Em abril e maio deste ano, Moscou reduziu os ativos em títulos do Tesouro dos EUA de 96 bilhões de dólares (R$ 369,7 bilhões) para 15 bilhões de dólares (R$ 56,2 bilhões). A lista dos 33 maiores detentores de dívida pública publicada pelo Departamento do Tesouro dos EUA já não inclui a Rússia. Paralelamente, o Banco Central russo aumentou significativamente a quota de ouro nas suas reservas internacionais.
Papel dos títulos do Tesouro norte-americanos nas reservas globais
As reservas internacionais de um país representam os ativos financeiros líquidos das autoridades monetárias (geralmente dos bancos centrais) que são mantidos em diferentes reservas, como em moedas estrangeiras (títulos e depósitos), ouro, direitos especiais de saque – unidade de pagamento criado pelo Fundo Monetário Internacional – e posição de reserva no FMI, além de alguns outros ativos.
Esses recursos são utilizados pelo país para cumprimento dos seus compromissos financeiros como a emissão de moeda, para minimizar a volatilidade, bem como para proteger o sistema financeiro dos especuladores. Em geral, é uma espécie de colchão de segurança para amortecer as consequências de choques externos para a economia do Estado.
No sistema financeiro atual, a maioria das reservas internacionais globais está aplicada em títulos da dívida pública dos EUA. Esses títulos são emitidos pelo Tesouro dos EUA para financiar a dívida pública norte-americana. Os EUA podem emitir livremente sua moeda, aproveitando-se de o comércio internacional mundial ser realizado em dólares, o que contribui para a demanda por dólares a nível global. Ou seja, cada país que compra títulos públicos dos EUA financia o déficit dos EUA. Mas por que a comunidade internacional continua financiando a economia dos EUA, apoiando a hegemonia do dólar?
Rússia e desdolarização
A Rússia está tentando diminuir sua dependência da divisa norte-americana depois de Washington e seus aliados terem imposto sanções ao país em 2014. O presidente russo, Vladimir Putin, declarou que Moscou já não pode confiar no sistema financeiro encabeçado pelo dólar norte-americano porque os EUA impuseram sanções unilaterais e violam as regas da Organização Mundial do Comércio.
O primeiro passo foi o aumento das transações em divisas nacionais com os parceiros comerciais da Rússia, reduzindo assim a demanda por dólares desses países.
Como resultado, as transações em rublos na União Econômica Eurasiática (composta pela Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão e Rússia) aumentaram significativamente. Em outubro de 2017, a China abriu em Moscou a primeira divisão do seu Banco de Indústria e Comércio para promover transações em yuanes. Além disso, Moscou já assinou acordos com a Turquia, Irã e Azerbaijão para evitar o uso do dólar nas transações internacionais. Durante a 10ª cúpula dos BRICS, realizada entre 25 e 27 de julho em Johannesburgo, os representantes dos países membros do grupo também discutiram a possibilidade de realizar transações em moedas nacionais em vez do dólar.
Em junho de 2018 o Departamento do Tesouro dos EUA revelou que em abril deste ano a Rússia tinha vendido metade dos seus títulos da dívida pública dos EUA. Desta forma, a Rússia passou de 18º para 22º na lista dos principais credores dos EUA. Em julho de 2018 foi revelado que a Rússia se livrou de mais um terço dos seus títulos dos EUA. Ao mesmo tempo, as reservas de ouro da Rússia atingiram quase 2.000 toneladas. Durante os primeiros seis meses de 2018, o Banco Central russo comprou cerca de 106 toneladas do metal precioso, aumentando a quota de ouro nas reservas internacionais até 18%, e aumentou também suas reservas nominadas em outras divisas, depositadas em bancos centrais de outros países.
Segundo a presidente do Banco da Rússia, Elvira Nabiullina, o objetivo do banco é diversificar suas reservas internacionais.
"Nos últimos tempos, aumentamos significativamente a quota de ouro, praticamente em dez vezes. Estamos diversificando toda a estrutura das divisas [nas reservas internacionais]. Realizamos uma política para que as reservas internacionais sejam armazenadas de forma segura e sejam diversificadas. Levamos em conta todos os riscos: financeiros, econômicos e geopolíticos", disse Nabiullina comentando a venda dos títulos.
Alguns especialistas acreditam que a Rússia vendeu seus títulos do Tesouro dos EUA porque receia que esses ativos possam ser congelados no caso de novas sanções antirrussas. Entretanto, essas medidas são pouco prováveis, porque afetariam a credibilidade dos investidores em todo o mundo no sistema financeiro dos EUA.
Quanto às consequências para a economia dos EUA, a venda dos títulos dos EUA pela Rússia não representa uma grande ameaça para Washington porque, mesmo antes da venda massiva dos títulos, a Rússia ocupava apenas o 18º lugar na lista dos principais credores dos EUA.
Entre os maiores detentores de títulos do Tesouro norte-americano estão a China, que possui títulos no valor de 1,18 trilhão de dólares (R$ 4,5 trilhões). O Japão está em segundo lugar, com $ 1,03 trilhão (R$ 3,8 trilhões). Entre os líderes estão também a Irlanda, Brasil, Suíça, Reino Unido, Índia e Arábia Saudita.
Imaginem que a maioria desses detentores da dívida dos EUA se livraria dos títulos do Tesouro dos EUA. A oferta dos títulos aumentaria drasticamente, fazendo com que eles desvalorizassem. Os rendimentos dos títulos da dívida dos EUA atingiriam nível recorde. Essa situação poderia colapsar toda a economia dos EUA.
Embora hoje esses títulos ainda continuem sendo o ativo mais seguro do mundo, tendo em consideração a guerra comercial desencadeada por Washington contra a China, o maior credor dos EUA, alguns analistas preveem que Pequim também poderia reduzir sua posição em títulos do Tesouro dos EUA, tal como já o fizeram a Rússia e a Turquia. Esse passo seria, verdadeiramente, o início do fim da época do dólar.