O maior julgamento de máfia da Itália em três décadas está em andamento e envolve cerca de 900 testemunhas que deverão depor contra mais de 350 réus, incluindo políticos e oficiais acusados de serem membros da Ndrangheta, grupo criminoso considerado um dos mais ricos e temidos do mundo.
Vários dos réus serão solicitados a responder a acusações de lavagem de dinheiro no estabelecimento de empresas no Reino Unido com o suposto objetivo de simular uma atividade econômica legítima.
"Os interesses da Ndrangheta no Reino Unido têm figurado de forma proeminente, pois os clãs utilizaram o país como base de investimento e lavagem de dinheiro", explica o procurador Nicola Gratteri ao jornal The Guardian.
Os investigadores dizem que o segredo do grupo criminoso está em sua capacidade de conectar o submundo com o mundo superior, muitas vezes representado por Londres. Na última década, centenas de investigações afirmaram que a Ndrangheta lavou bilhões de euros na cidade.
O coronel Claudio Petrozziello, da Polícia Financeira da Itália, que monitora fluxos ilícitos de capital, disse que os clãs da Ndrangheta no Reino Unido não têm interesse em controlar o território local, apenas na exploração do sistema financeiro. "Não é que não haja regras em Londres. O problema é que o risco de infiltração da máfia é subestimado", acrescentou.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Demoskopita calculou, em 2013, que o faturamento anual da Ndrangheta, que com sede na região sul da Calábria, era de € 53 bilhões (aproximadamente R$ 347 bilhões em valores atuais).
Preocupação com Brexit
Na mente dos investigadores italianos que acompanharam as atividades ilícitas da Ndrangheta, um novo problema agora se agiganta: o Brexit. Magistrados e oficiais da polícia italiana compartilharam a preocupação de que os clãs da Ndrangheta possam tentar tirar vantagem da saída do Reino Unido da União Europeia (UE) se, como eles temem, a cooperação policial e judiciária entre a UE e o Reino Unido se mostrar menos eficaz do que quando ambos os países estavam no bloco.
"Quando o Reino Unido fazia parte da UE, ele se beneficiou do compartilhamento efetivo de dados na luta contra o crime organizado. Agora que saiu da UE, os problemas vão começar a surgir. Londres não estará ausente, mas as coisas vão mudar e mesmo a melhor cooperação pós-Brexit será menos eficaz do que dentro da UE. As máfias de hoje estão se movendo entre países e continentes e, onde encontram fraquezas na cooperação internacional, exploram essa oportunidade", comenta à mídia o promotor nacional antimáfia da Itália, Federico Cafiero De Raho.
"A Itália e o Reino Unido assinarão acordos para continuar esses esforços. No entanto, na prática, a colaboração será diferente […]. Imagine dois investigadores de dois Estados-membros diferentes da UE que estão olhando, ao mesmo tempo, para uma escuta telefônica de duas telas diferentes e em dois países diferentes. Os países fora da UE terão mais dificuldade em participar de uma equipe desse tipo", exemplifica Raho.
Sobre os temores italianos, Tim O'Sullivan, ex-promotor público britânico, afirma que "essas preocupações são certamente compartilhadas porque no momento ainda há incerteza sobre como os novos arranjos funcionarão". O ex-promotor acrescenta que "os mecanismos da UE fornecem uma base jurídica para a aplicação da lei. [Mas] Isso não significa que no novo acordo de cooperação não haja meios para resolver essas questões".
Federico Varese, professor de criminologia da Universidade de Oxford, Reino Unido, acredita que o Brexit está forçando o governo britânico a repensar a luta contra o crime organizado transnacional.
"Os criminosos consideram as fronteiras uma oportunidade e farão o máximo dela. É apenas mais um custo do Brexit", afirma Varese.