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Retornados: comunidade na África mantém tradições brasileiras e resiste até os dias atuais

© AFP 2023 / Ben StensallMaquete exposta no Hyde Park, em Londres, Reino Unido, representa africanos escravizados cujas vidas foram perdidas durante o tráfico negreiro
Maquete exposta no Hyde Park, em Londres, Reino Unido, representa africanos escravizados cujas vidas foram perdidas durante o tráfico negreiro - Sputnik Brasil, 1920, 03.05.2024
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Na junção entre o Togo e Benin, onde as fronteiras se confundem em uma rica tapeçaria cultural, reside uma comunidade singular, os retornados do Brasil. Em diversos outros países africanos, esses indivíduos — que após a Lei Áurea retornaram à África — também são presentes.
Doutoranda na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, Anice Lawson explica que o grupo preservou aspectos da cultura brasileira em suas vidas cotidianas. "A gente identifica essa comunidade pelo sobrenome que eles possuem, De Almeida, Da Silveira, Da Silva. Esses sobrenomes que eles guardaram depois de terem retornado do Brasil", exemplifica.
Em entrevista aos jornalistas Melina Saad e Marcelo Castilho, do podcast Mundioka, da Sputnik Brasil, ela relata que nasceu no Togo, mas passou parte significativa de sua vida em Benin.
Segundo Lawson, há várias comunidades de retornados nesses dois países, além de Gana, Nigéria, Senegal e nações da África Austral e África do Leste.
Ela narra que essa comunidade carrega consigo laços históricos profundos entre os continentes africano e sul-americano. Destaca-se a festa do Bonfim, por exemplo, uma celebração que ecoa tradições festivas da Bahia, onde participantes se vestem e se alimentam em homenagem à sua herança brasileira, retomadas no Togo.
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Segundo ela, a maioria fala as línguas respectivas de cada país, de acordo com a nação europeia que o colonizou, mas muitos tentam incorporar e manter vivo o português. "Eu estudo um pouco essa comunidade, pela minha curiosidade e por ter também afinidade."
A comida, especialmente a feijoada, é um vínculo emocional com o Brasil, uma maneira de "matar a saudade" e reafirmar suas identidades. "Eles costumam comer na mesa, com faca e garfo. Eles trouxeram também as comidas brasileiras, por exemplo a feijoada, que é um prato brasileiro e que as pessoas costumam comer aqui para festejar e lembrar do Brasil."
No entanto ela aborda questões delicadas, como a dinâmica social dentro das comunidades de retornados, que acabam por reproduzir padrões de opressão que testemunharam no Brasil. "É um assunto muito sensível para falar dos retornados em aspecto político."
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Em pesquisas e diálogos com pessoas da região, ela soube que alguns grupos, quando retornaram ao Togo, mantinham relações de trabalho com outras pessoas. "A comunidade brasileira escravizou, de certa forma, essa comunidade do interior. Mas não no sentido de escravizar brasileiro ou das Américas."
O que a deixou surpresa foi que em alguns casos retornados formaram uma elite social, com influência política e econômica. "Eles têm alguém para cuidar da casa, alguém que cuide de tudo. Acho que, de certa forma, essas pessoas que retornaram se tornaram uma comunidade que se construiu a ponto de virar uma elite da sociedade."

"Acho que inconscientemente eles reproduziram o que viveram no Brasil durante a escravidão. Eu não sei, eu estou falando inconscientemente, porque se for conscientemente, eu acho que eles não fariam isso. […] Tudo o que eles sofreram no Brasil eles não queriam mais sofrer aqui, e eles têm, eu acho que eles dão valor a essa liberdade que eles ganharam."

Lawson já morou no Rio de Janeiro durante pesquisas de língua portuguesa e cursou ciências sociais na cidade, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Segundo ela, o Brasil, com sua história intrínseca à África, também possui problemas raciais enraizados.

"O que eu percebi no Brasil, infelizmente, e eu fico triste quando eu falo dessas questões, é que ainda hoje o negro e o preto ainda são considerados uma pessoa que não é um ser humano."

Apesar de ter se encantado pelo Brasil durante os cinco anos em que viveu em território brasileiro, ela entende que há progressos a serem feitos. "A gente queira ou não, a África e o Brasil têm uma história que nunca se apagou. E isso não começou ontem."

"A gente tem que reconhecer esse passado escravagista para tentar avançar. Enquanto a gente não conhecer nossa própria história, fica difícil se localizar na vida pessoal e social, e construir um presente e se projetar no futuro. O Brasil e a África são lugares distantes, porque o oceano Atlântico nos separa, mas eu acho que a gente é o mesmo povo. São só as distâncias que nos separam."

A professora e pesquisadora de história da África pela UFRJ Monica Lima e Souza destaca a trajetória dos retornados, que uma vez libertos, após a Lei Áurea, buscaram retornar ao continente africano. "A história dessas pessoas me fascina há bastante tempo."

"Era duríssimo, dificílimo. Era muito, muito trabalhoso e envolvia uma série de questões na vida dessas pessoas. Mas houve aqueles que conseguiram fazer parte desse grupo [retornados]. […] A maioria que eu encontrei saía de portos, de cidades, portanto do Brasil escravista nesse período, no século XIX, quando houve, repito, um número mais intenso de retornos. E até onde eu pude investigar, eram pessoas envolvidas no trabalho urbano, eram artesãos, eram pequenos comerciantes que viviam na cidade e que faziam nossas cidades terem suas atividades."

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Entre meados dos séculos XVI e XIX, vieram cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças negras, o equivalente a mais de um terço de todo o comércio negreiro mundial, apenas para o território brasileiro.
A pesquisa de Souza revela que antes da Lei Áurea, sancionada em 1888, ao menos 3,5 mil pessoas haviam retornado à África, entre 1830 e 1870, principalmente de áreas urbanas, onde havia uma maior concentração de retornados. "E isso, claro, é infinitamente pequeno se a gente olhar o número de escravizados que foram trazidos para cá, para o Brasil, nesse período. Mas, de qualquer forma, é um número expressivo em si."

"São histórias que falam de pessoas que foram trazidas, sequestradas das suas terras de origem, colocadas nos porões dos navios escravagistas, chegaram aqui no Brasil e nas Américas, nessa situação de cativeiro, e conseguiram não apenas conquistar a sua liberdade, como juntar recursos para voltar para o seu continente de origem."

Artífices, pequenos comerciantes e trabalhadores urbanos foram os protagonistas dessas histórias, segundo ela, e contavam com dificuldades além da ausência de apoio institucional, tais como o risco de reescravização — o que motivava até que o destino final do retorno não fosse o local exato de origem, mas outras regiões africanas.

"Os lugares de onde elas haviam sido trazidas muitas vezes eram locais onde havia o perigo de uma reescravização. […] E essas pessoas que voltaram majoritariamente buscaram cidades-porto nas quais elas teriam chance de ter uma vida melhor e que muitas vezes não correspondiam ao local exatamente de origem."

Ela ressalta que essas pessoas não receberam apoio financeiro do Estado brasileiro ou de organizações locais. Em vez disso, tiveram de trabalhar e estabelecer redes de organização para buscar a liberdade e viabilizar o retorno.

"Em outros lugares das Américas negras, houve grupos religiosos, até o próprio governo local, que estimularam a volta dos libertos para a África. Nos Estados Unidos chegou a haver uma campanha, e houve realmente um movimento chamado Back to Africa, estimulado por lideranças religiosas. E que tinha a ver com muitos fatores de lá, entre eles o liberto ser 'um indesejável naquela sociedade'. Eles temiam a figura do liberto negro."

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Como foi a escravidão do Brasil?

A pesquisadora relata que houve diversas tentativas de resistir aos cativeiros. Sua pesquisa baseou-se em relatos de fugas, negociações por direitos básicos e até mesmo na articulação de greves por parte dos escravizados.

"Quando um senhor ou uma senhora prometia liberdade a um escravizado, se ele ficasse servindo durante tantos anos aos seus pais ou aos seus filhos, isso era o trabalho que pagava. Aí aquele escravizado ou aquela escravizada conseguia se libertar."

Outro aspecto era a prática da negociação por espaços de liberdade, onde tais indivíduos buscavam garantir direitos mínimos que não possuíam, tais como o descanso semanal, o cultivo de suas próprias roças e a celebração de suas tradições culturais.
Para Souza, é preciso ampliar o reconhecimento e a compreensão dessas histórias, tanto na literatura quanto no cinema. Segundo ela, há uma riqueza de narrativas ainda não exploradas sobre esse período crucial da história brasileira.

"Aqui no Brasil não houve nenhum tipo de apoio para essas pessoas voltarem [para a África]. Portanto essas pessoas voltaram por seu próprio trabalho e esforço. Evidentemente, quando eu digo por seu próprio trabalho e esforço, [digo] inclusive [do esforço] em tecer relações, estabelecer contatos, conseguir apoios que ajudassem, muitas vezes, a elas e suas famílias a realizarem esse percurso de volta."

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