A intensificação da crise causada pela pandemia de COVID-19, com a escalada no número de mortes e a lentidão na aquisição de vacinas pelo país, tem feito o presidente Jair Bolsonaro rever conceitos e ajustar discursos.
Se no início deste mês, em 4 de março, ele classificou como "idiota" quem pede para comprar vacina, afirmando que não há imunizantes no mundo, agora, com a forte pressão do centrão pela vacinação em massa, Bolsonaro já avalia nomes para substituir Ernesto Araújo no Ministério das Relações Exteriores.
Para os parlamentares, o chanceler está desgastado no cenário internacional e não tem mais capacidade de ajudar o Brasil na articulação pela aquisição de novas vacinas.
Na última quarta-feira (24), o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), fez um discurso contundente com críticas à atuação do governo federal na pandemia, pressionando por medidas efetivas e ameaçando com "remédios políticos amargos" e "fatais".
"Estou apertando hoje um sinal amarelo para quem quiser enxergar: não vamos continuar aqui votando e seguindo um protocolo legislativo com o compromisso de não errar com o país se, fora daqui, erros primários, erros desnecessários, erros inúteis, erros que são muito menores do que os acertos cometidos continuarem a serem praticados", disse Lira em discurso no plenário da Câmara.
O cientista político Fernando Luiz Abrucio, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), avalia que Araújo é apenas "um fio de uma história maior". Para o especialista, os líderes do centrão perceberam que o presidente está perdendo popularidade e o apoio de setores econômicos com os novos impactos da crise.
O professor explica que os partidos que compõem o bloco, como o Progressistas de Lira, são pragmáticos e já estão de olho nas eleições de 2022.
"O país vai sofrer um impacto muito grande com a pandemia nos próximos meses. Eles pensaram: 'Vamos passar três meses apanhando de todos os lados?' Uma parte do centrão achava que podia apoiar o Bolsonaro em 2022, mas surgindo uma narrativa antibolsonarista na política brasileira, eles não vão até o fim. O centrão pode ir até o enterro, mas não vai ser o morto", afirmou Abrucio em entrevista à Sputnik Brasil.
O cientista político acredita que Bolsonaro vai "esticar a corda" até onde for possível para a permanência de Araújo no ministério. Porém, uma ameaça real de abertura da CPI da Covid pode selar de uma vez por todas a troca.
"O presidente não está convencido disso [saída de Araújo]. Ele só toma a decisão no último minuto após muita pressão. Pensando no estilo dele, ele pode demitir o Ernesto se falarem na CPI. Semana que vem vai ser tensa politicamente", disse.
Para José Álvaro Moisés, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), é preciso ter cautela antes de imaginar uma mudança de rumo da política externa do governo, mesmo com a saída de Araújo.
Ele ressalta que o presidente adota "recuos táticos" para conseguir sustentação política, mas não deixa de defender suas posições no discurso para manter o apoio de sua base de seguidores.
"O centrão está realizando uma pressão, porque do ponto de vista dos seus objetivos no médio e longo prazo, um governo sem rumo, que fracassa, não faz sentido. Mesmo para o centrão, que tem pouca definição programática, mas tem uma preocupação de ocupar postos no governo, um governo que fracassa não faz sentido para esse tipo de aglutinação de partidos", afirmou Moisés à Sputnik Brasil.
Ricardo Salles é o próximo alvo do centrão?
O cabo de guerra entre Bolsonaro e o centrão pode não terminar após a eventual queda de Ernesto Araújo. Para Fernando Luiz Abrucio, da FGV, já existe um movimento para pressionar o presidente a substituir também Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente.
"Há uma crise anunciada para o segundo semestre. Vai haver de novo aquelas queimadas gigantescas. E o presidente dos Estados Unidos já não é mais o [Donald] Trump, é o [Joe] Biden. A pressão internacional vai ser brutal", lembrou o professor.
O cientista político afirma que o presidente não terá um "respiro" neste ano, mesmo após o avanço da vacinação. Segundo ele, o centrão não vai se contentar só com a queda de Ernesto Araújo.
"O governo não entendeu que existe uma crise ambiental já precificada. E quem explicou isso não foi o Arthur Lira, foram os empresários. Então, há muitas pedras no meio do caminho e o presidente está sitiado", afirmou.
'Efeito Lula'
José Álvaro Moisés, da USP, acredita que a pressão ficou ainda maior após a volta do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao jogo político. Moisés avalia que, atualmente, Bolsonaro enfrenta uma oposição mais consistente.
"Sem entrar no mérito da questão judicial do Lula, mas com a experiência e o prestigio que ele tem como grande liderança no país, é uma força de oposição que encostou o governo do presidente Bolsonaro na parede. Desse ponto de vista, o governo está sendo obrigado a dar atenção para algumas questões, como é o caso da pandemia", explicou o cientista político.
Já Abrucio afirma que, com "um único discurso", Lula derrubou Eduardo Pazuello do Ministério da Saúde. Em sua avaliação, a volta do petista deixou o bolsonarismo "encurralado", de um lado, pelo próprio Lula e, do outro, pelo centrão e pela centro-direita.
"Ele está cercado de todos os lados. É o pior momento do mandato em todos os sentidos. O conservadorismo popular do Bolsonaro me parece que está ficando cada vez mais restrito a um grupo, que é importante em termos populacionais, mas ficar só com esse grupo significa ser derrotado nas eleições de 2022. Não tenho dúvida quanto a isso", apontou Abrucio.