodomor como uma política genocida, ainda na década de 80", relatou Ianhez.
Anteriormente, o tema do Holodomor havia sido explorado pela Alemanha nazista durante a ocupação da Ucrânia, "para legitimar a narrativa de que estariam libertando o país do jugo soviético".
"O tema é muito polêmico e divide o campo dos historiadores: um grupo atribui responsabilidade total ao governo, e o outro defende que o fator principal era climático, com um grupo de pesquisadores no meio desse espectro, que pesam esses e outros fatores", disse Ianhez.
O debate sobre o tema, no entanto, é dificultado, uma vez que "qualquer pessoa que tente contextualizar a fome de 1932-1933 é imediatamente taxada de negacionista de genocídio".
"Levantar a possibilidade de algo similar acontecer nas condições do mundo atual me parece ser simplesmente uma grande peça de propaganda", lamentou o historiador.
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