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Analista: erradicar a fome exige lógica que não seja a de celeiro que 'entope mundo de soja e carne'

© AP Photo / Andre PennerTratores operam em campo de soja em Mato Grosso, em 27 de março de 2022
Tratores operam em campo de soja em Mato Grosso, em 27 de março de 2022 - Sputnik Brasil, 1920, 20.11.2024
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A Aliança Global contra a Fome e a Pobreza proposta pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva na Cúpula do G20, no Rio de Janeiro, parece ter sido a principal vitória do Brasil na presidência rotativa do grupo das maiores economias do mundo.
A iniciativa já conta com a adesão de 82 países, 26 organizações internacionais, 9 instituições financeiras e 31 fundações filantrópicas e organizações não governamentais.
No discurso de abertura da cúpula, na última segunda-feira (18), Lula citou dados da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO, na sigla em inglês) que apontam que o mundo convive com um contingente de 733 milhões de pessoas subnutridas e afirmou que a fome é produto de decisões políticas que perpetuam a exclusão de grande parte da humanidade.
Apesar dos avanços na pauta da segurança alimentar, os desafios que se impõem na luta contra a fome e a pobreza demandam mudanças estruturais e que se defrontem com o modelo de desenvolvimento vigente, de acordo com especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil no podcast Mundioka desta quarta-feira (20).

"O mundo nunca produziu tanto alimento quanto agora. E a fome continua lá com os 800 milhões, 700 milhões — oscila um pouquinho, sobe um pouquinho, desce um pouquinho, mas está sempre por ali, entre 700 e 800 milhões de pessoas […]. O problema da fome não é um problema de disponibilidade, é um problema de acesso", disse o coordenador da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, Renato Maluf.

Ele condenou a visão economicista de mercado que muitas nações têm de que atividade econômica e eficiência produtiva são a solução do problema da fome. A adoção de modelos agroecológicos, baseados na agricultura familiar diversificada, que valorizam a sociobiodiversidade, são a chave para a promoção de uma alimentação adequada e saudável, defendeu:

"Esse é um outro caminho, diferente dessa ideia do celeiro do mundo que entope o mundo de soja e carne. Não estou dizendo que não tem que ter soja nem carne. Tem um modelo dominante que é danoso em vários aspectos, inclusive na saúde humana; é isso que precisa ser questionado."

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O economista e diretor da FGV Social, Marcelo Nery, também conversou com a Sputnik Brasil e abordou a contradição brasileira de abraçar as causas do combate à fome e do desenvolvimento sustentável e, ao mesmo tempo, investir no modelo de produção de commodities agrícolas.

"Tem os dois lados da moeda. A fazenda do mundo, no sentido de ser um grande produtor de alimentos, mas remonta também a toda uma tradição de monocultura, de uma sociedade escravocrata. Então [o Brasil] está nos dois lados da moeda, como produtor de alimentos, e isso é um status que tem avançado nas últimas décadas, nos últimos anos; mas também pelo lado de combate à fome, à pobreza, à desigualdade, que são males que afligem o Brasil mais do que deveriam, dado o nosso nível de desenvolvimento", opinou o economista.

Nery argumentou que em um período de 15 anos a extrema pobreza no Brasil caiu à metade, mas a fome até 2022 aumentou, e comentou que a iniciativa do governo anterior, de Jair Bolsonaro, de encerrar programas e instrumentos de promoção da segurança alimentar provou como é fácil retroceder nessa área:

"Acho que o caso brasileiro mostra que quando você desestrutura o combate à fome, por exemplo com o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar, coloca em segundo plano a questão da merenda escolar, do apoio à agricultura familiar, uma série de ações que o Brasil tomava, […] a fome cresce."

Nery frisou que ações bem-integradas são capazes de obter, no curto prazo, avanços importantes, e citou o Bolsa Família como um bom começo para mitigar a fome e a pobreza.
Maluf também defendeu que o enfrentamento dos problemas distributivos é o primeiro passo para encarar o problema:

"O enfrentamento da fome, assim como o enfrentamento da pobreza, são fenômenos que têm múltiplas dimensões, portanto exigem múltiplos instrumentos […]. Nossa sociedade não é desigual por um desígnio divino, você tem causas muito identificáveis […]. É uma desigualdade que tem origem na concentração da propriedade da terra, em questões raciais, que tem origem no solo urbano", argumentou, frisando que o combate à fome deve ser intersetorial e com muita participação social.

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De acordo com o especialista, as commodities são fruto de um padrão "completamente pobre do ponto de vista alimentar".

"É um tipo de alimentação associada com doenças não transmissíveis, como a obesidade. Considero uma falácia dizer que há uma segurança alimentar mundial e um enfrentamento da fome no mundo que pode e deve ser feito por meio da agricultura de larga escala tecnificada, da monocultura, com produtos processados e ultraprocessados e fluxos internacionais sob controle das grandes corporações."

Citando dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), ele destacou que a obesidade hoje mata muito mais do que a fome, cujas principais vítimas são as pessoas pobres.
Sobre a obesidade, o diretor da FGV Social acrescentou:

"É mais complexo do que apenas pessoas sem comida para comer. Fala-se pouco da qualidade e da quantidade de alimentação que passa por hábitos culturais que estão sendo mudados a uma velocidade grande neste mundo de Internet, neste mundo de trabalho remoto", declarou, ao defender que as pessoas também precisam ser informadas e formadas a respeito disso.

Maluf pontuou que mudar essa lógica de baratear produtos nocivos à saúde é um dos maiores desafios, por serem mercadorias de elevado grau de mercantilização e de financeirização em uma realidade na qual a alimentação saudável não é rentável.
Ainda segundo ele, há séculos os alimentos são usados como instrumento de poder, e o não acesso a alimentos pode ser resultado de ações deliberadas de controle.

"Tem, sim, um componente político da fome muito forte, e isso já nos ensinava Josué de Castro, em sua 'Geografia da fome', em 1946, quando dizia que a fome não era produto de nenhum tipo de fatalidade, de nenhum tipo de característica cultural; era fruto da ação humana, fruto de modelos de desenvolvimento", comentou ele ao citar o médico pernambucano, que foi um dos grandes nomes do país no combate à fome, também citado por Lula em seu discurso na Cúpula do G20.

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