Na opinião do cientista político Marco Antônio Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o termo 'à deriva' é o que melhor define o primeiro mês da era Bolsonaro. Além de demonstrar muita insegurança para apresentar planos concretos, o governo viveu uma série de idas e vindas nas mais diversas áreas. Nem mesmo o ministério do poderoso economista Paulo Guedes, o "Posto Ipiranga" do presidente.
"Aquela área que é mais robusta, que é a da economia, cuja equipe é mais heterogênea… parece que o governo ainda bate cabeça, sobretudo quando o tema é aquele que é o principal para área econômica no momento que é a Reforma da Previdência", avaliou Teixeira à Sputnik Brasil.
A própria Reforma da Previdência é vista como crítica e fundamental para o sucesso do governo do ex-capitão do Exército Brasileiro. Contudo, ainda há muitas incertezas. Ao longo do mês, Bolsonaro deu sinais dúbios. Em sua primeira viagem internacional, ao Fórum Econômico Mundial (FEM) em Davos, na Suíça, ele indicou que os militares não estariam na primeira parte da reforma.
Já na última quarta-feira, o secretário especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho, garantiu que Bolsonaro pediu a inclusão dos militares na reforma. A contribuição dos militares já havia sido defendida em janeiro pelo vice-presidente Antônio Hamilton Mourão (outro que teve uma polêmica para chamar de sua), um dos vários contrapontos feitos por ele ao presidente da República.
"Ele [Bolsonaro] não conseguiu apresentar nenhuma proposta. O pessoal do mercado esperava que ele já chegasse com um plano econômico fechado. Já estavam assim: na campanha ele não falou porque era impopular, mas agora vai chegar com o plano, mas não teve", afirmou o doutor em sociologia pela Universidade de Oxford, Celso Rocha de Barros, à Sputnik Brasil.
Do plano de 35 medidas para serem implementadas nos primeiros 100 dias do governo, apresentado em janeiro pelo ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, apenas duas de fato saíram do papel: a assinatura da medida provisória que fará um pente-fino no Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), e o decreto que flexibiliza a posse de armas no Brasil, uma de suas promessas de campanha.
Morde e assopra
As polêmicas não pararam por aí. Apesar dos elogios por possuir um ministério de 22 pastas (ante as 27 do antecessor, Michel Temer, mas longe das 15 prometidas na campanha eleitoral), Bolsonaro recebeu críticas pela transferência da atribuição de demarcações de terras indígenas e quilombolas para o Ministério da Agricultura, assim como pelo monitoramento de organizações não-governamentais (ONGs) prometido pela Secretaria de Governo.
Dentro dos ministérios não faltaram desencontros. No da Educação, o ministro Ricardo Vélez Rodriguez já teve de lidar com os reflexos de um decreto que flexibilizava o número de erros em livros, da retirada da nomeação de Murilo Resende para o posto de diretor do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), e de declarações desastrosas suas, como a que indicou que a universidade no Brasil não é para todos.
No Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves também colecionou afirmações polêmicas – algumas delas dadas no passado, como a que envolvia a masturbação de crianças pelos pais na Holanda.
Tais ministros ganharam cargos no governo Bolsonaro graças à força de diversas facções que integram a base, que podem ser divididas entre três a sete grupos distintos, dependendo do ângulo da análise. Tal fragmentação já expôs vários rachas, e isso pode se agravar, de acordo com os especialistas ouvidos pela Sputnik Brasil.
"O interesse dele [Bolsonaro] com o olavismo [movimento conservador de direita do ex-astrólogo e filósofo Olavo de Carvalho, considerado guru do pensamento bolsonarista] não tem gerado bons resultados, até agora pelo menos. O Ministério da Educação teve que demitir um cara já, um cara que eles escolheram para organizar o Enem, que era tão maluco que ele não conseguiu emplacar o cara, e isso não era nem a terceira semana de governo. Foi um começo bastante ruim, não sei como vai ser daqui por diante", explicou Celso Rocha de Barros.
A fricção já latente dentro do governo – amplificada por episódios como a ida de parlamentares do PSL à China, criticada por Bolsonaro e o próprio Olavo de Carvalho – deve ter uma prova de fogo já em fevereiro, quando começa a nova legislatura do Congresso Nacional. Carro-chefe das medidas do governo, a Reforma da Previdência não parece ser capaz de unir as diferentes facções, por enquanto.
"Olha, já está expondo [os rachas] até o presente momento, sobretudo os militares, porque o grande embate é saber se os militares entram ou não na reforma. E aí esse embate é muito interno no governo, porque hoje o grupo militar é o principal grupo presente no governo, o grupo que talvez tenha uma maior coerência em termos de atuação governamental, que sabe o que está fazendo no governo. Então essas divisões já estão postas para a sociedade. Acho que o grande desafio para o governo é mostrar que ele quer conduzir uma reforma na qual o sacrifício dela sejam divididos para todo mundo. E, ao que parece, isso vai ser bastante difícil", pontuou Marco Antônio Teixeira.
Cadê o Queiroz?
Entretanto, nenhum episódio marcou tanto o primeiro mês do governo Bolsonaro quanto a trama em torno das movimentações financeiras do ex-policial militar Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) – filho do presidente –, e amigo pessoal do próprio ex-capitão do Exército Brasileiro. Até o momento, nem Flávio ou Queiroz prestaram depoimento ao Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ), e o senador chegou a pedir a anulação de eventuais provas junto ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em Davos, onde Bolsonaro fez sua primeira aparição internacional sem causar grande impacto entre investidores e lideranças internacionais (salvo às de direita europeias, mais alinhadas ideologicamente e com as quais teve vários encontros), o presidente indicou que o filho, se errou no caso Queiroz, terá de pagar. Ele não voltou a falar, porém, sobre o depósito de R$ 24 mil feito pelo ex-assessor de Flávio na conta da primeira-dama, Michelle Bolsonaro, que supostamente seria parte do pagamento por um empréstimo.
Para os analistas ouvidos pela Sputnik Brasil, o desgaste sem fim envolvendo Flávio Bolsonaro já arranhou a imagem do governo, que se elegeu com uma pauta que pregava fortemente o combate à corrupção. Um decreto que fragiliza a Lei de Acesso à informação, assinado por Mourão e que permite que servidores comissionados (de confiança e de livre nomeação) possam classificar documentos como ultrassecretos e secretos, só maculou a imagem presente da retórica eleitoral.
"O episódio envolvendo o Flávio Bolsonaro ficou sem resposta, permanece sem resposta, e a reação da família foi exatamente a mesma que a família utilizava para atacar os adversários. Ou seja, atacava-se lá atrás os parlamentares por se esconderem atrás do foro privilegiado, de não dar informações, e família acabou optando por este caminho também. Isso de certa forma enfraquece o discurso, enfraquece a posição do [ministro da Justiça Sérgio] Moro e deixa o governo, digamos assim, entrar em uma linha em termos de imagem que não o diferencia muito de governos anteriores", apontou Marco Antônio Teixeira.
"Não me lembro de ninguém que tinha empregado miliciano", acrescentou Celso Rocha de Barros, referindo-se ao fato de que Queiroz integrou o mesmo batalhão do ex-PM Adriano Magalhães da Nóbrega, foragido da Justiça e apontado pelo MP-RJ como um dos chefes do Escritório do Crime, a mais temida milícia da zona oeste do Rio. A mãe e a mulher de Nóbrega trabalharam no gabinete de Flávio Bolsonaro, que também prestou homenagem ao então policial na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). O próprio Bolsonaro pai, em discurso na Câmara dos Deputados, já havia defendido o miliciano.
Com forte atuação em Rio das Pedras, o Escritório do Crime é principal suspeito de ser a organização criminosa que executou a vereadora do PSOL, Marielle Franco, e o seu motorista, Anderson Gomes, no centro da capital fluminense há quase um ano. Suspeita-se que Queiroz tenha se escondido justamente na comunidade da milícia, logo após o estouro do escândalo em torno de suas movimentações financeiras apontadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
"O problema é o seguinte: quem se envolveu em corrupção foram eles mesmos. Era a família presidencial. Se a pessoa fosse ministro você demitia o cara. Mas são eles mesmos. Quer dizer, o presidente da República empregava a filha do Queiroz, e ela era funcionária fantasma, ela era personal trainer no Rio e assinava o ponto em Brasília. Então, assim, aquela reputação você não reconstrói não, a não ser junto com a militância mais fanática que vai acreditar em qualquer coisa que eles digam. Aquela imagem do cara que, tudo bem, podia ser meio maluco, mas pelo menos era honesto, isto não cola mais", complementou o doutor em sociologia pela Universidade de Oxford.
Tragédias ambientais e humanitárias
Outros temas que movimentaram o primeiro mês do governo Bolsonaro não foram protagonizados por ele, mas acabaram herdados. Um exemplo é a tragédia na cidade mineira de Brumadinho, onde, há uma semana, uma barragem de rejeitos da Vale se rompeu, matando dezenas de pessoas e causando uma destruição ambiental só comparável ao desastre de Mariana, também em Minas Gerais, três anos antes.
A situação de Brumadinho colocou um freio no discurso de combate às políticas ambientalistas encampados por Bolsonaro e seus aliados ao longo da campanha. O cientista político da FGV, ouvido pela Sputnik Brasil, relembrou que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, foi uma indicação com o aval da Frente Parlamentar Agropecuária, como também é conhecida a Bancada do Boi.
A ideia de flexibilização de licenciamentos ambientais, do fim da "indústria da multa" alardeada por Bolsonaro ao longo do pleito eleitoral, tudo em prol do desenvolvimento econômico do país e da produção de mais commodities para exportação parece, por ora, em compasso de espera – no momento, há um discurso favorável ao endurecimento da legislação que trata da mineração no Brasil, por exemplo.
Bem mais ao norte do país, a crise dos refugiados na Venezuela acabou também herdada por Bolsonaro, cujo governo já reconheceu Juan Guaidó – presidente da Assembleia Nacional venezuelana e opositor do atual morador do Palácio Miraflores, Nicolás Maduro – como presidente de fato do país caribenho. A troca de farpas entre o presidente brasileiro e o herdeiro político de Hugo Chávez já rendeu até ofensas pesadas, como quando Maduro comparou Bolsonaro ao líder nazista Adolf Hitler.
As críticas ao governo Maduro, aliás, integram o alinhamento com os Estados Unidos, prometido por Bolsonaro ao longo da campanha – sempre que pode, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), outro filho de Jair, tece provocações ao governo de Caracas. Para Celso Barros de Barros, a aproximação não solicitada por Washington, em detrimento à China – principal parceiro comercial do Brasil – pode se tornar um tiro no pé para o governo brasileiro.
"Os filhos são outra fonte de tensão porque são muito mais radicais do que ele, mais ideológicos, então eles ficam pressionando para indicar o cara do Olavo de Carvalho, a fazer qualquer coisa que os EUA queiram, eles ficam deslumbrados em ser recebidos no Departamento de Estado, e não tem como demitir os filhos. Isso tudo é maluquice. Se o Brasil não estivesse na crise, atordoado, tudo isso seria piada. Nem os EUA querem esse tipo de apoio que eles querem dar, eu acho", sentenciou.
"Quem está comprando [do Brasil] são os chineses. Isso não tem a menor… é até ridículo, não tem nem o que dizer. É um discurso completamente descolado da realidade e que vai ter que ser [revisto]. Se o cara [Bolsonaro] levar isso a sério, aí quebra o país. Se ele ficar de gracinha comercial com a China, com os árabes, aí tchau. Aí a crise é feia mesmo. Aí é um negócio de como foi essa última. Mas acho que ele não vai chegar nesse ponto, os próprios militares dão uns 'cascudos' nele", acrescentou.
Para que o Brasil possa sair do que Barros classificou como "pesadelo", como se referiu ao primeiro mês da era Bolsonaro, Marco Antônio Teixeira previu que o desafio do governo está mesmo no Congresso Nacional, e com o andamento da Reforma da Previdência. É isto que vai dar o tom do que virá para o futuro, seja para o bem ou para o mal.
"Diria que a Reforma da Previdência vai dar o tom do que vem por aí. Se ela tiver muita dificuldade para ser aprovada e o governo tiver de fazer muita concessão, isso vai contaminar os outros debates. E o custo da governabilidade tende a ser muito mais alto. Agora, o governo tem um desafio de governabilidade que é, digamos assim, enigmático, porque o governo não fez maioria negociando com os partidos. E toda a governabilidade dentro do processo legislativo está baseada nas bancadas partidárias", disse o cientista político da FGV.
É isso ou o governo Bolsonaro tende a reprisar o janeiro "à deriva" por mais tempo.