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De 'cidade-fantasma' a enchentes frequentes: a bacia do Paraopeba 5 anos após o desastre da Vale
De 'cidade-fantasma' a enchentes frequentes: a bacia do Paraopeba 5 anos após o desastre da Vale
Sputnik Brasil
Há cinco anos, a tranquilidade típica do interior mineiro dava espaço a um desastre sem precedentes que estampava capas de jornais mundo afora. Nos céus, o ir... 24.01.2024, Sputnik Brasil
2024-01-24T10:00-0300
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"Só que, hoje, o Córrego do Feijão se transformou em uma cidade-fantasma", diz à Sputnik Brasil a artesã Josefa Evangelista Braga, de 42 anos. Localizado a pouco mais de 15 quilômetros do centro de Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, o bairro deu o nome à mina que por décadas foi responsável pela pujança econômica de todo o município, até o rompimento da principal barragem no dia 25 de janeiro de 2019. Passados os dias angustiantes de busca e contabilização de vítimas (das 272, até hoje 3 não foram localizadas), cujos trabalhos ficaram concentrados no lugarejo, restou uma história reduzida a pó e lama, como define a moradora.Das cerca de 250 famílias que antes residiam na região, não restaram nem 50, contabiliza Josefa. "Podemos contar nos dedos os antigos moradores que permanecem aqui. E quem pensou que se fosse vender a casa e ir embora com a intenção de reduzir a dor por tudo o que passamos, viu que não foi bem assim. Essa dor vai continuar onde você estiver. E muita gente que foi embora se arrependeu, só que agora não tem mais volta", conta.Grande parte dos moradores negociou casas e terrenos com a Vale, que se tornou proprietária das estruturas, muitas em estágio de abandono cercadas por arame farpado e placas que proíbem a entrada. As ruas com crianças brincando de pega-pega e calçadas que reuniam vizinhos para "uma boa prosa" deram lugar ao tráfego intenso de caminhões e veículos da mineradora. "Hoje tem pouca gente, mas muitos carros da Vale passando para cima e para baixo. O sossego da comunidade acabou desde então [o rompimento]", enfatiza.Onde ocorreu o rompimento da barragem de Brumadinho?Quase uma dicotomia, o relato da artesã que ainda insiste em reconstruir a vida em Córrego do Feijão mostra, segundo ela, que a empresa "faz o que quer" na região perto do seu então centro administrativo: menos moradores, mais veículos nas ruas. "Os funcionários [da Vale] falam que quem manda aqui é ela, e a empresa realmente se acha a dona da região. Tanto que quando compraram minha casa, queriam que eu saísse daqui de qualquer jeito, só que eu tinha outro terreno e construí em outra rua", acrescenta. Para Josefa, o bairro foi transformado em um verdadeiro canteiro de obras sem vida.E só restaram as boas lembranças de outrora, segundo a artesã. É o caso da pequena capela que ficava próxima a uma outra tradicional comunidade atingida pelo rompimento: Tejuco, onde acontece em todos os meses de setembro o Jubileu de Nossa Senhora das Mercês, uma das principais festas de tradição católica de Brumadinho. "Íamos até lá para fazer conferência, rezar o terço, e hoje não tem mais a passagem [até a capelinha]. A lama da barragem acabou com a estrada […]. O Córrego do Feijão era uma família, todo mundo conhecia todo mundo, e hoje não mais", afirma.Promessa de 'ressignificação' em Córrego do FeijãoDesde o começo de 2023, segundo a Vale, os moradores do Córrego do Feijão voltaram a se encontrar nas ruas da comunidade, com a entrega da praça 25 de Janeiro, do Mercado Central Ipê-Amarelo, do Centro de Cultura e Artesanato Laudelina Marcondes, além de duas cozinhas comunitárias. A mineradora ainda garante que as intervenções são "fruto do diálogo com a comunidade".Vale leva conflito e divisões para aldeia às margens do ParaopebaPoucos quilômetros de distância e um dilema parecido às margens do Paraopeba, em Brumadinho. A aldeia batizada de Naô Xohã pelos indígenas Pataxó Hãhãhãe, que na língua-mãe da comunidade significa espírito guerreiro, vivia quase sem ser conhecida pela maioria das pessoas, até que veio o rompimento da barragem. O grupo chegou na região anos antes, após fugirem de conflitos fundiários na região sul da Bahia, com a esperança de reconstruírem a vida. Na época, eram 56 famílias, segundo contou o cacique Sucupira, de 33 anos, à Sputnik Brasil.Junto com o desastre, também vieram conflitos internos e a divisão na aldeia, que se espalhou entre uma nova comunidade em São Joaquim de Bicas — após a doação de terras pela Associação Mineira de Cultura Nipo-Brasileira (AMCNB) — e barracões apertados na periferia de Belo Horizonte."Somos um povo que não sabe lidar com dinheiro; sabemos de terra, natureza e água. Chegou a Vale e enganou nossos parentes, colocando um contra o outro. Isso nos separou. Hoje em dia não falo mais com o meu irmão, o outro que é cacique também não", revelou. Das famílias que ocupavam o território antes do rompimento, restaram apenas três.Parte da comunidade indígena firmou acordos indenizatórios individuais com a empresa, e os pagamentos são mantidos em sigilo pela mineradora. Porém, desde 2019, os Pataxó Hãhãhãe sequer conseguiram acesso à contratação de uma assessoria técnica, que auxilia outros atingidos ao longo de toda a bacia do Paraopeba."Essa região era o nosso sonho. Nós não tínhamos desavenças, vivíamos reunidos, íamos na casa um do outro", disse o cacique. Já quem seguiu na aldeia enfrenta uma série de problemas: desde enchentes que ficaram mais frequentes até questões de saúde.Novos atingidos: lama voltou a tomar casas anos após o rompimentoA dona de casa Fernanda Oliveira, de 42 anos, vive em uma casa construída a 72 metros do Paraopeba na região de Citrolândia, em Betim, também na Grande Belo Horizonte, desde a infância. Ela lembra como se fosse hoje quando viu o leito do rio tomado pelo marrom cor de sangue dos rejeitos do rompimento, mas nunca imaginou que o pior viria bem depois: com o assoreamento causado pela lama, as enchentes ficaram mais frequentes no bairro.Em janeiro de 2022, as águas do rio subiram tanto após fortes chuvas que casas ficaram praticamente submersas na região, onde mais de 18 mil pessoas foram afetadas. O quintal de Fernanda, que contava com uma piscina e churrasqueira, foi tomado pela lama. "Tomou uma proporção muito grande, porque esse rejeito que o rio trouxe é muito denso, pegajoso e de difícil remoção, algo que nunca tinha acontecido antes. Nos fundos da casa, a água ultrapassou três metros", relata.Até hoje, Fernanda não conseguiu retirar o material que, segundo ela, faz até as frutas das árvores frondosas que possui no quintal já nascerem podres. "Qualquer chuvinha que cai, o rio sobe muito rápido. A Vale fala que tudo isso existia antes do rompimento, mas depois tomou uma proporção muito diferente do que era", acrescenta. No ano passado, outra enchente afetou a região. Apesar do volume de água ter sido menor, também foram registrados diversos estragos."Eu já não tenho gosto nenhum de viver na minha casa, até pelo medo que dá em todo o fim de ano, no período de chuva. Você não consegue dormir nem descansar. Não dá também para viajar e deixar tudo aqui. E a situação só piora, a cada chuva desce ainda mais rejeito", comentou. Após os alagamentos de 2022, a Vale chegou a contratar empresas especializadas para avaliar a situação. Segundo a mineradora, nas mais de 950 análises realizadas — também em Brumadinho, São Joaquim de Bicas, Mário Campos e Esmeraldas — não constaram qualquer relação da lama com os rejeitos do rompimento.Rio pavimentado por milhões de metros cúbicos de rejeitoO diretor do Instituto Guaicuy, Marcus Vinícius Polignano, explicou à Sputnik Brasil que o rejeito praticamente pavimentou o rio Paraopeba ao longo do seu curso e, quanto mais próximo ao ponto do rompimento, pior é a situação. "Esse é um dano contínuo, porque não tem como fazer a retirada desse sedimento. Com isso, muda todas as características, tanto da qualidade da água quanto em relação à cadeia alimentar, que acaba contaminada", enfatiza.Além disso, outro problema grave em toda a bacia é a presença de metais pesados, principalmente manganês, aponta o especialista. "Em alguns pontos do rio, há inclusive mercúrio e cádmio. Quando ocorrem períodos de chuva, como o atual, todo esse sedimento revolve do fundo, volta para a água e isso vai se perpetuando. Então temos um rio que ainda não pode ser utilizado para a dessedentação [tirar a sede] dos animais, irrigação e vários outros usos fundamentais para a população."Conforme Polignano, nos períodos de estiagem, quando o sedimento fica retido no fundo, a qualidade da água apresenta aspectos melhores, em processo de recuperação lento, gradual e progressivo, feito pela própria natureza. "Só que sempre que esse sedimento é revolvido, a contaminação retorna e há esse processo contínuo que deve se manter por décadas. O rio Doce [da barragem de Mariana] já mostrou que não tem como fazer a limpeza do leito", finalizou.Já a Vale informou que, com a Estação de Tratamento de Água Fluvial, já devolveu ao Paraopeba 54 bilhões de litros de água limpa. "Os monitoramentos de qualidade da água continuam a ser feitos em cerca de 80 pontos e apresentam resultados semelhantes aos registrados antes do rompimento, especialmente em períodos secos. Os dados convergem com os resultados produzidos pelo monitoramento do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam)", concluiu.Nota completa da Vale:A Vale mantém o diálogo aberto com as comunidades indígenas afetadas pelo rompimento da barragem, sempre respeitando seus direitos e suas tradições.Ainda em 2019, foi assinado, junto ao Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, um Termo de Ajuste Preliminar Emergencial, que definiu repasses mensais e outras obrigações da Vale, inclusive com relação à assistência de saúde e contratação de entidade para prestar assessoria técnica independente aos indígenas. Todas têm sido integralmente cumpridas.A partir de 2020, uma equipe de saúde multidisciplinar contratada pela Vale passou a atuar na aldeia Naô Xohã, com atendimentos voltados para a saúde física e mental. O trabalho vem sendo executado desde então, sem interrupções, em convergência com as políticas sanitárias vigentes e com o Poder Público.Sobre problemas de pele ou quaisquer outras doenças, não há até o momento nenhum registro clínico que indique relação de causalidade com o rompimento da barragem.Entre 2022 e 2023, reconhecendo e respeitando a autonomia e os protagonismos dos indígenas, três grupos indígenas firmaram acordos com a empresa, homologados pelo Judiciário. Esses acordos abrangem compensação integral dos danos, das perdas e dos prejuízos individuais e coletivos, e garantem assistência à saúde complementar ao poder público até dezembro de 2027, sendo que parte desses valores já foram inclusive antecipados para os indígenas.Recentemente, a Vale adquiriu um terreno de mais de 300 hectares para a realização da realocação temporária da aldeia Naô Xohã. Além disso, está em fase de contratação a entidade que fará os estudos socioeconômicos e de saúde referentes aos danos causados aos indígenas Pataxó e Pataxó HãHãHãe, conforme processo judicial em curso.
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brumadinho, córrego do feijão, paraopeba, vale, bahia, mar de lama varre brumadinho após explosão de barragem, rompimento de barragem, mina córrego do feijão, vale, minas gerais, desastre ambiental, exclusiva, belo horizonte
"Só que, hoje, o Córrego do Feijão se transformou em uma cidade-fantasma", diz à
Sputnik Brasil a artesã Josefa Evangelista Braga, de 42 anos. Localizado a pouco mais de 15 quilômetros do centro de Brumadinho, na Região Metropolitana de Belo Horizonte,
o bairro deu o nome à mina que por décadas foi responsável pela pujança econômica de todo o município, até o
rompimento da principal barragem no dia 25 de janeiro de 2019. Passados os dias angustiantes de busca e contabilização de vítimas (das 272, até hoje 3 não foram localizadas), cujos trabalhos ficaram concentrados no lugarejo,
restou uma história reduzida a pó e lama, como define a moradora.
Das cerca de 250 famílias que antes
residiam na região, não restaram nem 50, contabiliza Josefa. "Podemos contar nos dedos os antigos moradores que permanecem aqui. E quem pensou que se fosse vender a casa e ir embora com a intenção de reduzir a dor por tudo o que passamos, viu que não foi bem assim. Essa dor vai continuar onde você estiver. E muita gente que foi embora se arrependeu, só que agora não tem mais volta", conta.
Grande parte dos moradores negociou casas e
terrenos com a Vale, que se tornou proprietária das estruturas, muitas em estágio de abandono
cercadas por arame farpado e placas que proíbem a entrada. As ruas com crianças brincando de pega-pega e calçadas que reuniam vizinhos para "uma boa prosa" deram lugar ao
tráfego intenso de caminhões e veículos da mineradora. "Hoje tem pouca gente, mas muitos carros da Vale passando para cima e para baixo. O sossego da comunidade acabou desde então [o rompimento]", enfatiza.
Onde ocorreu o rompimento da barragem de Brumadinho?
Quase uma dicotomia, o relato da artesã que
ainda insiste em reconstruir a vida em Córrego do Feijão mostra, segundo ela, que a empresa "faz o que quer" na região perto do seu então centro administrativo:
menos moradores, mais veículos nas ruas. "Os funcionários [da Vale] falam que quem manda aqui é ela, e a empresa realmente se acha a dona da região. Tanto que quando compraram minha casa, queriam que eu saísse daqui de qualquer jeito, só que eu tinha outro terreno e construí em outra rua", acrescenta. Para Josefa,
o bairro foi transformado em um verdadeiro
canteiro de obras sem vida.
"Muitas casas ficaram abaladas e trincadas, isso também levou alguns moradores a venderem seus imóveis para a Vale. E até hoje atrapalha, é muito barulho. As obras que foi entregando, [a companhia] deixou de se responsabilizar pelas estruturas, a exemplo do memorial, que está parado. A mesma coisa é o centro cultural, que querem que a comunidade se responsabilize, mas não temos condições de manter sozinhos esses espaços", justifica.
E só restaram as
boas lembranças de outrora, segundo a artesã. É o caso da pequena capela que ficava próxima a uma outra tradicional comunidade
atingida pelo rompimento: Tejuco, onde acontece em todos os meses de setembro o Jubileu de Nossa Senhora das Mercês, uma das principais festas de tradição católica de Brumadinho. "Íamos até lá para fazer conferência, rezar o terço, e hoje não tem mais a passagem [até a capelinha]. A lama da barragem acabou com a estrada […].
O Córrego do Feijão era uma família, todo mundo conhecia todo mundo, e hoje não mais", afirma.
Promessa de 'ressignificação' em Córrego do Feijão
Desde o começo de 2023, segundo a Vale, os moradores do Córrego do Feijão voltaram a se encontrar nas ruas da comunidade, com a entrega da praça 25 de Janeiro, do Mercado Central Ipê-Amarelo, do Centro de Cultura e Artesanato Laudelina Marcondes, além de duas cozinhas comunitárias. A mineradora ainda garante que as intervenções são "fruto do diálogo com a comunidade".
"Por trás dos equipamentos finalizados, há um trabalho que busca fomentar a economia e o turismo local, além de apoiar a comunidade na administração desses espaços de forma participativa. Para isso, a Vale oferece assessoria para a gestão e ocupação desses locais, com capacitações e suporte técnico aos empreendedores. São realizados encontros periódicos com o grupo gestor e todas as construções e ações são definidas em conjunto", defende a mineradora.
19 de setembro 2022, 17:30
Vale leva conflito e divisões para aldeia às margens do Paraopeba
Poucos quilômetros de distância e um dilema parecido às margens do Paraopeba, em Brumadinho. A aldeia batizada de
Naô Xohã pelos indígenas Pataxó Hãhãhãe, que na língua-mãe da comunidade significa espírito guerreiro, vivia quase sem ser conhecida pela maioria das pessoas, até que
veio o rompimento da barragem. O grupo chegou na região anos antes, após fugirem de conflitos fundiários na
região sul da Bahia, com a
esperança de reconstruírem a vida. Na época, eram 56 famílias, segundo contou o cacique Sucupira, de 33 anos, à Sputnik Brasil.
"Antes do crime da Vale, em 2019, a gente estava a caminho de terminar nossas casas, dentro das nossas tradições, além de fazer o plantio das roças, trazer o ecoturismo para a aldeia. E esse sonho foi paralisado. Tínhamos também a pesca, a caça e nossas celebrações religiosas, e tudo isso foi tirado de nós. É o rio que faz o Pataxó viver, porque nós temos um deus que se chama Tiô Pai, deus da água", relembrou.
Junto com o desastre, também vieram
conflitos internos e a divisão na aldeia, que se espalhou entre uma nova comunidade em São Joaquim de Bicas — após a doação de terras pela Associação Mineira de Cultura Nipo-Brasileira (AMCNB) — e
barracões apertados na periferia de Belo Horizonte.
"Somos um povo que não sabe lidar com dinheiro; sabemos de terra, natureza e água. Chegou a Vale e enganou nossos parentes, colocando um contra o outro. Isso nos separou. Hoje em dia não falo mais com o meu irmão, o outro que é cacique também não", revelou. Das famílias que ocupavam o território antes do rompimento, restaram apenas três.
Parte da comunidade indígena firmou
acordos indenizatórios individuais com a empresa, e os pagamentos são mantidos em sigilo pela mineradora. Porém, desde 2019, os Pataxó Hãhãhãe sequer conseguiram acesso à
contratação de uma assessoria técnica, que auxilia outros atingidos ao longo de
toda a bacia do Paraopeba.
"Essa região era o nosso sonho. Nós não tínhamos desavenças, vivíamos reunidos, íamos na casa um do outro", disse o cacique. Já quem seguiu na aldeia enfrenta uma série de problemas: desde enchentes que ficaram mais frequentes até questões de saúde.
"As crianças possuem contato com o solo, têm caroços e feridas pelo corpo e até desenvolveram diabetes, talvez por conta da contaminação. As pernas dos adultos também ficaram feridas, as galinhas nascem com muitos tumores e não podemos consumir nenhum alimento que vem daqui", relatou.
Novos atingidos: lama voltou a tomar casas anos após o rompimento
A dona de casa Fernanda Oliveira, de 42 anos, vive em uma casa construída a
72 metros do Paraopeba na região de Citrolândia, em Betim, também na Grande Belo Horizonte, desde a infância. Ela lembra como se fosse hoje quando viu o leito do
rio tomado pelo marrom cor de sangue dos rejeitos do rompimento, mas nunca imaginou que o pior viria bem depois: com o assoreamento causado pela lama,
as enchentes ficaram mais frequentes no bairro.
Em janeiro de 2022,
as águas do rio subiram tanto após fortes chuvas que
casas ficaram praticamente submersas na região, onde mais de 18 mil pessoas foram afetadas. O quintal de Fernanda, que contava com uma piscina e churrasqueira,
foi tomado pela lama. "Tomou uma proporção muito grande, porque esse rejeito que o rio trouxe é muito denso, pegajoso e de difícil remoção, algo que nunca tinha acontecido antes. Nos fundos da casa, a água ultrapassou três metros", relata.
Até hoje, Fernanda não conseguiu retirar o material que, segundo ela, faz até as frutas das árvores frondosas que possui no quintal já nascerem podres. "Qualquer chuvinha que cai, o rio sobe muito rápido. A Vale fala que tudo isso existia antes do rompimento, mas depois tomou uma proporção muito diferente do que era", acrescenta. No ano passado, outra enchente afetou a região. Apesar do volume de água ter sido menor, também foram registrados diversos estragos.
"Eu já não tenho gosto nenhum de viver na minha casa, até pelo medo que dá em todo o fim de ano, no período de chuva. Você não consegue dormir nem descansar. Não dá também para viajar e deixar tudo aqui. E a situação só piora, a cada chuva desce ainda mais rejeito", comentou. Após os alagamentos de 2022,
a Vale chegou a contratar empresas especializadas para avaliar a situação. Segundo a mineradora, nas mais de 950 análises realizadas — também em Brumadinho, São Joaquim de Bicas, Mário Campos e Esmeraldas —
não constaram qualquer relação da lama com os rejeitos do rompimento.
Rio pavimentado por milhões de metros cúbicos de rejeito
O diretor do Instituto Guaicuy, Marcus Vinícius Polignano, explicou à Sputnik Brasil que o rejeito praticamente pavimentou o rio Paraopeba ao longo do seu curso e, quanto mais próximo ao ponto do rompimento, pior é a situação. "Esse é um dano contínuo, porque não tem como fazer a retirada desse sedimento. Com isso, muda todas as características, tanto da qualidade da água quanto em relação à cadeia alimentar, que acaba contaminada", enfatiza.
Além disso, outro problema grave em toda a bacia é a presença de metais pesados, principalmente manganês, aponta o especialista. "Em alguns pontos do rio, há inclusive mercúrio e cádmio. Quando ocorrem períodos de chuva, como o atual, todo esse sedimento revolve do fundo, volta para a água e isso vai se perpetuando. Então temos um rio que ainda não pode ser utilizado para a dessedentação [tirar a sede] dos animais, irrigação e vários outros usos fundamentais para a população."
Conforme Polignano, nos períodos de estiagem, quando o sedimento fica retido no fundo, a qualidade da água apresenta aspectos melhores, em processo de recuperação lento, gradual e progressivo, feito pela própria natureza. "Só que sempre que esse sedimento é revolvido, a contaminação retorna e há esse processo contínuo que deve se manter por décadas. O rio Doce [da barragem de Mariana] já mostrou que não tem como fazer a limpeza do leito", finalizou.
Já a Vale informou que, com a Estação de Tratamento de Água Fluvial, já devolveu ao Paraopeba 54 bilhões de litros de água limpa. "Os monitoramentos de qualidade da água continuam a ser feitos em cerca de 80 pontos e apresentam resultados semelhantes aos registrados antes do rompimento, especialmente em períodos secos. Os dados convergem com os resultados produzidos pelo monitoramento do Instituto Mineiro de Gestão das Águas (Igam)", concluiu.
A Vale mantém o diálogo aberto com as comunidades indígenas afetadas pelo rompimento da barragem, sempre respeitando seus direitos e suas tradições.
Ainda em 2019, foi assinado, junto ao Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União, um Termo de Ajuste Preliminar Emergencial, que definiu repasses mensais e outras obrigações da Vale, inclusive com relação à assistência de saúde e contratação de entidade para prestar assessoria técnica independente aos indígenas. Todas têm sido integralmente cumpridas.
A partir de 2020, uma equipe de saúde multidisciplinar contratada pela Vale passou a atuar na aldeia Naô Xohã, com atendimentos voltados para a saúde física e mental. O trabalho vem sendo executado desde então, sem interrupções, em convergência com as políticas sanitárias vigentes e com o Poder Público.
Sobre problemas de pele ou quaisquer outras doenças, não há até o momento nenhum registro clínico que indique relação de causalidade com o rompimento da barragem.
Entre 2022 e 2023, reconhecendo e respeitando a autonomia e os protagonismos dos indígenas, três grupos indígenas firmaram acordos com a empresa, homologados pelo Judiciário. Esses acordos abrangem compensação integral dos danos, das perdas e dos prejuízos individuais e coletivos, e garantem assistência à saúde complementar ao poder público até dezembro de 2027, sendo que parte desses valores já foram inclusive antecipados para os indígenas.
Recentemente, a Vale adquiriu um terreno de mais de 300 hectares para a realização da realocação temporária da aldeia Naô Xohã. Além disso, está em fase de contratação a entidade que fará os estudos socioeconômicos e de saúde referentes aos danos causados aos indígenas Pataxó e Pataxó HãHãHãe, conforme processo judicial em curso.