O projeto de lei que realizou essas alterações foi apresentado pelo então deputado federal Osmar Terra, em 2010. Ele foi aprovado em 2013, durante a presidência de Dilma Rousseff (PT), mas só avançou e ganhou força no Senado em 2019, com Bolsonaro (PSL) como presidente e Terra como ministro da Cidadania.
O que mudou?
Fica autorizada a internação forçada de dependentes químicos em unidades de saúde e hospitais gerais, desde que com autorização médica e pelo prazo máximo de 90 dias. Ela é prevista apenas em casos de "impossibilidade de utilização de outras alternativas terapêuticas previstas na rede de atenção à saúde". Antes, a internação forçada dependia de autorização judicial ou da permissão de um familiar.
As internações forçadas são proibidas nas comunidades terapêuticas, que passaram a ser reconhecidas como um local de "oferta de projetos terapêuticos ao usuário ou dependente de drogas que visam à abstinência."
O texto estabelece que tanto a internação voluntária quanto o atendimento nas comunidades terapêuticas deve ser requisitados por escrito pelo paciente.
A legislação aprovada pela Câmara também previa "prioridade absoluta" para que as comunidades terapêuticas utilizassem serviços do Sistema Único de Saúde (SUS) na realização de avaliação médica. Este ponto acabou vetado por Bolsonaro.
O presidente também vetou artigo que previa diferenciação de pena para usuários e traficantes de drogas.
Os vetos serão analisados pelo Congresso Nacional e podem ser mantidos ou derrubados.
O que é comunidade terapêutica?
"Comunidade terapêutica é um espaço de acolhimento voluntário, isso precisa ficar claro nessa confusão do cenário nacional. Qualquer tipo de internação involuntária ou compulsória não é em comunidade terapêutica. É um espaço que tem um modelo psicossocial de atendimento para dependentes químicos, pessoas que tem problemas em um estágio mais avançado da problemática da droga", afirma Pablo Kurlander, psicólogo e membro da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (Febract).
O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) publicou em 2017 uma nota técnica com o perfil das comunidades terapêuticas. O levantamento indica que, em 2009, havia cerca de 2 mil estabelecimentos que se definiam como comunidades terapêuticas e dados levantamentos com 500 destes locais mostram algumas características em comum: elas costumam ser locais espaçosos, com mais de 1.000 metros quadrados, e 43,3% das comunidades terapêuticas têm de 31 a 70 vagas.
O tipo mais comum de quarto nestas instalações são habitações para 4 a 6 pessoas, presentes em 73,2% das comunidades terapêuticas.
A fé costuma ser um elemento central das comunidades terapêuticas: 82% delas têm vínculo com igrejas e organizações religiosas enquanto 17% destes espaços declaram não ter qualquer orientação religiosa específica ou vinculação com qualquer igreja.
Desde 2011, o governo federal investe dinheiro público nas comunidades terapêuticas, mas as cifras aumentaram consideravelmente nos últimos anos. Dados compilados pelo Nexo mostram que as comunidades terapêuticas receberam R$ 34,5 milhões em 2013 e devem receber R$ 148 milhões em 2019 do governo federal.
Apesar de poderem receber recursos públicos, as comunidades terapêuticas são instituições privadas.
Indícios de tortura e cárcere privado
Relatório publicado em 2018 de maneira conjunta pelo Ministério Público Federal (MPF), Conselho Federal de Psicologia (CFP) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) apontou a existência de casos de cárcere privado e indícios de tortura.
A iniciativa visitou 28 comunidades terapêuticas e afirma em seu relatório que em apenas quatro delas é possível afirmar "não foram presenciadas ou registradas restrições à liberdade religiosa". O relatório também aponta que em metade dos locais visitados "não há respeito à diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero." Em 16 dois locais visitados foram colhidos informações de práticas de castigo aos internos e casos de violência física foram relatada em duas unidades.
O relatório também aponta que há "um contingente de usuários de drogas enviados a comunidades terapêuticas por determinação judicial com o objetivo de suposto tratamento de dependência química."
Kurlander, da Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas, contesta o relatório. Ele afirma que o documento tem um "viés". "Quando o Conselho [Federal de Psicologia] vai com a prerrogativa de encontrar problemas, qualquer serviço de qualquer área da saúde no Brasil, seja público ou privado, vai ter algum problema."
O membro da Febract também diz que foram escolhidas para visita comunidades terapêuticas que já apresentaram problemas, criando uma "amostragem comprometida" para a pesquisa.
Kurlander ressalta que há locais que se autodenominam comunidades terapêuticas, embora não possam receber esse nome porque não atendem a requisitos mínimos.
'Lógica manicomial'
O psicólogo Paulo Aguiar defende uma abordagem de redução de danos para o tratamento de dependentes químicos e afirma que há uma continuidade da "lógica manicomial" com as comunidades terapêuticas.
"Qual é a ideia da lógica manicomial? Afastar as pessoas do convívio social, afastar da possibilidade de uma interação social com os demais, entendendo que essas pessoas [internadas] precisam estar à margem da sociedade e de qualquer processo de inclusão e interação social", diz Aguiar, que também é conselheiro do CFP.
"O problema é que isso é uma ilusão, a vida se dá no dia a dia das cidades, na rotina da minha realidade, do meu território, a minha rua, o meu bairro, onde eu vivo", diz Aguiar. "Quando o sujeito volta, o ambiente continua o mesmo. A rua dele, a casa, as relações que ele estabeleceu, a realidade continua."