Ilusão perdida: Leste Europeu perdeu soberania e força econômica com expansão da OTAN, diz analista
08:23 29.03.2024 (atualizado: 11:36 29.03.2024)
© AP Photo / Czarek SokolowskiAs tropas dos EUA, parte de uma missão da OTAN para melhorar a defesa da Polônia, se preparam para uma cerimônia oficial de boas-vindas em Orzysz, nordeste da Polônia, 13 de abril de 2017
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Os países do Leste Europeu marcam os 20 anos desde a sua adesão à Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN). Além das consequências nefastas para a segurança internacional, a expansão da aliança militar ocidental levou a perda da democracia e empobrecimento nos países do Leste Europeu, dizem analistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
Nesta sexta-feira (29), a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) marca os 20 anos de sua fatídica expansão para o Leste Europeu, integrando a Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia.
Enquanto países como a Lituânia realizaram desfiles militares para marcar a data ainda nesta quinta-feira (28), a Romênia anunciou investimentos para expandir a base de Mihail Kogalniceanu, instalada em seu território, e torná-la a maior base aérea da OTAN na Europa.
"Este tipo de atividade de membros da OTAN é de natureza provocativa e agrava as tensões militares ao longo de nossas fronteiras, criando ameaças adicionais à segurança russa", disse o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, em resposta ao anúncio romeno. "O objetivo é preparar os membros do bloco militar para um conflito potencial com o nosso país."
A expansão da OTAN é amplamente considerada uma ruptura no equilíbrio estratégico entre a Rússia e forças ocidentais lideradas pelos EUA. Há também uma ruptura nos laços de confiança entre as partes, uma vez que o Ocidente estendeu garantias à liderança soviética, no contexto do fim da Guerra Fria, de que não expandiria suas forças para territórios a leste da Alemanha reunificada.
© Sputnik / Grigory SysoevMinistro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov participa da conferência Euromaidan: a Década Perdida da Ucrânia, no centro internacional de imprensa Rossiya Segodnya, em Moscou
Ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov participa da conferência Euromaidan: a Década Perdida da Ucrânia, no centro internacional de imprensa Rossiya Segodnya, em Moscou
© Sputnik / Grigory Sysoev
Mas as negociações para a expansão da aliança começaram pouco depois da queda do Muro de Berlim. Já em 1997, países como a Polônia, Hungria e a República Tcheca aderiram às fileiras da OTAN.
Em recente discurso proferido a pilotos da Força Aeroespacial russa, o presidente russo Vladimir Putin notou o impacto negativo da expansão da OTAN para a manutenção da estabilidade estratégica e segurança da Rússia.
"Eles vieram até as nossas fronteiras. […] Nós cruzamos o oceano e nos aproximamos das fronteiras dos EUA?", questionou o presidente Putin. "Não. São eles que se aproximam de nós, eles que chegaram até as nossas fronteiras."
O papel central que a expansão teve na eclosão do conflito ucraniano foi prevista por especialistas de todo o mundo, inclusive norte-americanos: o ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, o ex-embaixador dos EUA na URSS, George Kennan, e o proeminente teórico de Relações Internacionais, John Mearsheimer, alertaram para os riscos desta iniciativa.
"Kissinger apontava para a importância que o Leste Europeu tinha, desde a queda do império alemão, para formar um colchão de segurança desejável entre Berlim e Moscou", disse o doutorando do Instituto de Relações Internacionais da PUC-Rio, Pedro Silva, à Sputnik Brasil. "O mesmo pode ser dito do período pós-Guerra Fria: os países do Leste Europeu, não alinhados nem à Rússia nem à OTAN, garantiam uma zona de segurança entre essas potências."
© AFP 2023 / John RuthroffO ministro das Relações Exteriores da República Tcheca, Jan Kavan (sentado), assina o documento de adesão que inscreve a República Tcheca na OTAN, em 12 de março de 1999, na biblioteca Harry Truman em Independence, no Missouri, EUA. Em pé estão a secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright (à esquerda), o ministro das Relações Exteriores da Hungria, Janos Martonyi (no centro), e o ministro das Relações Exteriores da Polônia, Bronislaw Geremek (à direita)
O ministro das Relações Exteriores da República Tcheca, Jan Kavan (sentado), assina o documento de adesão que inscreve a República Tcheca na OTAN, em 12 de março de 1999, na biblioteca Harry Truman em Independence, no Missouri, EUA. Em pé estão a secretária de Estado dos EUA, Madeleine Albright (à esquerda), o ministro das Relações Exteriores da Hungria, Janos Martonyi (no centro), e o ministro das Relações Exteriores da Polônia, Bronislaw Geremek (à direita)
© AFP 2023 / John Ruthroff
Já George Kennan, um dos maiores especialistas norte-americanos em Rússia do século XX, classificou a expansão da OTAN para o Leste Europeu como "o erro mais fatídico da política americana em toda a era pós-Guerra Fria". Para ele, a expansão da OTAN causaria danos irreparáveis aos EUA, transformando a Rússia de parceira em adversária do Ocidente.
"Hoje sabemos que, no longo prazo, a expansão da OTAN gerou uma perda significativa para a segurança internacional", asseverou o especialista em Relações Internacionais Pedro Silva.
Déficit Democrático
As consequências nefastas para a paz e segurança internacionais que a expansão da OTAN causou são amplamente debatidas. No entanto, pouco é dito sobre os impactos negativos desta expansão para a manutenção da democracia no Leste Europeu.
"Existe uma perda de soberania, já que os países que entraram na aliança não podem mais decidir, a partir do seu próprio processo democrático, quais são as suas prioridades na área de segurança", afirmou Silva. "Caso a população de um país que atualmente integra a OTAN decida se retirar da aliança, será que ela realmente poderia fazer isso? A história mostra que não."
O especialista cita o caso de Portugal, que, quando aventou a possibilidade de se retirar da aliança foi visitado por um porta-aviões americano. A resposta dos EUA teria o objetivo de sinalizar que a saída da aliança militar não é uma opção.
"Entrar na OTAN é fácil. Difícil é sair. Após a Revolução dos Cravos, o governo revolucionário de Portugal considerava seriamente a saída do país da organização militar. Em uma bela manhã de 1975, Lisboa acorda com o porta-aviões USS Saratoga ancorado em frente ao Palácio de Belém", escreveu o especialista em Rússia, Rodrigo Ianhez, na plataforma X.
Pedro Silva ainda lembra o caso do então presidente francês, Charles de Gaulle, que questionou certas atividades da OTAN e demandou mais transparência por parte da aliança. Segundo Silva, a aliança eventualmente negociou com de Gaulle, já que a França é uma potência militar. "Mas não poderíamos esperar esse tratamento caso o questionamento fosse feito por países menores, como a Bulgária ou a Romênia", considerou.
© Foto / Cláudia Madeira/EcolojovemManifestação contra OTAN em Portugal
Manifestação contra OTAN em Portugal
© Foto / Cláudia Madeira/Ecolojovem
"Todo Estado tem que ter o direito de andar pelas próprias pernas e o direito à autodeterminação, baseado na vontade popular", disse Silva. "O que vemos é que esse espaço para essas populações acabou."
Déficit Econômico
Além do déficit democrático, as consequências econômicas da expansão da OTAN para os países do Leste Europeu também são negativas, explica o professor de economia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), José Menezes Gomes.
"A expansão da OTAN está estreitamente vinculada à expansão da União Europeia e da zona do euro. Havia o interesse de integrar esses países à dinâmica econômica europeia, garantindo a expansão do capital de França e Itália, mas, principalmente, em benefício do capital alemão", disse Menezes Gomes.
Para os países do Leste Europeu, no entanto, a adesão aos projetos econômicos e militares ocidentais levaram à perda de mão de obra, fuga de cérebros e significativo processo de desindustrialização.
© AP Photo / Vadim GhirdaMoradora assiste a representação ao ar livre em Bucareste, Romênia
Moradora assiste a representação ao ar livre em Bucareste, Romênia
© AP Photo / Vadim Ghirda
"Esses países perderam a sua moeda, o seu Banco Central, sua identidade e autonomia", disse Menezes Gomes. "Abandonaram as políticas sociais, o que levou a emigração de sua população, que vive de trabalhos precários em países ricos do bloco europeu."
Além disso, a privatização em grande escala de empresas nacionais debilitou de maneira permanente o orçamento dos Estados da região. Apesar dos recursos escassos, esses países devem arcar com a demanda, por parte da OTAN, de expansão dos seus gastos militares.
Para Menezes Gomes, que é coautor do livro "Guerra da Ucrânia e Crise Mundial", organizado pelo professor da Universidade de São Paulo (USP), Osvaldo Coggiola, os ganhos econômicos do conflito ucraniano não são auferidos pela Europa.
"Economicamente, quem ganha com o conflito ucraniano é os EUA", disse Gomes de Menezes. "Os países europeus foram obrigados a parar de comprar recursos energéticos russos e adquirir o equivalente norte-americano, a preços muito mais altos. Os equipamentos militares comprados pelos países da OTAN e pela Ucrânia também são dos EUA."
O encarecimento dos recursos energéticos leva à forte inflação em países como a Alemanha, gerando desindustrialização. Atrelado às perdas já sofridas pelo Leste Europeu, o resultado é desastroso para o futuro socioeconômico da Europa como um todo.
"A OTAN é apenas o preço mais caro que esses países pagam para entrar em um projeto de expansão ocidental mais amplo, que inclui também a União Europeia e a zona do euro. Os dados já mostram que os ganhos para o Leste Europeu eram ilusórios e o projeto europeu, uma falácia", concluiu Menezes Gomes.