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Análise: Marco Legal das Ferrovias traz oportunidade de obter expertise de parceiros do BRICS

© Foto / Divulgação / PPI.Gov.BrTrecho da Ferrovia Norte-Sul. Brasília (DF), 31 de julho de 2019
Trecho da Ferrovia Norte-Sul. Brasília (DF), 31 de julho de 2019 - Sputnik Brasil, 1920, 08.11.2023
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Em entrevista à Sputnik Brasil, especialistas explicam por que o setor ferroviário não se desenvolveu no Brasil e como parceiros do BRICS, como China e Rússia, podem auxiliar o país a expandir sua malha ferroviária.
O novo Marco Legal das Ferrovias promete impulsionar o transporte ferroviário no Brasil. Sancionado no final de 2021, teve alguns dispositivos que foram vetados pelo governo anterior promulgados em outubro. Entre as principais promessas do marco está a desburocratização de investimento de concessionárias nacionais e estrangeiras no setor.
Para um país de dimensões continentais como o Brasil, com uma extensão territorial de 8.510.000 km², o marco pode ser um divisor de águas no que diz respeito à ampliação do transporte ferroviário. Atualmente a malha ferroviária brasileira é de cerca de 31 mil km de extensão, muito inferior à dos Estados Unidos (250 mil km), que tem uma extensão territorial similar à do Brasil, com 9.834.000 km².
A Sputnik Brasil conversou com especialistas para entender como o novo Marco Legal das Ferrovias pode impactar no transporte de cargas e passageiros, e como parceiros do Brasil no BRICS, como China e Rússia, dois exemplos de ampliação da malha ferroviária, poderiam contribuir nesse processo.
Claudio Barbieri da Cunha, professor do Departamento de Engenharia de Transportes da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), explica por que nunca houve no Brasil um forte interesse em ampliar a malha ferroviária.
"Com as dificuldades que o país enfrentou, os governos foram postergando ou deixando de fazer os investimentos que seriam necessários nas ferrovias, tanto para manter a malha atual quanto para ampliar", explica Barbieri.
Ele acrescenta que o investimento em ferrovias é um processo caro, burocrático, que envolve questões ambientais e, por vezes, afetado por fatores eleitorais.

"Um governo, percebendo que não vai conseguir inaugurar um trecho de ferrovia, pode preferir não priorizar ou diminuir investimentos, já que a autoridade no poder não vai se beneficiar politicamente desse investimento. Ou seja, vai ser um benefício para seu sucessor. Então os nossos calendários de investimentos em infraestrutura, que são investimentos pesados, também ficam reféns dessa questão política."

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Questionado sobre a discrepância entre a malha ferroviária brasileira e a americana, Barbieri aponta a característica geográfica dos dois países como fator responsável por essa diferença.

"Nosso território tem apenas uma costa, enquanto o dos EUA tem duas costas. O desenvolvimento do país [EUA] se deu nas duas costas, que precisavam, de alguma forma, ser interligadas para transportar produtos. No nosso caso, a geografia é um pouco diferente. A gente tem as áreas mais a oeste do país menos desenvolvidas, menos populosas. Portanto é mais difícil você construir ferrovias nessa condição."

Ele acrescenta ainda a questão do relevo, que encarece o processo de construção de ferrovias. "O relevo americano é predominantemente plano. Tem as Montanhas Rochosas, que precisam ser vencidas, mas é praticamente plano. O nosso não. Temos uma topografia que exige uma ferrovia com mais investimentos, pontes, viadutos, túneis, [que gera] mais impactos ambientais", explica.
O fato de o Brasil ter se desenvolvido mais nas áreas costeiras também contribuiu para estagnar o investimento em ferrovias. Isso porque os trens praticamente fazem o transporte apenas em um sentido.

"A ferrovia [no Brasil] normalmente tem carga em um sentido só, e pouca carga ou nenhuma carga no outro sentido. Isso faz com que a sua competitividade fique menos atraente em muitos casos. Ou seja, tem muita soja para trazer do Centro-Oeste para os portos do Sudeste, Santos, Paranaguá, por exemplo, e não se tem praticamente nada para levar, os trens voltam vazios. Isso torna o negócio da ferrovia menos atraente do que […] a americana."

Com relação ao novo Marco Legal das Ferrovias, Barbieri afirma que uma das finalidades mais interessantes é a redução da burocracia e das exigências para a construção de trechos de ferrovias para aprimorar as operações de empresas. Ele cita como exemplo o caso da Vale.
"A Vale não ganha dinheiro com a ferrovia. A ferrovia é simplesmente parte de um sistema que colabora para que a Vale consiga vender minério a preço competitivo com os australianos, que estão muito mais perto da Ásia. A empresa ganha dinheiro com o negócio de minério, do qual a ferrovia e os portos fazem parte. O marco legal visa facilitar isso para outras empresas, de outros setores, que têm interesse em construir ferrovias porque têm um negócio para produzir, comercializar, como a celulose, a cana-de-açúcar. Negócios em que não se ganha dinheiro com a ferrovia em si, mas que precisam do meio de transporte para serem mais competitivos."
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Ele acrescenta que o Marco Legal das Ferrovias permite que o governo federal deixe de centralizar decisões que envolvem a exploração de serviços ferroviários, permitindo uma maior atuação de estados e municípios, o que reduz a burocracia.
"O Brasil ainda é muito dependente do transporte rodoviário. Embora o transporte ferroviário seja correspondente apenas a 20% ou 25% do total transportado de cargas no país, se a gente tirar o minério de ferro transportado pela Vale, pela MRS, a quantidade restante é muito pouca. Nós precisamos de mais ferrovias, e esse marco ajuda a desburocratizar a construção de novos trechos, de acordo com interesses econômicos que permitem o melhor aproveitamento da ferrovia."
Nesse contexto, Eduardo Gomes, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Núcleo de Estudos dos Países BRICS (NuBRICS), se mostra mais cético. Em entrevista à Sputnik Brasil, ele afirma que o novo marco legal de fato traz promessas, mas apenas isso.

"Observando a atuação do Senado e do Ministério dos Transportes, o quadro não é nada animador. Por mais que tenhamos consciência de que o Brasil precisa desse tipo de transporte, as esferas decisórias do Legislativo e do Executivo só fazem produzir legislação em cima de legislação, sem qualquer preocupação efetiva em construir um ambiente dinâmico para o estímulo aos investimentos ferroviários", explica Gomes.

Assim como Barbieri, ele sugere o fator eleitoral como um entrave à ampliação da malha ferroviária.

"Veja a Ferrovia Norte-Sul, que levou quatro décadas para ficar pronta. Quando o Senado parece se orgulhar de garantir cinco anos de preferência para as concessionárias já existentes, já vemos que o interesse não é dinamizar ferrovias no Brasil."

Ampliação da malha ferroviária é oportunidade para parceiros do BRICS

Os benefícios da ampliação da malha ferroviária brasileira ultrapassam as fronteiras do Brasil, como afirma Pavel Lavrenthiv Grass, pós-doutorando no Instituto de Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor da empresa de consultoria Tropical BRICS+.
Em entrevista à Sputnik Brasil, ele afirma considerar o novo Marco Legal das Ferrovias "um tema de extrema importância, além de uma questão estratégica para o desenvolvimento do Brasil".
Entre os benefícios que o marco traz, "chama atenção a possibilidade da participação de empresas estrangeiras, principalmente de países parceiros do Brasil no BRICS, com foco especial em Rússia e China".
Pavel afirma que a possibilidade de participação estrangeira em licitações pode atrair o interesse de grandes empresas estatais da Rússia e da China, como a russa RZD, em participar da ampliação da malha ferroviária do Brasil, que, por consequência, pode se beneficiar da transferência de tecnologia.
"Em primeiro lugar, o interesse [de Rússia e China] naturalmente é comercial. Em segundo lugar, há o interesse de expansão dos seus próprios modelos e tecnologias na área de construção de ferrovias e gestão do fluxo ferroviário. Além disso, nós temos toda uma gama de produtos que poderão ser fornecidos ao Brasil, começando pelos próprios trilhos, as locomotivas, o material rodante, os vagões e, claro, a expertise, que por si só é um serviço que tem o seu valor agregado — serviço de manutenção, de instalação, de gestão, isso tudo é muito complexo e deve ser levado em consideração também."
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Pavel destaca que a grande experiência de China e Rússia no setor ferroviário também se dá pelo fato de que os dois países também enfrentaram desafios relativos a características geográficas e de topografia, o que pode ser muito útil ao Brasil.
Ele cita como exemplo regiões de deserto e regiões de amplitude térmica muito alta, como a Sibéria.
"Isso de fato é uma grande experiência. No caso brasileiro, as regiões de florestas têm alta umidade, e tem regiões de montanhas aqui no Sudeste que trazem necessidade de novos túneis e sistemas de engenharia muito complexos. Então seria de grande valia a experiência tanto dos russos como dos chineses para a construção de novas estradas ferroviárias no Brasil."
Sobre a possibilidade de aumentar o escoamento da produção agrícola, Pavel aponta que talvez esse seja um benefício maior para a China.

"A Rússia, hoje em dia, atingiu um nível autossustentável na produção de açúcar, de carnes, de soja, se tornando […] ela própria exportadora desses produtos para outros países, inclusive para a China."

Por fim, o especialista afirma que considera a questão do transporte de passageiros o principal possível benefício do marco, antes mesmo do escoamento de produtos agrícolas.
"Antes de mais nada, é necessário pensar nas ferrovias no Brasil como meio de transporte de passageiros. Nós estamos acostumados a ver o sistema ferroviário, desde o século XIX, como um mero braço logístico dos grandes produtores agrícolas, mas eu gostaria de frisar que é necessário nós mudarmos essa visão", destaca.
Ele acrescenta que o Brasil, como país de dimensões continentais, necessita de ferrovias para transporte de passageiros e diz que essa deve ser uma questão geopolítica e geoeconômica de Estado.
"O brasileiro precisa do modal ferroviário para se locomover dentro do seu próprio território. Nós devemos ver isso como uma prioridade. Caso seja necessário subsidiar certos trechos, que seja feito esse subsídio. Em todos os outros países, na Rússia e na China, inclusive, é subsidiado o transporte ferroviário para passageiros. Isso é um investimento importante do ponto de vista estatal para que haja um fluxo mais tranquilo, mais seguro e até mais ecológico das pessoas, dos seus cidadãos, pelo território nacional."
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