Segundo analistas ouvidas pela Sputnik Brasil, embora o mais recente relatório da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) não tenha recolocado o país no Mapa da Fome – criado em 1990 e que mostra países com mais de 5% da população em situação de insegurança alimentar –, o desmonte de políticas públicas associado à crise já se faz sentir em levantamentos nacionais.
"A política social, mesmo nos anos de 2003 até 2013, 2014, 2015, não foi suficiente a política de combate à pobreza para realmente instituir mecanismos que fossem capazes de evitar que, no momento de queda do ciclo, de desaceleração econômica, o impacto sobre a pobreza fosse tão dramático quanto é hoje", avaliou Lena Lavinas, doutora em Economia pela Universidade de Paris e docente de Política Social e Economia do Bem-estar na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Um levantamento recente produzido pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) e pela ONG ActionAid Brasil – baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) – mostrou que a fome hoje já atinge 11,7 milhões de pessoas no Brasil, o que corresponde a 5,6% dos brasileiros.
Contudo, o próprio IBGE – com base na pesquisa Síntese dos Indicadores Sociais – apresentou números ainda piores em dezembro de 2017. De acordo com o instituto, já em 2016 aproximadamente 13,4 milhões de pessoas já viviam em condição de pobreza extrema no país, atingindo 6,5% do total populacional.
Um terceiro estudo, este produzido pela Tendências Consultoria, afirma que a pobreza cresceu em 25 dos 27 estados brasileiros nos últimos 4 anos. Se em 2014 a miséria estava em 3,2%, ela subiu para 4,8% no ano passado, se aproximando dos 5% que é a nota de corte para um país figurar no Mapa da Fome da FAO.
Se encaixa na condição de extrema pobreza aqueles que vivem com menos de US$ 1,90 (R$ 7,12) por dia, conforme índice definido pelo Banco Mundial. Por este índice, em 2016 a instituição colheu dados que apontam para um total de 52 milhões de brasileiros que vivem em tal situação calamitosa.
A piora mostrada por tais índices e pesquisas é explicada pelo calvário que o país começou a viver principalmente a partir de 2015, com a estagnação da economia, o aumento do desemprego e cortes nos investimentos de políticas públicas de assistência social.
Toda essa situação econômica ruim que causou uma queda dos índices sociais foi agravada por medidas de austeridade como a PEC do Teto dos Gastos, aprovada em 2016 e que congela os investimentos em saúde e educação por 20 anos.
"Nós estamos vendo uma desconstrução brasileira, como também as políticas que foram inauguradas que nem bem chegaram a se consolidar e já estão sendo desmontadas também", destacou à Sputnik Brasil Maria Emília Pacheco, mestre em Antropologia Social pela UFRJ e integrante da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE).
Crianças, mulheres e negros: as maiores vítimas
Em seus dados divulgados em dezembro do ano passado, o IBGE apontou que 25,4% dos brasileiros – o que corresponde a um quarto da população – vive mensalmente com apenas R$ 387. A situação de extrema pobreza vitima principalmente negros, mulheres e, sobretudo, as crianças até 14 anos: são 42 milhões (42,4%) de pequenos brasileiros nesta condição precária.
Associado a isso, o aumento da taxa de mortalidade infantil no país em 2016, após 26 anos de seguidas quedas, é considerado por especialistas como um aspecto sintomático do agravamento da pobreza, assim como o índice de mais de 13 milhões de desempregados, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua) do IBGE.
Os maiores atingidos pela pobreza também são os mais dependentes de programas assistenciais, como o Bolsa Família, que beneficia famílias que vivem com renda de até R$ 85/mês – esta é a primeira faixa do programa, ampliado pelos governos dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) a partir da fusão de diversos programas anteriores de auxílio e transferência de renda.
Além do Bolsa Família, o combate à pobreza no Brasil ganhou corpo entre 2003 e 2014 com a valorização do salário mínimo, aos programas de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), Aquisição de Alimentos (PAA), de Alimentação Escolar (PNAE), de cisternas, da aposentadoria rural e o acesso às sementes e às creches.
Para a economista Lena Lavinas, é preciso que o país busque formas de rever as políticas sociais de combate à pobreza, com o foco na efetividade e prioridade dadas a tais programas, principalmente em momentos de crise como a atual. Foi justamente a falta de sustentação de tais ações o "calcanhar de Aquiles" dos avanços conquistados em gestões do PT e hoje parcialmente perdidos.
"Essa tragédia que vivemos hoje de ter 52 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza é uma vergonha para um país de renda média como o Brasil, que tem um sistema de proteção social que, se respeitado, seria capaz de garantir e atenuar esse nível de privação", acrescentou a especialista.
O ponto de vista é compartilhado por Alan Bojanic, representante da FAO no Brasil.
"Hoje, o Brasil é um país de referência em políticas públicas de combate à fome. Mas para que continue no caminho certo e atinja a meta até 2030, é necessário que os investimentos em políticas públicas focadas às populações mais vulneráveis continuem acontecendo de maneira efetiva", analisou, em uma nota divulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU).
O paradoxo agrícola
Em suas linhas mestras, a FAO afirma que "o investimento em agricultura é mais efetivo em reduzir a pobreza, particularmente entre as pessoas mais pobres, do que o investimento em setores não-agrícolas". No Brasil, a produção de riqueza no campo não é um problema: em 2017, um quarto do Produto Interno Bruto (PIB) – R$ 1,65 trilhão – veio do agronegócio.
Contudo, ser um dos 3 maiores produtores e exportadores de alimentos do planeta não vem sendo o suficiente para impedir o crescimento da pobreza e da fome no país. Mesmo com uma safra recorde no ano passado, mais de 65 milhões de brasileiros se alimentam de forma precária, ou seja, não ingerem a quantidade mínima diária de calorias.
De acordo com a antropóloga Maria Emília Pacheco, a agricultura familiar precisa de maiores investimentos e cuidados por parte do governo, sobretudo se for considerada a predileção por parte do Ministério da Agricultura pelos benefícios majoritários aos grandes produtores de monoculturas – um equívoco, segundo ela.
"Talvez pela primeira vez na história do Brasil a gente esteja vendo um conjunto de organizações como Fiocruz, Instituto Nacional do Câncer, alertando sobre o impacto negativo desse modelo de agricultura baseado no monocultivo. Esse é o problema: costumou-se dizer que o Brasil é o celeiro do mundo, que tem uma alta produtividade, mas ninguém fala dos custos ambientais e sociais disso, e essa avaliação econômica é equivocada porque ela é essencialmente restritiva", pontuou, defendendo a agroecologia, que associa agricultura, a diversidade e a proteção de biomas.
O chefe da FAO, o brasileiro José Graziano da Silva, comunga da mesma opinião da antropóloga. "A agricultura familiar é fundamental para o desenvolvimento sustentável em muitos aspectos, incluindo a erradicação da pobreza, a fome e todas as formas de má nutrição, além da preservação dos recursos naturais e da biodiversidade", opinou durante a reunião ministerial sobre agricultura familiar da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP).
O próprio governo brasileiro reconhece a importância disso. Conforme mostrou o mais recente Censo Agropecuário, a agricultura familiar responde por 90% da economia de cidades do país com até 20 mil habitantes. E não é só: ela é a base da renda de 70% dos brasileiros que trabalham na zona rural e de 40% da população economicamente ativa do Brasil.
Associado à discussão em torno das monoculturas e à importância da agricultura familiar, a violência no campo e as disputas agrárias também causam impacto na fome e no combate à pobreza no país. Graziano costuma sempre destacar que "a violência e o conflito são a principal causa da fome no mundo atual".
"Há uma estreita relação entre paz e segurança alimentar. Toda a vez que nós vemos aumentar a insegurança alimentar devido às guerras, principalmente, e ao impacto das mudanças climáticas, à seca sobretudo, o número de pessoas [que passam fome] também aumenta", resumiu em um comunicado recente da ONU.
Erradicar a pobreza e a fome é um dos 8 objetivos centrais deste milênio, segundo acordo fechado por 193 países membros da ONU em 2000, com o apoio de diversas organizações internacionais. Passados 18 anos do acerto, vê-se que o caminho neste sentido ainda é longo e incerto.