Em um discurso dirigido a um grupo de diplomatas alemães na segunda-feira (25), o chefe das Relações Exteriores da União Europeia, Josep Borrell, ressaltou que a "pressão para escolher um dos lados está crescendo", prevendo a chegada de "um século asiático" devido à pandemia da COVID-19.
Borrell exortou o bloco a "seguir seus próprios interesses e valores e evitar ser instrumentalizado por um ou por outro lado".
Falando do provável advento de um "século asiático", disse ele:
"Precisamos de uma estratégia mais robusta quanto à China, o que também requer melhores relações com o resto da Ásia democrática [...] Os analistas falam há muito do fim do sistema liderado pelos americanos e da chegada de um século asiático. Isso está agora acontecendo diante dos nossos olhos".
As observações ecoaram as próprias declarações de Borrell no início do mês, em um artigo de opinião publicado no diário Sydney Morning Herald, em que advertiu os Estados-membros da UE contra permitir que Pequim aproveitasse a tensão diplomática entre eles em relação à resposta à pandemia.
No artigo, Borrell elogiou a China como um "país parceiro", mas advertiu os Estados-membros da UE que eles devem "agir conjuntamente contra as superpotências", mantendo "a disciplina coletiva necessária".
Mudança radical 'improvável'
Comentando as palavras de advertência do alto diplomata da UE sobre a necessidade de a UE estar muito consciente de ser apanhada em uma armadilha entre a China e os EUA, o professor Kerry Brown, diretor do Instituto Lau China no Colégio do Rei de Londres, e associado do Programa Ásia-Pacífico na Chatham House, ambos no Reino Unido, acredita que a UE está simplesmente reconhecendo um problema muito antigo.
Acerca da disputa comercial entre China e EUA, ele ressalta à Sputnik Internacional que a União Europeia tentou se equilibrar entre os dois, mas no fim o enorme poder diplomático, econômico e de segurança dos Estados Unidos significa que é muito difícil "se afastar muito do lado americano". Isto é verdade mesmo em uma área onde o interesse próprio deveria prevalecer, como a economia.
"Embora este tipo de afirmação seja importante e significativo, também tem de se reconhecer que é realmente difícil ver um cenário a médio prazo em que os europeus, coletivamente ou no seio dos Estados individuais, sejam realmente capazes de se afastar do tipo de relação de segurança extremamente importante que têm com os Estados Unidos através da OTAN ", diz Brown.
O professor sugere que as declarações feitas em meio à crise pandêmica da COVID-19 devem ser interpretadas com cuidado.
"Pode ser que Borrell esteja simplesmente reconhecendo que é necessário repensar a forma de trabalhar com a China [...] Mas é pouco provável que isso altere radicalmente o tipo de segurança que a América proporciona aos europeus, e certamente não no futuro a curto e médio prazo", acredita Kerry Brown.
Integração política a nível europeu
Comentando a declaração de Joseph Borrell sobre a probabilidade de "fim do sistema liderado pelos americanos e da chegada de um século asiático", Roberto Castaldi, diretor do Centro de Pesquisa em Integração Multinível e Processos de Governança da Universidade eCampus, Itália, acredita que esta é uma tendência que já vem ocorrendo há algum tempo, com uma série de poderes tentando estabelecer essa hegemonia.
Isto é igualmente verdade para a China e os EUA, diz ele à Sputnik, enquanto no caso da Europa, a União Europeia está procurando promover o multilateralismo, a cooperação e a governança global.
Diante dos desafios da pandemia do coronavírus, a UE terá sucesso com sua recuperação, ao mesmo tempo que ajuda a fortalecer a governança global de forma cooperativa, diz o especialista, em vez de dar espaço à luta hegemônica entre a China e os EUA.
Em relação à declaração de Joseph Borell sobre a "pressão para escolher um lado", Roberto Castaldi acredita que é mais uma questão de a própria Europa não fazer uma escolha própria.
Segundo ele, a Europa é atualmente como um "prêmio" que tanto a China como os EUA estão tentando obter, enquanto a Europa pretende desenvolver sua própria unidade política e estratégica e, portanto, sua autonomia.
Do ponto de vista dos valores, do sistema político, a UE está muito mais próxima dos EUA do que da China, e o fator Trump não deve ser esquecido, acredita Roberto Castaldi, acrescentando:
"A UE e os EUA vão juntos no longo prazo, mesmo que haja casos específicos [em] que eles não [...] Os EUA não garantem mais a segurança europeia, especialmente no Oriente Médio e no Norte da África [...] portanto, a Europa precisa cuidar de sua própria segurança".
"Não é por acaso que nos últimos três anos iniciamos a cooperação estruturada em matéria de defesa com cerca de 40 projetos de cooperação militar, cooperação da indústria de defesa. É este o caminho. Precisamos de ter integração política a nível europeu", comenta.
Em relação à cooperação econômica entre a UE e a China, Castaldi acredita que vai continuar, mas a Europa terá muito mais cuidado do que no passado para definir suas próprias regras, como uma economia de mercado.
Avanços da Ásia
Fraser Cameron, ex-conselheiro da Comissão Europeia e professor adjunto da Escola Hertie em Berlim, Alemanha, também comentou a declaração de Borrell sobre "o fim de um sistema liderado pelos americanos e a chegada de um século asiático".
Cameron chama isso de simples constatação dos fatos, e sugeriu olhar para a proporção do PIB global de agora comparada com o de há 10, 20 anos.
"A Ásia está avançando muito rapidamente. Proporcionalmente, os Estados Unidos e a Europa estão ficando para trás [...] A Europa não quer escolher lados [...] A Europa não vê a China como um rival estratégico ou uma ameaça, como os Estados Unidos. A UE quer continuar as relações comerciais com a China", diz Cameron.
O ex-conselheiro da Comissão Europeia acredita que a UE não é ingênua com a China, e espera garantir que seu relacionamento seja baseado em seus próprios princípios.
Embora se possam tomar algumas medidas defensivas quando se sente ameaçada em questões comerciais pela China, não há ninguém na Europa argumentando que isso deveria ser uma espécie de "guerra fria" com a China, diz ele, e que a UE deveria estar do lado dos Estados Unidos.
"Esta é uma doutrina da administração Trump, por isso há muita pressão. Isto pode mudar em poucos meses. Por isso, no momento, acho que a Europa está em um compasso de espera e quer ver qual será o resultado das eleições nos EUA".
'Mestre e intimidador'
Falando do declínio do "sistema liderado pelos americanos", Jeff J. Brown, editor do podcast China Rising Radio Sinoland e produtor do portal China Tech News Flash!, diz que o processo não começou com Trump e o coronavírus, e que já existe há pelo menos décadas. Ele acrescenta que o lado chinês está tentando se oferecer como uma "alternativa viável e vencedora para o ditame dos EUA", mas a pressão só vem do lado norte-americano.
"Os EUA não são aliados da UE. São seu mestre e intimidador", diz Brown. "A UE nunca foi capaz de "assegurar seus próprios interesses [pós-guerra]".
Embora a UE valorize sua cooperação comercial com a China e, se estivesse sozinha, talvez buscasse aumentar uma cooperação que beneficiasse todos os envolvidos, acredita Jeff Brown, mas a UE é um estado subserviente dos EUA e não pode fazer isso (5G é um grande exemplo) sem "obter permissão dos ianques".
A UE não pode reequilibrar seu relacionamento com a China porque os EUA não o permitirão, sublinha o comentador político.