Postura do MEC com o Enem aprofunda desigualdade e pode impulsionar COVID-19, dizem entidades

Após pressão, o Enem de 2020 foi adiado pelo governo federal. A postura original do Ministério da Educação (MEC) contrasta com a realidade dos estudantes. A Sputnik Brasil consultou uma rede de cursinhos populares, um infectologista e uma ONG de educação sobre a possibilidade do Enem ocorrer em meio à pandemia.
Sputnik

Os principais exames de ingresso em universidades no mundo foram cancelados ou adiados diante da pandemia do novo coronavírus. Entre eles, o SAT, nos Estados Unidos, e o Gao Kao, na China. No Brasil, o Enem só foi adiado após pressão de movimentos sociais. De início, a postura do MEC, liderado pelo ministro Abraham Weintraub, tentou manter o exame em novembro deste ano sob o mote de que "o Brasil não pode parar".

Após a aprovação no Senado Federal do adiamento do exame, o governo decidiu recuar e adiou a prova para uma data ainda não definida, entre dezembro deste ano e janeiro de 2021.

"O adiamento do Enem foi resultado de ampla mobilização social, se dependesse do MEC tudo seria mantido", afirma Salomão Ximenes, professor da UFABC e membro da Ação Educativa, organização que promove o acesso à educação no Brasil.

Para Ximenes, o adiamento da prova é "absolutamente insuficiente" e pode agravar as desigualdades sociais no exame devido à pandemia. O professor universitário defende a instalação de uma ampla comissão de coordenação federativa e social com as principais entidades do setor para planejar ações relacionadas ao Enem, levando em conta a evolução da pandemia.

"Medidas de reparação aos estudantes potencialmente mais prejudicados, com ampliação da reserva de vagas a alunos de escolas públicas e de baixa renda, por exemplo, e coordenação com os calendários letivos das universidades e faculdades, a serem definidos", aponta Ximenes, que também integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU).

Posição de Weintraub potencializa desigualdades e pressiona estudantes pobres

Uma das entidades educacionais que se posicionou pelo adiamento do Enem foi a UNEAFRO. A organização é uma das maiores redes de cursinhos populares do Brasil, atendendo mais de 1,5 mil alunos de baixa renda nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.

Postura do MEC com o Enem aprofunda desigualdade e pode impulsionar COVID-19, dizem entidades

Adriano Sousa, coordenador de núcleos nas regiões de São Mateus e Sapopemba, na periferia de São Paulo, explica que a COVID-19 fez com o que a maior parte dos mais de 30 núcleos de ensino do grupo fossem paralisados. 

Mesmo com os esforços de professores, a realidade social dos alunos durante a pandemia gerou uma "baixíssima" adesão às aulas via Internet. Os estudantes lidam com falta de dinheiro, trabalho precoce, problemas de acesso à Internet e escassez de plataformas para assistirem às aulas.

É a partir desse contexto que Adriano critica a postura do MEC em relação ao Enem.

"Infelizmente essa questão do Enem é mais uma das frentes em que o governo Bolsonaro está brincando com a vida da população. Está tripudiando e dando pouca importância para a vida da maioria da população, principalmente a população pobre e dentro desse grupo, a população negra", afirma o coordenador da UNEAFRO em entrevista à Sputnik Brasil.

Diante das dificuldades dos alunos, a organização tem se empenhado em garantir apoio psicológico aos estudantes e gerir um sistema de distribuição de cestas básicas em torno dos núcleos de ensino estabelecidos nas periferias de São Paulo e Rio.

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Em torno dessas dificuldades, os estudantes pobres acumulam a pressão comum do vestibular com a pressão pelo sacrifício e pela superação, uma cruel exigência social fomentada pela postura do MEC, aponta Adriano.

"Você tem essa pressão social contra [o estudante] também, de uma sociedade ideologicamente doente que acha que o sacrifício além daquilo que o indivíduo pode ou tem possibilidade é algo que ele tem que fazer, e [isso] é mais um fator de pressão sobre os estudantes. E essa decisão do Weintraub de manter o Enem até o último minuto potencializa esse conflito social e ideológico que a gente está vivendo", explica.

Fazer o Enem de luto e com família desempregada

Apesar do recuo concretizado na aceitação em adiar o Enem, o governo anunciou uma espécie de plebiscito entre os inscritos sobre o adiamento, o que a UNEAFRO também critica, apontando que o debate no Congresso Nacional seria mais adequado para encontrar as melhores soluções para o problema.

"É péssimo [o plebiscito]. A gente preferiria que fosse aprovado um projeto de lei, algo mais sólido, algo que partindo do Congresso representaria a vontade da sociedade, que representaria a vontade de todos os grupos que reivindicaram o adiamento do Enem", aponta.

Questões como a definição do final do ano letivo em meio a um período de incertezas estão entre as arestas que ainda preocupam os educadores. Para Adriano, a discussão no Congresso facilitaria a resolução desses problemas específicos.

"Haveria toda uma discussão no Congresso sobre o que seria esse fim do ano letivo, haveria outras propostas de emendas para melhorar o projeto de lei para que houvesse um prazo minimamente decente para que os nossos estudantes pudessem sentar a b***a na cadeira e estudar", diz o coordenador da rede de cursinhos populares.

A possibilidade de uma prova digital também é criticada pelo dirigente da UNEAFRO, que afirma que o atual regime de ensino à distância em São Paulo, por exemplo, "é um fiasco" e poucos estudantes podem acessar os conteúdos de forma adequada.

Postura do MEC com o Enem aprofunda desigualdade e pode impulsionar COVID-19, dizem entidades

Com um cenário de precariedade no acesso à tecnologia, entram ainda em cena o desemprego que cresce entre os mais pobres, forçando jovens a trabalharem ao invés de estudarem, e a própria morte nas famílias, que se espalha entre os estudantes de baixa renda e cobra o preço do luto.

"O resultado dessa pandemia vai ser, infelizmente, a morte de muitas pessoas queridas. Então soma-se a tudo isso o trauma de lidar com memória de morte na família, entre entes queridos. Então isso também tem que entrar na equação como algo que vai atrapalhar o desempenho nas provas", diz.

Enem em dezembro pode ocorrer em meio a tragédia, diz infectologista

O infectologista Éder Gatti, presidente do Sindicato dos Médicos de São Paulo (SIMESP), afirma que aglomerações como a que o Enem causaria não poderão acontecer enquanto a maioria da população não tiver imunidade. Em 2019, o exame teve mais de 5 milhões de inscritos.

"Enquanto o vírus estiver circulando e a gente tiver pessoas suscetíveis na população, não tem como a gente fazer qualquer tipo de aglomeração. Então a prova deve ser feita depois que houver um controle da doença na comunidade", explica o infectologista e médico do Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, em entrevista à Sputnik Brasil.

O médico diz que não é certo que mesmo em dezembro haja condições para a realização de uma prova como o Enem de forma presencial e que por isso, em sua opinião, a data da prova deve se manter flexível.

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Gatti explica que, partindo do pressuposto de que alguém que já foi infectado pela COVID-19 desenvolva imunidade à doença, apenas quando 70% da população estiver imunizada é que a doença estará sob controle.

"Isso só pode ser feito de duas formas: ou 70% das pessoas pegam a doença, ou é inventada uma vacina que imuniza e proteja 70% das pessoas. [...] Quando a gente vai chegar nesse patamar nós não sabemos", aponta o médico, que alerta que há estudos que projetam que o isolamento possa continuar de forma intercalada por até dois anos.

Diante dessas informações, o médico acredita que seja possível que a doença avance no Brasil para além dos 70% até dezembro, uma vez que ele considera as medidas de isolamento no país como "fracas".

"Se até dezembro a gente tiver esgotado a COVID-19 no Brasil, daria sim para fazer a prova do Enem. Só que se a gente chegar até dezembro com 70% da população já tendo tido a COVID-19, você pode ter certeza que a gente vai ter registrado uma grande tragédia nos meses anteriores", aponta o infectologista.
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